Trecho do livro PENA DE ALUGUEL

Introdução Voltemos a 1904. Nesse ano, o jornalista e escritor João do Rio publicou, na Gazeta de Notícias, uma enquete com os principais intelectuais do período. A série partiu de onze entrevistas e 25 cartas de autores, que responderam a cinco perguntas, originalmente enviadas a mais de cem pessoas. Após três anos, as respostas foram reunidas no livro O momento literário, hoje considerado um dos principais documentos sobre a vida intelectual brasileira na virada do século XX. Entre as cinco questões, está uma que o próprio autor considerava capital: o jornalismo, especialmente no Brasil, é um fator bom ou mau para a arte literária? Um século depois, a proposta desta pesquisa, que teve o apoio da Bolsa Vitae de Literatura, é dar conta das possíveis respostas, em vários momentos literários brasileiros, à questão que angustiava o repórter João do Rio provavelmente tanto quanto um autor contemporâneo como Bernardo Carvalho: trabalhar na imprensa atrapalha ou ajuda alguém que pretende ser escritor? E ainda acrescentar outra pergunta: para a literatura, o que significou essa aproximação entre o escritor e o jornalista? Será que é apenas um salário no fim do mês a contribuição que a imprensa vem dando à ficção e à poesia brasileiras desde meados do século XIX, quando os primeiros homens e mulheres de letras começaram a se infiltrar nas redações? É possível que, trabalhando com a mesma matéria-prima, a palavra, em algum momento o muro que separa um discurso do outro tenha se tornado apenas uma linha tênue? Ou que alguns aspectos da narrativa jornalística tenham acabado por se incorporar ou mesmo renovar o texto literário (e vice-versa)? Esta pequena história comparada da literatura e da imprensa brasileiras divide-se em cinco períodos, concentrando-se em seus principais representantes. Em resumo, primeiro dá conta dos primórdios da imprensa, especialmente o período que vai de 1808 a 1830, quando o Brasil publica seus primeiros jornais e livros. Uma segunda etapa, que vai de 1840 a 1910, narra a transição entre o reinado do publicista e a república dos homens de letras. Seus principais personagens são José de Alencar, Machado de Assis, Olavo Bilac, Coelho Neto, Lima Barreto e João do Rio. O terceiro período discute a era da modernização, entre 1920 e 1950, com destaque para nomes como Graciliano Ramos, Monteiro Lobato, Oswald de Andrade, Nelson Rodrigues, Carlos Drummond de Andrade, Jorge Amado e Erico Verissimo. O quarto sustenta que de 1960 a 1980 houve um boom, com o crescimento considerável da ficção feita por jornalistas no Brasil. Aí a lista é enorme, e inclui quase todos os ficcionistas e boa parte dos poetas do período: Antonio Callado, Antônio Torres, Caio Fernando Abreu, Carlos Heitor Cony, Carlinhos Oliveira, Ferreira Gullar, Ivan Angelo, João Antônio, José Louzeiro, Otto Lara Resende, Paulo Francis, para ficar só entre os principais. O quinto e último período vai de 1980 a março de 2004 e mostra o descarte da experiência tradicionalmente fornecida pela imprensa. Os escritores que trabalham em jornal progressivamente se afastam das editorias de hard news, como Política e Polícia, e passam a preferir as editorias de Cultura, dialogando diretamente com o mundo intelectual e o meio editorial. Vale explicar que só considerei jornalistas aqueles que efetivamente trabalharam na imprensa como repórteres, pauteiros, chefes de reportagem, redatores e editores, assim como escritores apenas os que produziram ficção ou poesia. Não estão incluídos colaboradores avulsos, que se dedicaram ao articulismo, à crônica ou à crítica, nem jornalistas que escreveram livros de não-ficção, como biografias, grandes reportagens e ensaios. Essa divisão nos leva à questão "o que é um autor?", desta vez sob uma ótica comparativa. O que é um autor jornalista e o que é um autor literário? Como e quando os dois campos se constituem em separado? Quais as diferenças entre o trabalho do escritor na literatura e na imprensa? De que forma os dois gêneros se cruzam? A partir de que momento as hierarquias entre eles são naturalizadas? Se na fase dos grandes publicistas, como Hipólito da Costa; dos políticos-jornalistas-escritores, como José Bonifácio; e mesmo na dos polígrafos, como Olavo Bilac, os dois tipos de homens de letras ocupavam praticamente o mesmo espaço no jornal e na vida literária, a partir da virada do século XX a literatura se constituiu como um campo separado, em que um ideal de arte pura e