O autor e sua lousa: aprimoramentos e complicações de um processo criativo que levou mais de uma década

16/05/2024

Por Abraham Verghese

Minha lousa ocupa uma parede da minha sala de estar, um lugar que, a princípio, pode parecer inusitado. Mas, quando me vi morando sozinho com meu filho caçula, fiz da sala de estar meu local de trabalho. Antes disso, meu escritório ficava no andar de baixo e tinha prateleiras embutidas do piso ao teto em metade das paredes. Esse espaço era aconchegante, mas bem pequeno, no qual só batia sol no fim do dia. Já a sala de estar é espaçosa e banhada pela luz ao amanhecer. Sempre torci o nariz para salas de estar formais, considerando-as mausoléus para sofás caros que ninguém usa, um completo desperdício. Os móveis que eu tinha antes foram todos despachados, e o clima na sala ficou bem melhor assim.

Quando instalei a lousa, estava determinado a construir o enredo do meu novo romance da melhor forma possível. Já tinha pensado em alguns elementos antes de começar, sendo os mais importantes a localização — Kerala — e uma família fictícia, afligida por uma condição hereditária que os predispunha ao afogamento: a família de Parambil. No meu romance anterior, O décimo primeiro mandamento, tinha começado apenas com a localização — Etiópia — e uma imagem de uma freira dando à luz gêmeos; e também sabia que a voz que contava a história teria um tom antigo, ferida de nostalgia. O processo me pareceu ineficiente: era como se eu fosse descobrindo o romance enquanto o escrevia. Com o meu novo romance, O pacto da água, quis ser mais eficiente.

Meu pensamento é muito visual, de modo que, quando pus a lousa na sala, comecei a esboçar desenhos dos personagens que apareciam em minha mente. Então, esbocei alguns eventos fundamentais da narrativa. Mas minhas habilidades artísticas não eram boas a ponto de meus desenhos refletirem logo de cara o que eu tinha em mente. No entanto, a vantagem dos pincéis de lousa e de poder sempre retocar os desenhos com um paninho molhado é que, aos poucos, o que estava ali na lousa foi ficando bem parecido com o que eu imaginava.

2012: primeira versão

Esse esboço inicial tem o título de A convenção Maramon. Tinha me apegado a esse título por muito tempo, até admitir que era misterioso demais para o leitor. O nome do lugar, Maramon, não tinha uma indicação de pronúncia clara. Pacto, além de soar melhor, é uma palavra muito mais rica, repleta de ecos bíblicos (especialmente quando Oprah Winfrey a pronuncia!). Nessa primeira lousa, vemos um personagem — “O Apotecário” — e uma cena da amputação de uma mão que ficaram de fora da versão final. São elementos que representam muitas páginas e muitas semanas de trabalho, mas eu as cortei em prol da “profluência”. É uma palavra que o falecido John Gardner enfatiza em seus dois livros clássicos: The Art of Fiction e On Becoming a Novelist. Define-se profluência como “fluidez plena ou suave” ou como algo que tem essa qualidade. Para mim, é aquele aspecto “impossível de largar”, que me esforço para criar em meus livros. A serviço disso, estou disposto a sacrificar quase qualquer coisa no meu texto.

2014: segunda versão

A figura do apotecário desapareceu, mas aqui se vê a primeira menção à cirurgia espinhal. Por muito tempo, Mariamma seria uma cirurgiã de coluna: “endireitar o torto” seria uma frase recorrente no livro. O assunto me interessa por causa do trabalho pioneiro do meu amigo Rick Hodes, que foi para a Etiópia com uma bolsa Fulbright décadas atrás e nunca mais voltou. Ao longo dos anos, ele fez com que centenas de crianças com escoliose severa tivessem acesso a cirurgias de correção; o procedimento é muito difícil e perigoso. Infelizmente, depois de muita pesquisa, eliminei esse fio narrativo, mas foi uma mudança de rota custosa em termos de semanas perdidas e páginas que não seriam lidas por ninguém além de mim. Na lousa, também há referências a aborto e assassinato. Mais peso morto (perdoem-me o trocadilho). À esquerda, em vermelho, vemos a primeira ideia da Mulher de Pedra, de Elsie, que sobreviveu.

