Joias do catálogo: 'Rã e Sapo são amigos', de Arnold Lobel

19/10/2021

Por Guilherme Semionato

 

É difícil começar um texto para Rã e Sapo são amigos, e por tantos motivos. É preciso fazer justiça ao livro e à obra (e à vida, se é que não são a mesma coisa) de Arnold Lobel, até então inédito no Brasil; convém falar do meu trabalho no livro (que vai além de traduzi-lo); seria bom também deixar claro que essa publicação é um evento e que não é um exagero dizer que é mesmo o mais importante lançamento de literatura infantil do ano (pelo que é e também por tudo que pode vir no futuro). Uma vez que eu entendi que não ia esgotar o assunto, o livro, os personagens, o autor e o mundo — aliás, tenho a impressão de que ainda vou falar um bocado sobre tudo isso no futuro —, pronto, o texto quase se escreveu sozinho.

Imagem do livro Rã e Sapo são amigos, de Arnold Lobel, em que Rã procura o botão do casaco do sapo

Imagem do livro Rã e Sapo são amigos, clássico de Arnold Lobel publicado agora pela primeira vez no Brasil

É surpreendente que o mundo pastoral e idílico de Rã e Sapo — dois anfíbios machos que são melhores amigos — seja tão forte quando consideramos que essa série consiste em apenas quatro livros contendo, cada um, cinco histórias curtíssimas (cada volume pode ser lido separadamente e fora da ordem). Para lhe apresentar a riqueza desse universo, vou falar das cinco histórias do primeiro livro, pincelando enredos e elementos de contos dos volumes seguintes. 

“Primavera”, a primeira história de Rã e Sapo são amigos, nos traz um mundo de promessas renovadas. Depois da longa hibernação, Rã corre ligeiro até a casa de Sapo. Chegou a hora de começar mais um ano juntos! Só que Sapo não deu sua hibernação por encerrada e quer dormir por mais um mês. Rã o convida para se juntar a ele e aos vivos, mas Sapo nem dá trela. Contar estrelas? Conta você, Rã, eu vou é voltar para a minha cama, diz ele. Passear sob o céu azul de primavera? Ele mal consegue abrir os olhos por causa da claridade...

Capa do livro Rã e Sapo são amigos, de Arnold Lobel, na qual se vê o sapo contando histórias para a rã

Neste clássico norte-americano, confira cinco histórias de amizade,
solidão e cuidado entre Rã e Sapo. Leia +

Sapo não quer nem o dia nem a noite nem companhia; ele já se cobriu inteirinho e capotou de novo, e não adianta Rã implorar: Mas eu vou ficar sozinho esse tempo todo! No desespero, ele inventa um ardil engenhoso para tirar Sapo da cama — e funciona: os dois saem saltitando, prontos para viver suas histórias. Sapo venceu a melancolia (ele só precisava de um empurrãozinho...) e Rã conseguiu o que queria. Foi assim que Rã e Sapo entraram na vida de dezenas (centenas?) de milhões de leitores do mundo todo: uma leve depressão de um lado, a contemplação da solidão do outro e uma trapacinha para completar. O final é feliz, mas repare só como esse mundo é vivo, profundo e complicado.

 

O equilíbrio entre os personagens

É um mundo vivo, profundo e complicado, mas o que mais encanta é a simplicidade quase espartana e frugal dessas histórias. Rã e Sapo existem fora do tempo e da História; vivem num mundo paralelo ao nosso. Cada um dos quatro volumes corresponde a um ano na vida deles (as estações são quase sempre marcadas nas histórias), mas o tempo dessas narrativas parece suspenso e a idade dos dois também. São crianças eternas, livres das obrigações que o trabalho e a família impõem.

Veja os itens na lista de afazeres de Sapo: acordar, tomar café da manhã, botar uma roupa, ir para a casa de Rã, passear com Rã, almoçar, cochilar, brincar com Rã, jantar e dormir. Quando o vento leva essa lista embora, Sapo não sabe mais o que fazer com o seu dia; como preenchê-lo agora? Rã o aconselha a ir atrás do papel, mas ele se recusa. O motivo é uma bizarrice só: correr atrás da lista não consta no rol de afazeres.