desinteressada se contrapõe à possibilidade de profissionalização, sinônimo de massificação, do texto jornalístico. Aos poucos, os escritores começam a se afastar e a serem afastados do jornal. O processo se exacerba a partir do great divide modernista, entre as décadas de 20 e 50, que, não por acaso, coincide com o primeiro boom do mercado editorial brasileiro e com a crescente industrialização dos jornais. Mas já nas respostas à questão de João do Rio sobre a influência do trabalho na imprensa nas obras literárias é possível verificar uma certa ansiedade de contaminação entre os reinos da arte e da técnica. De um lado, há posições como a de Luis Edmundo, para quem o jornalista mata a sua arte por causa de 300 mil-réis por mês. De outro, defesas radicais da imprensa, como a de Medeiros e Albuquerque, que compara a baixa produtividade dos literatos a uma prisão de ventre intelectual, para a qual o exercício braçal do jornalismo seria o melhor remédio. O resultado é um empate: dos 36 intelectuais que responderam ao questionário, dez afirmaram que o jornalismo prejudica a vocação literária, onze disseram que não, onze responderam que tanto ajuda quanto atrapalha e quatro não quiseram ou não souberam responder. Uma vez demarcadas as fronteiras, a literatura será identificada com a alta cultura e o jornalismo com a cultura de massa. Essa separação será tão naturalizada que se esquecerá que as duas atividades começaram juntas no Brasil, em 1808, quando finalmente foi permitida a publicação de impressos, com a vinda da Coroa Portuguesa. E também que a primeira se beneficiou enormemente da segunda para sua difusão, em forma de folhetim, durante todo o século XIX e o início do XX. Na prática, as fronteiras entre arte e mercado começam a desaparecer justamente quando parecem mais fortemente estabelecidas. Com a modernização da indústria editorial brasileira, surge uma literatura de mercado que já ousa dizer seu nome, praticada por autores como Benjamin Costallat, Monteiro Lobato, Erico Verissimo e Jorge Amado, todos eles best-sellers com experiência prévia na imprensa. Paralelamente, cresce a necessidade de especialização da atividade jornalística. O que faz com que escritores já consagrados, como Graciliano Ramos, passem a ser incorporados não mais como cronistas, críticos ou articulistas, mas como mão-de-obra interna, vestindo em geral o uniforme do copidesque, cuja função era consertar erros, vícios e defeitos do texto jornalístico. Curiosamente, será por meio do trabalho na imprensa de um Oswald de Andrade, de um Carlos Drummond de Andrade e de um Graciliano Ramos, a partir dos anos 20, que a literatura (ou, antes, o beletrismo) será expulsa do jornal. Limpando o terreno para uma separação radical das técnicas literárias e jornalísticas que culminou com a importação do modelo americano de objetividade, nos anos 50, esses escritores transformaram sua busca por um texto moderno, expurgado de barroquismos e seco de adjetivos, numa cruzada contra ornamentos e penduricalhos na imprensa. Mas o manual de redação baseado na cartilha modernista-realista teria que enfrentar a ira de autores como Nelson Rodrigues, para quem a divisão entre texto jornalístico e literário era inviável. Inconformado com as novas regras, que proibiam os pontos de exclamação, as reticências e os adjetivos, Nelson pregou nos copidesques o rótulo de idiotas da objetividade. De mero coadjuvante, como o repórter sensacionalista que freqüentou praticamente toda a obra de Nelson Rodrigues, o jornalista se transformou no grande protagonista da literatura brasileira. Entre os anos 60 e 80, ele se fez presente, por exemplo, em A festa, de Ivan Angelo; Cabeça de negro e Cabeça de papel, de Paulo Francis; Um novo animal na floresta e Domingo 22, de Carlinhos Oliveira; no romance-reportagem e nas memórias da guerrilha. Seu engajamento propiciou uma revisão no conceito benjaminiano de narrador. Quem tem melhores condições para contar a história: quem a vê a partir de um ângulo privilegiado ou quem a vive na própria pele marcada por tortura, marginalidade, engajamento, patrulhismo ou cooptação? O que acontece quando o mesmo personagem ocupa as duas posições? Em meio ao embate com a censura da ditadura militar, a ficção brasileira viveu seu melhor momento em termos de vendas. Uma ficção parajornalística de certa forma substituiu a imprensa amordaçada em sua missão de informar. Mas não apenas isso. Se, hoje, os escritores se ressentem da brutal retração do interesse