Trecho do livro O JOGO DO BELO E DO FEIO

I. Produção do objeto pictórico Paul Klee dizia que a pintura faz ver. Não foi o primeiro nem o último a dizê-lo, mas, sendo ele grande pintor, preocupado com os desígnios das artes plásticas a ponto de inserir gráficos e palavras no quadro, na tentativa de levar a visibilidade à beira do sentido verbal, é de se esperar que sua frase encaminhe o pensamento para um terreno fértil. Não nos obriga a começar pela dualidade do quadro, ao mesmo tempo técnica de reprodução do visto e técnica de ver? Sabemos que essa ambigüidade marca a pintura de seus primórdios até a "crise" do século XX. Nesse longo período, um quadro, seja qual for a relação que a imagem mantém com o imageado, e mesmo quando esta se torna abstrata, consiste numa representação construída que sublinha aspectos da coisa ou do visível, ao contrário, por exemplo, do ready made, que é a própria coisa posta como obra de arte. Não é por essa construção de uma imagem que se refere ao imageado que convém começar a puxar o fio da meada, mantendo sempre no horizonte a ambigüidade do processo de ver? Se a pintura, pois, faz ver, é porque constrói imagens, sendo, antes de tudo, arte, techné, maneira de imprimir forma a uma matéria, como diziam os gregos, mas também, principalmente depois do Renascimento, trabalho próprio a certo tipo de gente, arte liberal, isto é, atividade reservada sobretudo a homens livres. Além do mais, é guia, condutora do olhar, técnica adquirida no aprendizado de ver além da superfície plana de uma coisa algo mais que se mostra nela, embora quase sempre pareça existir independentemente dela. É, pois, arte de representar, num sentido muito amplo do termo, vale dizer, de tornar presente algo de ausente, evento do mundo que se integra no mundo sem estar ali. Existindo no cruzamento dessas arestas, um quadro representa algo do mundo, mas de uma perspectiva que faz ver algo por meio de seus aspectos capazes de exprimir algo a mais, que não é propriamente algo determinado mas apenas sugerido. Nessa tradição pictórica - que é nossa, sem ser a de todos os povos -, nada mais natural que a figura humana, com todas as suas ambigüidades e seus segredos, venha a ser o objeto por excelência, figura que é vista e que pode ver, mantendo, desse modo, relação dupla e contínua com o mundo. Não nos enganemos, porém: essa reflexão do ver e do se ver depende tanto da maneira pela qual o ser humano é percebido na ordem do universo como de uma série de outros fatores: o modo pelo qual se narra uma cena, pelo qual se pensa como a luz faz objetos serem vistos, pelo qual materiais se compõem para aguçar a visibilidade em busca de novos sentidos e assim por diante. As pinturas, além do mais, são ditas belas e feias; em que medida essa bivalência se liga à forma pela qual elas representam algo do mundo? Nós mesmos mantemos com o mundo relações diferentes e complicadas. Desde logo, não sabemos para quem o mundo se abre. Seria para o eu com todas as suas determinações concretas, interesses e angústias, ou apenas para aquele traço que alinhava as representações pelas arestas e que os filósofos costumam chamar de eu transcendental? Seria para o eu sozinho, em seu isolamento abissal, ou para um nós coletivo, às vezes de festa, responsável pela articulação da sociabilidade? Em contrapartida, do ângulo do representado, o mundo se dá como simples totalidade de fatos ou como superposição de camadas de diferentes realidades, ou até mesmo como mundo de outros mundos? Não há como imobilizar esse fio de perguntas a não ser contando-o. É assim que direi que estamos no mundo, sem que essa afirmação me comprometa teoricamente com esta ou aquela doutrina fenomenológica; apenas tomo emprestado delas uma expressão e uma atitude. Mas seria ingrato não reconhecer, nas observações que se seguem, minha dívida com Merleau-Ponty e Heidegger no que respeita à ligação da arte com um logos, embora, no que concerne a este último filósofo, eu sempre trate de caminhar a contrapelo. Essa influência fenomenológica foi, entretanto, compensada pelo estudo de Wittgenstein, que me levou a refletir sobre a dualidade do ver e do ver como, e cuja crítica ao pensamento analítico tem me permitido continuar com minhas obsessões dialéticas. Voltemos ao quadro; ele nos reduz irremediavelmente à condição de vidente de..., o que não acontece, por exemplo, quando penetramos numa catedral, numa escultura de Richard Serra ou numa instalação, pois, ao passar por elas, outros sentidos e o próprio corpo são mobilizados a fim de despertar a experiência do belo. Como se exerce essa relação do observador com o observado, que por sua vez depende de como o pintor viu esse algo? Se este vê a tela e algo mais, aquele quase sempre se coloca diante de uma superfície pintada tanto para vê-la como para olhar para aquilo que ela representa. Se o pintor, a tela e o modelo tramam uma relação entre três coisas e o observador, por sua vez, uma relação entre uma coisa e a imagem de uma coisa possível, ambos continuam, todavia, a explorar as ambigüidades que se anunciam na gramática do verbo "ver", o ver algo e o ver como. Atividades que, além disso, estão no mesmo mundo, sendo pois conveniente tratar de entender melhor certas peculiaridades do modo pelo qual todos nós nos colocamos neste mundo. Quando crianças, não acontecia escrever nosso endereço mundanal? Agora estou escrevendo em minha casa, no bairro Jardim Morumbi, na cidade de São Paulo, no Brasil e assim por diante. Como as crianças de hoje são mais sabidas, podem continuar a série passando para outras regiões do universo. Mas, nessa experiência, note-se que localizar-se no espaço é passagem, fixar uma região remete igualmente a outra que a transcende. As partes do mundo se endereçam umas às outras, de modo que estar no mundo, mais do que nos situar numa totalidade fechada de fatos, sugere ultrapassagem, ir além de nós mesmos. É preciso, portanto, ter o cuidado de não enquadrar essa ultrapassagem na oposição interior/exterior, como se houvesse, em particular, uma esfera do real a que somente eu teria acesso imediato e exclusivo, minha consciência interna em oposição à esfera exterior a que chegaríamos intersubjetivamente. Pelo contrário, se estivesse totalmente imerso nessa interioridade, tudo aquilo que somente eu mesmo poderia apreender seria impassível de ser reconhecido por mim como algo, isto é, como caso de uma regra que só pode ser efetivamente seguida de modo coletivo. O grande desafio, como sabe todo estudante de Filosofia, não é explicar a determinação recíproca do mesmo e do outro? Ora, se há atividade de passar do mesmo para o outro é porque a identidade do percebido ou do conceito ou do próprio eu, assim como a do perceber, do conceber ou do se pôr a si mesmo, necessitam ser identificáveis por critérios, vale dizer, por regras. Ora, como sublinhou Wittgenstein, não se segue uma regra sozinho, de sorte que a questão do mesmo e do outro nos remete diretamente ao elemento da intersubjetividade e do mundo, bem como nos coloca diante do desafio de discernir as atividades responsáveis por seu entrelaçamento. Em resumo, se estar no mundo é ser passagem, isso não se explicita pela dualidade entre sujeito e objeto, dado que estes são levados por uma reflexão intersubjetiva que afeta suas próprias identidades. Daí a necessidade de estar sempre atento à forma de identidade a que estamos recorrendo quando falamos ou vemos, ao jogo pressuposto da identidade e da diferença, para que o ver e o ver algo como algo se identifiquem e se distingam. [...]