Rã é um bálsamo para Sapo, cujas frustrações e incertezas são acalmadas pela sensatez de Rã, um parceiro dos mais sábios. Rã é mesmo seu melhor amigo, mas às vezes parece ser seu irmão mais velho (e é papo para outro texto tudo que um pode ser para o outro). Rã é o mais maduro dos dois, mais otimista e bem-ajustado; ele conta histórias dos seus tempos de mocidade (como se já tivesse passado da fase de girino há muito tempo...), planeja aventuras, toma decisões, enfim, ele movimenta e acende a vida de Sapo, que é mais pessimista, taciturno, meio cabeça-dura e individualista. Cada uma das histórias equilibra essas duas tendências, esses jeitos de ser que todos nós temos. Por isso, vê-los convivendo e interagindo acaba por organizar um pouco nossas vidas, nossa bagunça e nosso ruído: isso é literatura.

Rã e Sapo são capazes dos mais inimagináveis atos de bravura, bobice e gentileza — inclusive aquele tipo específico de gentileza que é fazer o bem sem esperar qualquer reconhecimento ou retribuição. Este é um mundo de camaradagem, brincadeira e aventura — mas, por favor, sem tanta emoção e tanto perigo. Em um dia de inverno, Rã arrasta Sapo para um passeio de trenó (Socorro! Meu melhor amigo está tentando me matar!, diz Sapo enquanto Rã o sufoca com muitos casacos e cachecóis). No meio do caminho, Rã acaba caindo do trenó. Enquanto Sapo acha que o amigo ainda está ali atrás, ele consegue pilotar direitinho e se diverte à beça. Mas, assim que descobre que está sozinho, Sapo se desespera e capota. A única coisa que impede Sapo de enguiçar e implodir é a presença do seu amigo. (E se alguém quiser saber o que seria de Sapo sem Rã, basta ler Owl at Home [Coruja em casa], meu livro favorito do autor, em que acompanhamos uma coruja às portas da insanidade.)

 

A amizade como fio condutor de todas as histórias

Nas histórias de Rã e Sapo, há momentos de imensa felicidade e bem-estar: comer biscoitos sem parcimônia, fazer uma pipa finalmente ganhar os ares, tomar sorvete no verão escaldante, contar histórias assustadoras, passar o Natal juntos. Mas também há instantes de rebelião e frustração, sempre permeados de graça. O humor aqui é baseado no comportamento dos personagens, em seus estados de espírito. Não há nada mais importante nesses livros do que essa amizade — continuamente testada por manias e chiliques (um clássico: O mundo inteiro está coberto de botões e nenhum deles é o meu!) e fortalecida por hábitos e pelo dia a dia —, mas nem Lobel nem o leitor jamais perdem de vista que Rã e Sapo, essa dupla eletrizante, sejam de fato indivíduos.

Em “Banho de rio”, minha história preferida do primeiro volume, Sapo caminha na corda bamba entre o constrangimento e a afirmação de sua individualidade: ao contrário de Rã, ele não nada pelado (óbvio que não!) e, apesar de saber que fica engraçado com sua roupa de banho, prefere isso a mostrar suas vergonhas. Nem mesmo Rã pode vê-lo com seu traje esquisito, que dirá outros animais. É claro que tudo que pode dar errado dá errado, mas o modo como Sapo responde ao coro de desaforados é extraordinário (eu me recuso a dizer qual é e roubar seu prazer de descobrir por conta própria). 