dos leitores pela literatura brasileira contemporânea, ela pode ser creditada não apenas ao fim da censura, que devolveu à imprensa suas tarefas usurpadas, mas ao fim de um projeto de Brasil, que nasceu com o romantismo, viveu seu auge entre os anos 30 e 50, orientou praticamente toda a literatura dos anos 60 aos 80 e quase desapareceu nos anos 90. "Que país é este?" deixou de ser a grande questão que move a ficção brasileira e seus leitores. Pelo menos até que a violência saltasse das manchetes dos jornais para as páginas dos livros, telas de cinema e faixas de cds. A aparente despolitização da ficção contemporânea está relacionada ao novo perfil do escritor jornalista. Para identificá-lo, reeditei o projeto do repórter João do Rio e fiz uma nova enquete, entre 2001 e 2004. Meu objetivo principal era saber como os novos autores responderiam à pergunta-chave de O momento literário, que acabou desdobrada em treze outras. Por exemplo: pretendia ser escritor quando ingressou no jornalismo? A linguagem dos jornais oferece um aperfeiçoamento formal ou bloqueia o texto literário? A profissionalização através da imprensa permite a sobrevivência financeira do escritor ou o afasta de seu caminho? Até que ponto a obra literária é influenciada pela atividade jornalística? Foram ouvidos 32 escritores jornalistas de todo o Brasil que começaram a se destacar a partir dos nos anos 90: Antonio Fernando Borges, Arnaldo Bloch, Arthur Dapieve, Bernardo Ajzenberg, Bernardo Carvalho, Cadão Volpato, Carlos Herculano Lopes, Carlos Ribeiro, Cíntia Moscovich, Fabrício Marques, Fernando Molica, Gisela Campos, Heloisa Seixas, Heitor Ferraz, João Gabriel de Lima, João Ximenes Braga, Jorge Fernando dos Santos, José Castello, Juremir Machado da Silva, Luciano Trigo, Luiz Ruffato, Marçal Aquino, Marcelo Coelho, Marco Pólo, Mario Sabino, Michel Laub, Paulo Roberto Pires, Rosa Amanda Strausz, Ronaldo Bressane, Sérgio Alcides, Sergio Rodrigues e Toni Marques. As entrevistas estão reproduzidas integralmente em www.penadealuguel.com.br. Suas respostas permitem compreender os dilemas específicos de um momento em que literatura e jornalismo já não freqüentam mais as mesmas páginas. E como, nestes cem anos de convivência, a separação entre os dois campos foi naturalizada, eventualmente apagada e hierarquicamente invertida. 1. Momento literário 1900 O jornal é mais que um livro, isto é, está mais nas condições do espírito humano. Nulifica-o como o livro nulificará a página de pedra? Não repugno admiti-lo. Machado de Assis A verdade é que Machado de Assis prometeu, mas não respondeu. Aluísio Azevedo mandou uma carta simplesmente para dizer que não tinha tempo. Artur Azevedo e Raul Pompéia, nem isso. Lima Barreto não foi procurado. Apenas 36 intelectuais aceitaram participar da pesquisa de João do Rio, publicada inicialmente na Gazeta de Notícias, entre os anos de 1904 e 1905, e reunida no livro O momento literário em 1907. Destes, onze foram entrevistados pessoalmente e 25 por carta. Podemos resumir suas respostas da seguinte maneira: dez acharam que o jornalismo prejudica a vocação literária; onze disseram que é favorável; onze opinaram que ajuda o aspirante a escritor, mas também o atrapalha; três não responderam à questão; um não entendeu a pergunta. As posições contrárias ao jornalismo podem ser exemplificadas por Luis Edmundo, para quem há "nesta terra duas instituições fatídicas para o homem de letras: uma é a política, a outra é o jornalismo", profissão em que "o desgraçado mata sua arte a 300 mil-réis por mês". Ou Guimarães Passos, que compara o jornalismo a um balcão. Ou ainda Clóvis Beviláqua, quando afirma que o jornalismo "esgota as energias, dispersa os esforços e alimenta a superficialidade", não passando de "uma forte projeção de luz envolvida em densa fumarada". Elísio de Carvalho é ainda mais enfático. Para ele, o jornalismo é "o mais pernicioso dos fatores", resumindo seus três efeitos mais nefastos: perverte o estilo, rebaixa a língua e relaxa a cultura. Há os que ficam em cima do muro, como Pedro Couto: "Como função habitual, evidentemente aniquila boas vocações literárias", afirma. Mas sem essa mediação entre escritor e público, "como poderiam começar a aparecer belos talentos que posteriormente chegam a impor-se até aos editores?". Padre Severiano de Resende também acha que o jornalismo é bom e mau ao mesmo tempo. "O poeta ou prosador que quiser ver a sua obra passar de coisa escrita a coisa impressa tem que se submeter