Diários do isolamento #49: Jessé Andarilho

10/05/2020

Diários do isolamento 

Dia 49 

Jessé Andarilho 

 

Hoje é um dia muito especial. É dia de o Facebook parecer um livro de poesia, dia de o Instagram parecer um jardim de tanta flor, e do Twitter, o Twitter não. Twitter é lugar de treta. 

Já acordei com uma enxurrada de fotos de mães pipocando nas minhas atualizações do celular. Toda mãe é linda. Toda mãe ama do seu jeito e por isso quero dedicar esse espaço para falar delas. 

A minha mãe me criou meio solto, coisa de mãe solteira que precisa trabalhar fora e acreditar que os filhos estão em casa seguindo suas recomendações, já que não tem com quem deixar os filhos quando estão na puberdade. 

Confesso que não fui um bom filho, como ela mereceu pelo sacrifício que fez para nos dar um teto, roupas e alimentos. Sou o filho caçula e aprendi que para conseguir as coisas na ausência da minha mãe teria que ser na base do grito. 

Tem coisas que a gente carrega para o resto da vida. Ainda mais quando se cresce em um lugar violento como são as favelas cariocas. Por mais legal que pareça ser nos relatos de algumas novelas e livros, a favela é um barril de pólvora em que você precisa ter atitude e falar alto para ser ouvido. 

Minha mãe veio da Paraíba e tem sangue quente. Ela é daquele tipo que diz: 

- Se apanhar na rua, vai entrar na porrada quando chegar em casa. 

Talvez tenha sido por esse motivo que nunca fui de brigar. Sempre resolvi meus problemas no desenrolo, na conversa e na insistência, porque as porradas de casa eu conhecia muito bem, e era melhor evitar. 

Como sempre fui uma pessoa muito comunicativa, recebi vários convites para entrar na vida bandida. Já tentaram me levar para o tráfico, para a milícia, para o bicho e até para a política. Deus me livre! 

Posso não ser a melhor pessoa do mundo, ou do bairro para ser mais exato, mas uma coisa que não vou fazer é dar desgosto para a minha mãe. Ela que nunca se abateu quando eu chegava em casa dizendo que tinha repetido mais uma vez no colégio. Ela ficava triste, me dava umas porradas, mas só de saber que eu continuava indo à escola, ela sabia que eu estava seguro, alimentado e bem cuidado. 

Hoje não sou formado em universidades, mas sou uma pessoa que a enche de orgulho. Não consegui entrar na Academia e isso não me fez um ser humano inferior. Na verdade, ninguém da minha família entrou na universidade. Mas somos felizes e, contrariando as estatísticas, nossos filhos vão poder seguir um caminho diferente.  

Acho que me saí bem na escola da vida. Tive ótimos mestres na pista e no colégio, mas ninguém me ensinou e me amou tanto quanto a minha mãe. 

Hoje não a verei pessoalmente e não vai rolar aquele churrasco reunindo nossa família toda com muita comida, muita bebida e muitas gargalhadas. Ela sabe que isso é o melhor que podemos fazer para continuarmos vivos e unidos, mesmo com esse mundo nos separando fisicamente. Ainda bem que pelo menos temos essa tela para nos unir. 

Agora estou aqui falando com ela e pedindo para ela não ir para a rua. Espero que ela siga as nossas recomendações. O jogo virou e somos nós que nos preocupamos com o que ela está fazendo em casa. Ainda mais a minha mãe, que não perde oportunidade de farrear com os amigos e parentes. 

Vida longa às nossas rainhas e FELIZ DIA DAS MÃES para todo mundo! 

#FiqueEmCasa  

“Tá ouvindo, mãe?” 

***

Jessé Andarilho nasceu em 1981 e foi criado na favela de Antares, no Rio de Janeiro. Filho de vendedores ambulantes, trabalhou com diversas atividades na sua comunidade, até ler seu primeiro livro, aos 24 anos. Foi quando, no trajeto de aproximadamente três horas que fazia de trem de sua casa até o trabalho, passou a usar o bloco de notas do celular para contar histórias. Dessas anotações surgiu o romance Fiel, publicado pela Objetiva em 2014. Em 2015, foi convidado para integrar o grupo de redatores da novela Malhação, da TV Globo. Foi diretor de reportagem do programa Aglomerado, da TV Brasil, e produtor da Cufa – Central Única das Favelas. Fundou o C.R.I.A., Centro Revolucionário de Inovação e Arte, e o Marginow, com a proposta de dar visibilidade aos artistas da periferia. Em 2019, publicou, pela Alfaguara, seu segundo romance, Efetivo variável. Atualmente, Jessé Andarilho realiza palestras em todo o Brasil, contando um pouco da sua história e mostrando como sua vida foi transformada pela literatura.

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