Januária Cristina Alves: “Cordel é literatura, precisa ser apresentado ao lado da Literatura Infantil”

08/11/2021

A escritora e pesquisadora Januária Cristina Alves tinha oito ou nove anos quando achou, no quartinho dos fundos da casa onde morava, uma mala preta, grande e pesada, com fecho de metal, que pertencia ao seu pai. Era um objeto que pedia para ser aberto. A então menina não resistiu ao “convite” e, naquela mesma ocasião, descobriu ali, fascinada, uma coleção de cordéis que seu pai guardava com carinho desde que era menino, quase da mesma idade que Januária tinha quando abriu a mala preta.

Ele também havia descoberto cedo os cantos e encantos dessa tradicional arte popular e começou, ainda criança, a coleção que a filha encontraria muitos anos depois.

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Desse fascínio que veio de família nasceu o livro Heróis e heroínas do cordel, organizado por Januária e lançado pela Companhia das Letrinhas em novembro. Alguns dos principais autores do cordel brasileiro estão nessa coletânea de cinco histórias, escritas por nomes como Leandro Gomes de Barros (1865-1918) - considerado o pioneiro dessa arte no Brasil -, Joaquim B. de Sena (1912-1993) e Severino Borges da Silva (1919-1991).

Para selecionar essas histórias, além de se inspirar nos cordéis da mala “de sonhar” do pai (apelido dado por ele mesmo, pois levava a maleta para o trabalho para ler na hora do almoço), Januária foi ao bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, onde fica a Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC), presidida pelo também poeta cordelista Gonçalo Ferreira da Silva.

De suas pesquisas, ela selecionou histórias clássicas do cordel brasileiro para Heróis e heroínas do cordel, que traz uma por capítulo. Todas elas têm apresentação e contextualização da própria Januária, que fala sobre os autores, o enredo, o momento histórico e as inspirações da narrativa. O livro tem ilustrações do artista plástico Salmo Dansa, posfácio do multiartista Antonio Nóbrega e quarta capa assinada pela cordelista Mariane Bigio.

Além de tradicionais, esses contos também trazem características que conhecemos das melhores narrativas contemporâneas -- e desde o começo dos tempos: personagens marcantes, cenários distantes e mágicos, aventura, emoção, reviravoltas.

“O interesse [pelo cordel] cresce, porque novas gerações estão se empoderando e se apoderando dessa fala, percebendo que têm direito à sua narrativa, sua voz”, conta a autora, que também é articulista do Blog da Letrinhas. Conversamos com ela para saber mais sobre essa forma tão nossa de literatura e poesia. 

 

Qual é a origem do cordel? É possível traçar essa história?

Januária Cristina Alves: A origem é imprecisa. Quando a gente fala de cultura popular, é complicado obter registros muito precisos, pois, lá no começo, essas histórias se transmitiam com base na memória popular; os registros vieram depois. Além disso, a cultura popular ainda é tida como algo menor. Tem uma luta ainda hoje na academia para os pesquisadores dessas manifestações populares serem valorizados. Sentimos isso com danças, comidas e outras tradições populares. Então, falamos das origens da cultura popular, o cordel inclusive, meio como o Chicó [personagem icônico de O auto da Compadecida, de Ariano Suassuna]: “Não sei, só sei que foi assim”. Somos todos meio assim, porque as tradições orais são da memória e, ao recontar, vamos refazendo, como Chicó. De toda forma, o cordel já tem um registro, de alguma maneira, ainda que cada registro seja de um jeito [vários cordéis diferentes podem contar a mesma história de outras formas, mudando rimas, por exemplo, mas mantendo o principal]. Cordel remonta muito às tradições ibéricas e acredita-se que essa produção tenha origem na Europa medieval, no tipo de literatura que circulava por lá, o chamado círculo arthuriano [as histórias sobre o Rei Arthur], sempre com heróis e heroínas.

Quando o cordel chegou ao Brasil e quem foram os primeiros autores em território brasileiro?

Januária: No Brasil, não se sabe ao certo quando chegou. É provável que tenha vindo no século XVI ou século XVII. Mas teve grande ocorrência no século XIX, com Leandro Gomes de Barros (1865-1918) sendo considerado o pioneiro e um dos grandes cordelistas nacionais. Em Heróis e heroínas do cordel temos dois textos dele. No Nordeste brasileiro, encontraram um campo fértil por causa da tradição de, nas festividades, as pessoas se reunirem para contar histórias. Quando chegou essa tradição de histórias rimadas, foi sopa no mel. Outra coisa que contribuiu [para se fixar no Nordeste]: o cordel era o jeito das notícias chegarem para as pessoas. Existe um registro muito grande de fatos verídicos da história feitos em cordel, de um jeito muito interessante. Claro que existia jornal, mas não era muita gente que sabia ler. O cordelista chegava e cantava a notícia e era um jeito de as pessoas serem incluídas. E tinha fake news. O cara sabia um pedaço da história, mas contava como podia...ia inventando, aumentando. Era “notícia com emoção”.