ao jornal. O jornal é inevitável, precisamos sofrê-lo", diz. Mas, para ele, se abre caminho, a imprensa também é capaz de esterilizar um escritor - porque esgota as forças e exaure o tempo - e dispersá-lo - porque não admite a reflexão e o esmero da forma. "Como Saturno, devora a vida de seus próprios filhos." O melhor exemplo de ambigüidade é dado por Silva Ramos, para quem o jornalismo "para a arte literária é mau, para o literato é bom". Mau por seu aspecto mercantil, incompatível com a arte pura. Bom, ou melhor, "ótimo", porque torna "impossível para todo o sempre a reprodução do quadro lendário: o poeta morrendo de fome...". Já outro adepto do meio-termo, Rocha Pombo, inverte os termos: para o jornalista é mau, mas para a arte é bom, porque revela e destaca a produção literária. É justamente essa chance de divulgação da obra ficcional ou poética que faria do jornalismo um mal necessário, como afirma Gustavo Santiago. Mas o preço seria alto: a maleabilidade exigida do jornalista, a pressa com que é obrigado a trabalhar, a "banalidade" e "leveza" a que seria forçado são vistas pelo poeta como "uma lenta asfixia da originalidade, o assassinato frio e pausado do poder criador peculiar a cada individualidade". O que não significa que não seja "um magnífico meio de reclame... para nossas obras", diz. O jornalismo também seria um mal "necessário, inevitável", nas palavras de Raimundo Correia. No entanto, a imagem que tem da profissão não é das melhores: "O jornalismo não é um fator, mas um subtraendo", declara. Medeiros e Albuquerque é, entre todos os entrevistados, quem faz uma defesa mais ferrenha do jornalismo, desmerecendo mesmo os literatos "puros", a quem chama de ratasé e fruits secs, "que, produzindo com largos intervalos, pequenas coisinhas chocas, fazem de si mesmos uma alta idéia, atribuindo a raridade da produção à sua preciosidade".10 Sem papas na língua, ele compara a baixa produtividade do artista a uma espécie de prisão de ventre intelectual, para a qual o exercício braçal do jornalismo seria o melhor remédio. E adota uma postura que já antevê a discussão pós-moderna sobre a divisão artificialmente construída entre cultura popular e erudita. Sempre que uma profissão usa dos recursos de qualquer arte para fins industriais, os cultores da arte se indignam e depreciam sistematicamente os profissionais, que assim se põem na vizinhança. Quanto mais o emprego dos meios é o mesmo e há, portanto, perigo de serem às vezes confundidos, mais também os artistas ostentam o seu desprezo e procuram cavar um fosso profundo entre os dois domínios. Num movimento dialético, Medeiros e Albuquerque dialoga consigo mesmo, ou com um interlocutor imaginário que bem poderia ser o próprio João do Rio (ainda mais que a principal hipótese para a identidade do mentor anônimo que aparece no início e no fim do livro é de que ele seja justamente Medeiros e Albuquerque, a quem a obra é dedicada). Como um advogado do diabo, esse interlocutor questiona: "Mas o jornalismo muitas vezes não se faz por convicção e sim por negócio". Ao que Medeiros e Albuquerque argumenta que também "há poemas friamente rimados por indivíduos que não vibraram absolutamente nada ao fazê-los". O interlocutor anônimo replica: "Mas os recursos do jornalismo são grosseiros". O escritor discorda. Não vejo bem por quê. São diferentes do romance ou do conto, mas visam o mesmo fim: usar de palavras escritas para impressionar cérebros humanos, fazer vibrar inteligências e corações [...] Por que razão há nisso menos arte do que em amassar meia dúzia de substâncias coloridas, borrar uma tela, e dar assim a impressão de uma paisagem [...]. Para o acadêmico, "os que acham que não produzem obras-primas, porque estão jungidos aos trabalhos da imprensa, se dispusessem de todo o tempo preciso e não tivessem necessidade de trabalhar, talvez não produzissem nem nada na imprensa nem na literatura". Certamente, a necessidade de ganhar a vida pode impedir "que homens de certo valor deixem obras de mérito", mas isso poderia acontecer se tivessem qualquer outro emprego, acredita. Curvelo de Mendonça - que faz questão de frisar que é insuspeito, porque nunca foi jornalista - também é enfático: considera a imprensa mais importante do que a literatura. "[Os jornalistas] são agentes mais poderosos do nosso movimento literário do que os egoístas que, insensíveis ao meio, de quando em quando se apresentam, vaidosos, de ponto em branco, com um livro na mão. Esses livros, algumas