Ilustração do livro infantil Rã e Sapo são amigos, de Arnold Lobel, que mostra os amigos tomando banho de rio

Na história "Banho de rio", Sapo caminha na corda bamba entre o constrangimento e a afirmação de sua individualidade

Algumas das melhores histórias trazem essa tensão entre estar num relacionamento e ser fiel a si mesmo. Em “Sozinho”, o conto que fecha o último volume, Sapo vai à casa de Rã e encontra um bilhete na porta avisando que ele quer ficar sozinho. Primeiro, Sapo pensa que ele está triste e decide encontrá-lo para (numa inversão de papéis) consolá-lo. Depois, Sapo imagina que Rã desistiu de vez dele, que ele não quer mais ser seu amigo (Sapo o vê bem ao longe e grita sem ser ouvido: Desculpa por todas as besteiras que eu faço, desculpa por todas as bobagens que eu digo! Por favor, seja meu amigo de novo! — e essa confissão, vinda de alguém tão teimoso, é muito comovente).

Sapo está desesperado, mas nem precisava ter ficado: Rã queria ficar sozinho por um motivo surpreendente. Eis o que ele diz: Eu sou feliz. Eu sou muito feliz. Essa manhã eu acordei e me senti bem porque o sol estava brilhando. Eu me senti bem porque sou uma rã. E me senti bem porque tenho você como amigo. Mas ele não quer mais ficar sozinho para pensar em como sua vida é boa, agora ele quer a companhia de Sapo. Se “Primavera” é uma história perfeita para dar início à saga de Rã e Sapo, “Sozinho” é o remate magistral. Ambas são bonitas e confortam o coração, mas também há tensão, vulnerabilidade e carência, nossas faltas e limitações borbulhando embaixo da superfície.

 

Literatura jubilosa dentro de uma camisa de força

Não há muitos livros como Rã e Sapo são amigos traduzidos no Brasil; esse formato, consagrado nos Estados Unidos, por alguma razão não decolou aqui. Na verdade, só há uma série estrangeira editada no país que seja comparável (em estilo) à de Rã e Sapo: a do Ursinho, escrita por Else Holmelund Minarik e ilustrada por Maurice Sendak, que foi publicada pela Companhia das Letras e está esgotada há anos. Ambas fazem parte da coleção I Can Read! [eu sei ler], a mais famosa para leitores iniciantes (beginning/early readers), criada pela HarperCollins em 1957.

Lobel pegou esse formato limitadíssimo — quase subsidiário da escola e do ensino — e fez literatura (e a festa) com ele. Essas histórias são perfeitas para leituras independentes e compartilhadas: há muitas ilustrações (e lindas, todas em verde, ocre e mostarda), letras grandes e pouco texto, tudo isso distribuído em sessenta páginas. Ademais, a linguagem é simples e clara, então a criança vence página a página e história a história com alguma facilidade. Dominar a leitura é uma conquista que deve ser celebrada, e Rã e Sapo são amigos será um troféu para muitas crianças brasileiras.

Rã e Sapo são quase sempre os únicos personagens em cena; o livro tem pouquíssimas descrições, muitos diálogos e muitas repetições, que ajudam a fisgar a criança. Lobel usa a repetição de forma magistral no conto “A história”, presente em Rã e Sapo são amigos. Trata-se de um texto fabuloso sobre o poder curativo das histórias e sobre o tormento que é criar arte — e o efeito cumulativo das repetições ganha um fantástico desenlace metalinguístico.

A presença da voz do narrador sob a forma do discurso indireto é fortíssima: quase todas as falas são acompanhadas de um “disse Rã” ou um “perguntou Sapo” da vida, mesmo quando é óbvio para o leitor experiente (nós, não uma criança de seis anos, é claro) quem está falando, já que são apenas dois em cena. Intervenções assim têm o potencial de deixar o texto deselegante, poluído e ruidoso, mas... não deixaram.

Aliás, está aí uma das grandes razões pelas quais o livro é perfeito para primeiras leituras: o texto se organiza a serviço da criança, que jamais perde de vista quem está falando, e essas marcas são lidas mais como um apoio do que como parte do texto. Isso também colabora para a fluência das leituras compartilhadas: naturalmente, quando contamos uma história a uma criança, deixamos claro quem é que está falando mesmo que essa informação não conste no texto, seja alternando as vozes, seja adicionando “fulano disse”, “beltrano perguntou”, já que a criança não acompanha a disposição do texto em parágrafos na página e não sabe quando a fala de um personagem acaba e a do outro começa. Rã e Sapo são amigos é um primor de acessibilidade. O livro está pronto para receber todo e qualquer leitor — a criança que se aventura sozinha na leitura e o adulto que lerá a história para a criança  — e todos vão dividir um precioso momento de intimidade. 