 

Você já comentou certa vez sobre o arco narrativo do cordel e a construção das personagens, a jornada do herói, apontando como são próximos dos de outras formas de literatura também herdeiras da tradição oral. Poderia falar mais sobre isso?

Januária: Sim, há uma jornada do herói no cordel com certeza. São personagens épicas, com história que causa impacto, de transformação, de deslocamento. Mas podemos pensar que toda história se baseia nessa estrutura, até as séries da Netflix.

 

Você vê semelhanças entre o cordel, o slam e o rap?

Januária: Para mim, o slam pega essa coisa maravilhosa do cordel que são as pelejas, essas guerras de narrativas. Essas batalhas - as pelejas - sempre foram o grande atrativo [do cordel], até porque, para entrar na peleja, precisa saber improvisar e isso é um talento: achar a rima certa, a palavra certa e encaixar num certo ritmo, num certo tempo ali. Hoje temos essa geração dos gamers, dos jogos, e o slam é um grande game, que apaixonou muitas crianças e jovens, [uma arte] que tem uma personalidade forte e veio pra ficar. E que trata de causas sociais, de temas políticos. Isso é muito interessante, porque as pessoas estão tendo acesso à palavra desse jeito envolvente, encantador, inteligente.

Quais as principais diferenças, se houver, entre os cordéis mais antigos, do começo da tradição cordelista, para os produzidos pelos autores mais conhecidos (como os que você escolheu para o seu livro) e cordéis produzidos hoje por cordelistas como Jarid Arraes e Mariane Bigio?

Januária: A arte tem isso de maravilhoso, ela se atualiza. No primeiro momento, eram folhas soltas, amarradas por cordas. Poucas cópias. O interessante era que o povo tivesse acesso. Hoje se mantém o formato das rimas, mas não é mais o único, tem ali o texto em prosa, mas se mantém o formato de folhetos, xilogravuras e feiras populares. Mas no cordel de hoje, como no de ontem e sempre, a matriz é a mesma: personagem interessante, boa história e cenário. E o suporte não é nem mais a xilo, o papel jornal, mas está em outras mídias, como YouTube, instagram, podcast. Se modernizou, por isso sobrevive também, porque se adapta. Mari e Jarid estão contando histórias e a grande diferença é a temática, que se presta mais a uma questão política e social. Não que antes não fosse. Ariano Suassuna falava sobre isso: cordel sempre foi uma forma de crítica. O cordelista falava do político de um jeito tão sutil, no subtexto, que o criticado não poderia se ofender, porque, se o fizesse, se “entregaria”.

 

Parece haver um aumento no interesse pelo cordel. O que explica isso e quais são os desafios para se divulgar esse tipo de literatura nos dias de hoje?

Januária: O interesse cresce porque novas gerações estão se empoderando e se apoderando dessa fala, percebendo que têm direito à sua narrativa, sua voz. Já o desafio é o mesmo para todos os elementos da cultura popular: o movimento de globalização maciço, que trouxe um outro modelo que veio sendo assimilado por nós. Por isso, é mais fácil comemorar o Halloween que o Dia do Saci.

 

Como você imagina que o cordel possa ser apresentado nas escolas?

Januária: Cordel é literatura, precisa estar incorporado a esse acervo, precisa ser apresentado ao lado da Literatura Infantil e Juvenil. Vejo uma trajetória do cordel nas escolas parecida com a que aconteceu com as histórias em quadrinhos: as HQs foram entrando pelas bordas. É preciso incluir o cordel no acervo, no planejamento, nas aulas e apresentar.A gente tem uma imagem muito cristalizada, engolindo e repetindo uma série de coisas sem saber que temos uma riqueza imensa. Desafio é apresentar essas histórias para que a gente goste, se aproprie e se orgulhe delas.

 

Bebês e crianças pequenas costumam gostar de rimas. O cordel é para elas?

Januária: Criança pequena ama, porque é ritmo, rima, poesia. Tem cordel de tudo, de conto de fada, de terror... E quando você lê, você quer experimentar, porque é rima, temos a musicalidade na alma brasileira… Dá vontade de co-criar, de experimentar, de fazer. As histórias de tradição oral são nossas, vamos nos apropriar delas, reconstruir e recontar. São nosso inconsciente coletivo.

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