vezes, são tão úteis ao Brasil... como à China." Além de útil, o jornal é ainda, como afirma Garcia Redondo, o espaço de consagração por excelência para o escritor, sem o qual "a arte estaria às escuras". Se infelizmente "só têm grande ração os que assim vivem" presos ao jornal, como afirma João Luso, a frustração com a impossibilidade de se tornar escritor profissional no Brasil não é exclusiva dos jornalistas. Inglês de Souza chama a atenção para o fato de que "também há diretores e amanuenses de secretaria e outros rabiscadores de papel que são excelentes poetas e grandes romancistas. O que não quer dizer que a burocracia seja fator bom para a arte literária". O mal não seria o jornalismo em si, mas a falta de mercado para a literatura. É o que também admite o magistrado e poeta Rodrigo Otávio. Em nossa terra, salvo exceções que se contam, as letras ficam no domínio do diletantismo. Muitos de nós, os chamados homens de letras brasileiros, somos realmente, na generalidade, professores, empregados públicos, advogados, jornalistas; muitos de nós, eu mesmo talvez, poderíamos ser, na França, por exemplo, homens de letras no sentido preciso, restrito da expressão. Aqui, ainda o não somos e não será possível sê-lo enquanto a literatura não for uma profissão, um meio remunerador e confessável. Por enquanto é uma ocupação de segunda, trabalho para as horas vagas, para o tempo que nos deixam as lides de nossa ocupação normal e principal. Essa frustração toma corpo num momento muito especial para a literatura brasileira, quando os homens de letras se tornam verdadeiras celebridades. Momento, como descreve João do Rio, em que "há da parte do público uma curiosidade malsã, quase excessiva. Não se quer conhecer as obras, prefere-se indagar a vida dos autores". Em que o Brasil, ou pelo menos o Rio de Janeiro em torno da rua do Ouvidor, torna-se "um país de poetas", onde fervilham aspirantes a literatos nos cafés e nas livrarias. E não eram poucos os que acalentavam o desejo de ter seu nome "impresso em pequenas letras de ouro nas lombadas de marroquim, enfileiradas nas estantes ao lado de outros e outros", como confessa Rodrigo Otávio a João do Rio. Muitos viriam das camadas médias e baixas da população. Grande parte das províncias. Centro político e cultural do país, o Rio de Janeiro viu sua população saltar de 691 mil habitantes, em 1900, para 1,157 milhão, vinte anos depois. Se a Belle Époque tropical é considerada um período de estagnação literária, em termos estritamente estéticos, por outro lado ela desenvolveu as condições sociais para a profissionalização do trabalho intelectual. E também para a sua massificação. Ao contrário do que sonhavam os escritores, porém, essa profissionalização se daria não por meio da arte, a literatura, mas do jornalismo, a indústria. Mudanças econômicas, sociais, tecnológicas e demográficas permitiram a proliferação de jornais na virada do século, criando centenas de empregos. E formando um público para a literatura nacional. Periódicos como Correio Mercantil, Diário do Rio de Janeiro, Jornal do Commércio, O Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil, O País, Gazeta de Notícias, Correio da Manhã, A República, A Noite e O Mequetrefe dividiam espaço com a Revista Brasileira, A Revista Ilustrada, Fon-Fon, Floreal, A Careta, Ilustração do Brasil, O Riso, Kosmos e muitos outros jornais e revistas nascidos a partir da rápida evolução das técnicas de impressão. Durante esse processo de modernização, conceitos como profissionalização e massificação passam a ser sinônimos, o que explica o misto de empolgação e resistência com que é visto o trabalho da imprensa nos depoimentos a João do Rio. Os jornais e revistas tinham como trunfo servirem de berçário, vitrine, pedestal e mesmo de trampolim para o homem de letras, encarregando-se do recrutamento, da visibilidade e dos mecanismos de consagração dos escritores. Era a imprensa que dava as condições de sobrevivência e de divulgação para a produção dessa massa crescente de intelectuais brigando por um lugar ao sol. Segundo Sergio Miceli: Em termos concretos, toda a vida intelectual era dominada pela grande imprensa, que constituía a principal instância de produção cultural da época e que fornecia a maioria das gratificações e posições intelectuais. Os escritores profissionais viam-se forçados a ajustar-se aos gêneros havia pouco importados da imprensa francesa: a reportagem, a entrevista, o inquérito literário e, em especial, a crônica. