1. Ficção e não ficção

Muita gente tem defendido a importância da interdisciplinaridade e do diálogo entre conteúdos que parecem distantes, mas têm muito em comum.
Geografia, História, Literatura... podem ser estudadas com os alunos também em conjunto, sem que eles entendam essas matérias como mundos distantes e apartados. Ao contrário, o diálogo entre áreas torna os estudantes e as pessoas, de uma maneira geral, mais críticos e autônomos, menos sectários nas suas posições e argumentos.

>Uma amizade (im)possível já nasceu com essa vocação de borrar as fronteiras fáceis, sobretudo entre ficção e não ficção; entre história e literatura; entre História e história.
Na verdade, sabemos que a História, como disciplina, é considerada, até hoje, uma espécie de “anciã” de todas as ciências. Anciã porque trata do passado; anciã por conta da sua longevidade. Já na Grécia Antiga ela era considerada o saber mais abrangente, pois implicava lidar bem com a arte de narrar, de contar histórias. Portanto, na sua gênese, como “mãe de família”, a História já era dada ao diálogo com muitas outras áreas do saber.
Os estilos sempre foram muitos – existindo historiadores que se dedicaram a criar épicos apimentados; outros que preferiram o estilo das crônicas; outros ainda que se vincularam a uma escrita mais seriada e diacrônica –, todos com o objetivo de bem descrever o passado para melhor recuperá-lo.
Interessante lembrar que, até hoje, a “paternidade” da História é dada a Heródoto, já em sua época considerado um grande contador de histórias. É mesmo possível afirmar que Heródoto inaugurou uma forma especial de capturar o passado e driblar a memória. Ou seja, mais do que compilar dados e fatos – como imagina o senso comum –, mostrou, já naquele contexto longevo, como a História é uma disciplina que se orienta por questões políticas, culturais, sociais e filosóficas, e só então alinha fatos e dados. Sem perguntas a orientar, não há história a escrever.
Além do mais, se os objetos da História vêm do passado, já os temas a que recorremos – justamente para indagar o passado – têm origem no presente. Em primeiro lugar, olhando para o passado reinventamos o presente e pensamos, de novas maneiras, sobre como nos comportamos na contemporaneidade.
No entanto, e em segundo lugar, a História sempre fez mais: ela projetou muita imaginação sobre nós. Até mesmo Heródoto, o “pai da história”, foi acusado de ter criado certos episódios que apresentou. Porém, mais do que inventar a bel-prazer, Heródoto descreveu eventos, situações, culturas de que “ouviu falar”, e que bem poderiam ter existido. Ou seja, imaginou um passado “possível”, mesmo que não conhecido.
Não estou defendendo aqui que não existam diferenças entre um historiador e um literato. Afinal, o ofício do historiador se sustenta a partir do ato de coligir fontes e documentos – escritos, visuais, materiais –, cruzá-los, assim, tentar chegar o mais perto possível dessa terra distante chamada passado. Entretanto, e até por isso mesmo, há sempre uma margem para a seleção de eventos, para a hierarquia estabelecida entre eles e, ainda mais, para a indicação pessoal do ângulo que vamos selecionar.
Não existe história sem lembrar, mas também sem esquecer. Até porque ninguém consegue dar conta de tudo; muito menos do seu próprio momento. Enfim, todo historiador é um tradutor de culturas do passado e, assim sendo, sempre funda histórias e narrativas próprias.
Por essas e por outras é que não se pode falar em uma história (a história), mas em história(s) que vamos a cada dia descobrindo, alcançando e conseguindo narrar. Não por coincidência, a historiografia do século XIX foi mais política, a do início do século XX mais social, a de meados desse século mais cultural, e assim vamos.
E é com esse tipo de preocupação que o livro Uma amizade (im)possível foi escrito. Tudo nele “poderia” ter existido: é “possível” que tenha existido. Os meninos Pedro e Aukê, o encontro e o desencontro entre duas culturas à primeira vista tão distintas. Conhecemos o entorno dessa história – a colonização portuguesa, a técnica das caravelas, onde chegaram boa parte dos imigrantes portugueses quando desembarcaram no Brasil, como funcionava um engenho, como se tratava a cana e, ademais, que grupos os portugueses por aqui encontraram: os Tupinambás.
Por essas e por outras que essa é uma aventura “possível”. Quem dirá que não ocorreu assim?