Imagem do livro Rã e Sapo são amigos, de Arnold Lobel, na qual os amigos estão abraçados à espera de uma carta

Além do título lançado agora no Brasil, Lobel publicou outros três livros da série Rã e Sapo

 

Rã e Sapo no Brasil: o começo de uma bela amizade

No início do texto, eu escrevi que queria tratar de muitas coisas. Acho que consegui falar das duas mais importantes: Rã e Sapo. Tive de deixar de lado outras duas: Lobel e eu. Ficou de fora a vida pessoal dele, que não é da conta de vivalma, mas que ajuda a deixar sua obra mais profunda e muito mais melancólica (especialmente os quatro livros dessa série); também não consegui falar de mim, dizer que quero e vou continuar fazendo exatamente o que fiz aqui: ajudar a trazer mais livros estrangeiros ao nosso país. Mas apresentei em detalhes essa amizade incontornável, que é o que importa.

Sem sombra de dúvidas, o lançamento de Rã e Sapo são amigos é o evento mais importante de 2021 no universo da literatura infantil no Brasil. Mas, quando tudo parece obra do acaso e há sempre um milhão de variáveis, como vou justificar para mim mesmo — e, agora, para vocês — a certeza, forte e tranquila, que eu tenho de que esse livro não será esquecido, de que teremos mil e uma reimpressões e de que ele vai explodir nas escolas, que é o espaço mais democrático de leitura no Brasil? Não sei, mas vai acontecer.

Quase todos os livros vêm e vão, mas esse vai ficar. Ter essa certeza, no entanto, não me faz descansar em berço esplêndido, então estou aqui torcendo (como torço pelos meus livros) para que as histórias de Rã e Sapo encontrem a acolhida generosa que merecem. Torcendo e fazendo: a tradução, este texto e tudo que estiver ao meu alcance.

Rã e Sapo são amigos é um livro para ler antes de dormir, é um livro para ler sonhando, é um livro para ler depois de acordar, é um livro (perfeito) para escolas, é um livro para ouvir pela voz de outra pessoa, é um livro com voz própria, é um livro que vai ajudar as crianças a ler e, por que não?, a viver; talvez vai até ajudar alguns adultos a sair da cama para dar uma voltinha sob o céu de primavera.

Rã e Sapo são caseiros, eles amam e cuidam com amor de suas casas e de suas vidinhas. Mas o livro deles, que é tão aconchegante, também pode nos devolver àquele tempo em que novas descobertas aconteciam todo dia, quando o mundo era colossal, quando era bom experimentá-lo a partir da perspectiva dos outros (e o que mais podemos querer depois de quase dois anos de recolhimento?). Aqui, eu não me refiro exatamente ao mundo pré-pandêmico, que jamais voltará, e sim a um pedaço esquecido e arrebatador da nossa infância, porque esse volta. Muitas coisas incríveis vão acontecer agora que esse livro está entre nós, mais de cinquenta anos depois do seu lançamento. Duas gerações de crianças brasileiras foram privadas de conviver com Rã e Sapo, mas esta e as próximas não serão.

***

Guilherme Semionato é formado em Comunicação Social pela UFRJ e tem especialização em Literatura Infantojuvenil pela UFF. Em 2020, publicou seus primeiros cinco textos; dois deles no Brasil: Um belo dia... (Editora do Brasil) e Nossa bicicleta (Edições SM), que recebeu o Prêmio Barco a Vapor e o Selo Altamente Recomendável da FNLIJ. Além disso, traduziu e recomendou Rã e Sapo são amigos para publicação no Brasil.

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