2015: terceira versão com spoilers borrados

Damo surge, mais do que tudo, no alto à esquerda. Queria que o leitor sentisse que ele era humano, com um olho saudável e interações cheias de sentido com a família. A figura da menina na cadeira de rodas mostra que eu ainda não abandonei a ideia da cirurgia de coluna. Dois outros fios narrativos importantes no romance eram a mão amputada e reimplantada e uma picada de cobra. Para alívio de muitos leitores, não duvido, esses dois elementos foram limados.

Uma aquarela de 2015

Penso nas “pesquisas” para um livro como uma desculpa que permite ao escritor sentir que está fazendo algo relevante mesmo quando não está escrevendo. No meu caso, pesquisar também é desenhar (na lousa, no papel ou com aquarelas). Não é algo que ponha palavras no papel, mas relaxa. Digo a mim mesmo que o inconsciente está maturando ideias, fazendo conexões que servem ao livro. Minha habilidade artística não se compara à do meu primo Thomas Varghese (sim, soletra-se seu sobrenome de outro jeito), cujos desenhos magistrais abrem cada parte do livro. Meu desejo era que seus desenhos evocassem os desenhos que minha mãe fez em um caderno, no qual ela descreveu sua infância para sua neta Deia (minha sobrinha).

2015: quarta versão com spoilers borrados

Essa lousa agora se desenvolveu de maneira considerável. No centro oval, encontra-se Mariamma, como eu a via, enquanto a figura grande abaixo, à esquerda dela, é Philipose, que acabou se tornando um personagem importante para a história. No extremo à esquerda, estão Elsie e a fatídica árvore plavu, que mudou a vida de todos. A serpente e a menina na cadeira de rodas permanecem — eu ainda não havia abandonado essas linhas narrativas. Há até um edifício na parte de cima, à direita, chamado Hospital para Cirurgias de Coluna. Todos esses elementos foram sacrificados no altar da profluência.

Uma aquarela de 2017

A geografia é um personagem central neste romance, talvez em qualquer romance. A certa altura, para “ver” o território de Parambil, desenhei um mapa detalhado da casa, mostrando sua proximidade com a igreja, o riacho, o rio e a escola de Philipose. Pintei essa aquarela para relaxar, fazendo uma versão simplificada do mapa. Desfiz-me dessas aquarelas, mas não sem antes fotografá-las.

2016: um retrato do autor com a lousa

Não sei a origem dessa fotografia. Minha escrivaninha (que não aparece na foto) está ao fundo. Fica ao pé de uma janela cuja luz ilumina o lado esquerdo da lousa. Sinto que passei uma vida inteira nessa escrivaninha, com a lousa ao meu lado. A lousa muitas vezes ficava estática por meses a fio, pois a história de verdade estava se desenvolvendo na página. Apesar de todos os meus esforços, a lousa era menos um mapa do caminho do que um registro dos meus desvios, sempre atrasada em relação ao que estava no papel. Escrever é uma atividade solitária e eu recebo poucas visitas, mas a lousa certamente atrai mais atenção e curiosidade do que merece quando alguém vem à minha casa pela primeira vez.

“A mulher de pedra”

Eu bem queria saber como a Mulher de Pedra veio a existir. Em O décimo primeiro mandamento, a escultura O Êxtase de Santa Teresa, de Bernini, era essencial. Só cheguei a ver essa obra admirável (em Roma, na capela Cornaro, Santa Maria della Vittoria) depois de finalizar o livro. Não posso me aborrecer se os leitores acharem que usei de propósito uma estátua como ferramenta literária em O pacto da água, mas a verdade é que só percebi que tinha feito isso quando gravei o podcast com a Oprah! Assim que decidi que Elsie seria uma artista, soube de imediato que ela trabalharia com esculturas. Quando ficou claro que essa forma de arte atravessaria toda a história, modelei eu mesmo essa figura de argila, que agora fica sobre a minha escrivaninha.

Texto originalmente publicado em Oprah Daily

Tradução de Odorico Leal.

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