Na máquina do tempo


Pensando nessa visão mais aberta da história, ou melhor, das histórias (sempre no plural), que tal fazer seus alunos assumirem o ofício de “historiadores da imaginação”?

1. Monte grupos de cinco alunos e peça a eles que pesquisem nos livros de História como era a vida dos engenhos do Nordeste no século xvi.

2. Anime-os também para que pesquisem imagens de engenhos de artistas holandeses que estiveram no Brasil, como Zacharias Wagener, Frans Post e Albert Eckhout. A partir dessas imagens (bem contrastadas com as fontes documentais), eles terão um encontro marcado com esse Brasil colonial e canavieiro. Assim informados, eles estarão prontos a iniciar uma aventura nessa civilização do açúcar, utilizando sempre os documentos que estudaram previamente.

3. Em seguida será a hora de criarem seu próprio livro. Mobilize-os para que inventem uma boa narrativa ficcional. É fato que ela deve se pautar na investigação histórica, mas não vale fazer da aventura uma mera decorrência da pesquisa. Para tanto, eles precisam caprichar nos personagens, no ambiente, no entorno, nos diálogos.

4. Hora de inventar uma bela capa ilustrada (para competir com a nossa). Apenas um detalhe: tudo tem que ser feito respeitando a pesquisa, a despeito de nada precisar se limitar a ela.

5. Livros prontos: esse será o momento de fazer com que cada grupo de alunos distribua e troque seu livro com o dos demais colegas. Será divertido verificar que – tal qual um caleidoscópio –, embora as “peças históricas” sejam sempre as mesmas, os “desenhos” ficcionais (resultado do embaralhamento dessas mesmas peças) podem ser totalmente distintos.

Uma dica importante: a atividade só dará certo se os alunos se “identificarem” com o passado, e criarem personagens, em outros tempos, “possíveis” como eles mesmos o são. Pessoas com alegrias, tristezas, conquistas, falhas, contradições.
Essa será uma maneira divertida de mostrar que história não é jogo de decorar. É uma maneira de ser e estar nesse mundo.


2. Homens com F, com L e com R


Quando os portugueses chegaram ao Brasil, não conseguiram compreender as populações nativas, de costumes tão diferentes. Ao contrário: com relação a elas, logo se mostraram suspeitosos. Segundo os primeiros viajantes, esses eram povos polígamos, praticavam a antropofagia (como vimos no glossário do livro), faziam guerra o tempo todo e, ademais, andavam nus. Por isso, cronistas diziam que esses eram povos sem F (fé), L (lei), R (rei). E assim, em vez de entenderem a diferença como diferença, passaram a julgar e hierarquizar. Acharam que tudo que fosse “diferente” seria “menos”: menos cultura, menos civilização, menos maturidade... em suma, “sem”. E a verdade é que ocorria o oposto. O “menos” significava “mais”: convivência com a natureza, equilíbrio entre o que se consumia e produzia, vida sem excedentes...
Pode-se dizer que essa maneira de fazer do outro alguém “menor” do que nós – e assim hierarquizar grupos diferentes a partir de critérios que são “nossos” e não do “outro” – é a base comum dos racismos e preconceitos. E esse não é um problema circunscrito ao passado: está na base de nosso mundo atual, que criou muitos ódios e guerras pautados em políticas de discriminação baseadas em supostas diferenças de origem, de religião, de gênero, de raça.
Sabemos que o Brasil foi o último país a abolir a escravidão no mundo ocidental – só o fez em 1888, depois de Estados Unidos e Cuba – e guarda ainda hoje uma forma bastante silenciosa (e não por isso menos perversa) de discriminar. Lidamos com a “diferença” como se ela não existisse, e não notamos como são homogêneos os grupos que nos cercam: na escola, nos restaurantes, nos clubes, nos teatros...


Tirando do silêncio a discriminação


Tendo esse tipo de preocupação em mente, sugerimos um trabalho que discuta com os alunos o fenômeno do preconceito e do racismo. O nosso pressuposto é que discriminar significa criar não só diferenças, mas transformar essas mesmas diferenças em hierarquias rígidas. No Brasil, não existem formas de preconceito admitidas no corpo da lei, mas ainda assim mantemos práticas de racismo verificáveis na educação, nos índices de trabalho, nos salários e até mesmo no lazer.
Lá vai um primeiro guia de trabalho.

1. Analise com seus alunos qual é a situação das populações indígenas hoje em dia no Brasil.

2. Levante com eles, recorrendo a sites do grupo Instituto Socioambiental (isa), por exemplo, mapas dessas populações e dos povos hoje existentes.

3. Busque na internet um mapa feito no início do século xx por Curt Nimuendajú e analise com os alunos a quantidade de grupos linguísticos indígenas e sua riqueza cultural.

4. Pesquise na nossa Constituição Cidadã, de 1988, quais são os capítulos referentes à questão indígena.

5. Faça um levantamento da nova literatura indígena, produzida nos últimos dez anos, e tente mapear os autores e grupos que vêm liderando esse movimento.

6. Procure descobrir quem são os novos “artistas indígenas” que começam a apresentar suas produções em exposições nacionais.

7. Veja se há possibilidade de convidar um professor indígena que venha se especializando em uma história mais propriamente indígena, para conversar com os alunos. Afinal, se histórias são sempre plurais, essa será mais uma, ou várias!


Civilização do açúcar


Agora um trabalho “gostoso”. Por conta da larga influência da cana-de-açúcar, viramos uma civilização do açúcar. No Brasil existe uma quantidade muito grande de doces, em que variam os ingredientes e o modo de preparo, mas nunca a doçura.

1. Faça um levantamento dos doces mais antigos e populares da culinária brasileira. Juntos, vocês podem escolher um desses doces e, em um dia previamente combinado, pôr a mão na massa e preparar a receita eleita pela turma.

2. Peça aos alunos que tragam pedaços de cana-de-açúcar. Apresente a eles os diferentes produtos que podem ser feitos dela: é possível usar a planta como decoração; chupar seu sumo; obter suco de garapa e melado. Se for possível, leve alguns desses produtos para os alunos provarem.

3. Solicite aos alunos que tragam para a classe diferentes formas e tipos de açúcar, com suas diferentes cores. A partir dessa pesquisa divertida, você pode mostrar aos alunos como a filosofia do “quanto mais branco melhor” passou também para o jogo social. Sabemos que, no Brasil, o branco é quase um símbolo de status, e conversar sobre esse tema pode abrir um mundo de questões para vocês.


3. Lidando com mitos: Aukê


Não sei se você sabe, mas retirei o nome Aukê de um mito muito famoso em meados do século xix.
Os índios Jê-Timbira narram a origem do homem branco a partir das aventuras de Aukê:¹

Uma rapariga de pátio de nome Amcukwey estava grávida. Certo dia, quando em companhia de muitas outras tomava banho, ouviu de repente o grito de preá. Admirada olhou para todos os lados sem descobrir de onde o ruído partira. Logo depois escutou-o novamente. Voltando para casa, deitou-se na cama de varas quando o grito se fez ouvir pela terceira vez, reconhecendo ela, agora, que o som partira do interior do seu próprio corpo. Foi a criança quem falou: “Minha mãe tu já está cansada de me carregar? “Sim, meu filho – respondeu ela – saia! [...]” Amcukwey começou a sentir as dores de parto e foi só para o mato. Deitando folhas de pati no leito do chão prometeu: “Se fores menino eu te matarei, se fores menina eu te criarei [...]”. Nasceu um menino e Amcukwey cumpriu sua palavra: cavou um buraco, sepultou seu filho, ainda vivo, e voltou para casa. Sua mãe vendo-a chegar perguntou pela criança e, quando inteirou-se do sucedido, ralhou com a filha: que tivesse trazido o menino porque ela, a avó, o criaria. Não contente com isso a mãe de Amcukwey desenterrou a criança e depois de lavá-la trouxe-a para casa. Amcukwey não lhe quis dar de mamar, mas a avó o amamentou. Foi então que o pequeno Auké levantou-se e disse: “Então não me queres criar?” Amcukwey muito assustada respondeu: “Sim eu te criarei”. Aukê cresceu rapidamente. Ele possuía o dom de transformar-se em qualquer animal [...] Então, um dia, seu tio resolveu matá-lo. Estando o menino sentado no chão, comendo bolo de carne, o tio bateu forte e por trás com um cassetete, enterrando-o atrás da morada. Na manhã seguinte, porém, o menino, cheio de terra, voltou [...] Seu tio resolveu desfazer-se dele de outra maneira: chamou-o para buscar mel [...] Chegando ao cume da terceira serra o irmão de Amcukwey agarrou o menino atirando-o em seguida no abismo. Mas Aukê transformou-se em folha seca e desceu vagarosamente em espirais até o chão [...] O tio, no entanto, logo concebeu um novo plano para matar Aukê: sentando-o numa esteira deu-lhe comida [...] Foi então que abateu-o pelas costas, usando um cassetete, e queimou-lhe o corpo inteiro. Abandonaram em seguida a aldeia, mudando-se para um lugar bem longe. Algum tempo depois Amcukwey pediu aos chefes e conselheiros que mandassem buscar as cinzas de Aukê [...] Quando os dois chegaram ao lugar, descobriram que Aukê tinha se transformado em homem branco: construíra uma casa grande e agora criava negros [...], e cavalos de madeira do bacuri. O rapaz chamou os dois enviados e mostrou-lhes a sua fazenda. Depois mandou chamar Amcukwey para que morasse com ele. Auké é o Imperador D. Pedro II, pai dos brancos.


Qualquer história permite, por certo, muitas leituras. No caso do mito de Aukê, ele ajuda a entender a monarquia brasileira como uma experiência partilhada por muitas visões e sujeita a inúmeras recuperações. O fato é que trabalhamos pouco com mitos na escola, e, mais ainda, os tratamos com preconceito.
Não poucas vezes achamos que história e ciência são verdades, e mitos invenções! Ora, é possível dizer, de um lado, que os mitos são tão reais quanto a nossa história. Falam de situações práticas e recuperam costumes, culturas e crenças. Há uma boa diferença a anotar: a história promete que o futuro será diferente do presente; já os mitos prometem o contrário: o futuro é igual ao passado. Mas há ainda outro lado. Não são só “eles” que acreditam em mitos. Nós também.
Ora, não acreditamos que este é um país pacífico, apesar de sermos o último a terminar com o sistema escravocrata? Não acreditamos que somos bons de futebol, samba e malandragem quando sabemos que nada há de “natural” nisso? Tudo é treino, história e intenção!
Aí vai, pois, um último desafio para seus alunos.


Mitos são histórias que gostamos de ouvir e acreditar


1. Conte a história de Aukê para seus alunos.

2. Convide-os a discuti-la no sentido de pensar se ela poderia ter ocorrido e que mensagem nela existiria.

3. Peça a eles que façam um paralelo entre o Aukê do mito e aquele da nossa história, Uma aventura (im)possível.

4. Agora desafie-os a pensar em todos os mitos que aprendemos e em que costumamos acreditar como se fossem da própria natureza.

5. Divida os alunos em grupos e inclua uma nova tarefa: fazer tratados sobre nossos “mitos prediletos”.

6. Tendo esses mitos modernos em mãos, e reunida toda a turma, compare-os com nossas narrativas históricas. Onde nasce a realidade e onde mora o mito... Vai ser difícil dizer.


Para terminar, se todos nós somos, em potencial, grandes criadores de mitos, se Aukê partiu de uma narrativa Jê-Timbira, de onde teria vindo o nome Pedro? Claro que eu poderia garantir que a inspiração teria vindo do navegador Pedro Álvares Cabral, de Pedro i ou até de Pedro II.
É hora de confessar que histórias vêm sempre embutidas de afeto. O nome Pedro veio mesmo do meu filho (Pedro), mas bem que nosso personagem poderia ter existido em pleno século xvi no Brasil colonial do Nordeste açucareiro. Na história tudo é mesmo possível!


¹ Existem algumas variantes deste mito. Concentramo-nos na versão Canela coletada por Nimuendajú (In: Nimuendajú, Curt. As lendas da criação e destruição do mundo como fundamentos da religião dos Apapocuva-Guarani, São Paulo, Hucitec, 1987). Para uma análise mais detida deste mito, ver Da Matta (In: Da Matta, Roberto. Ensaios de antropologia estrutural. Petrópolis, Editora Vozes, 1973).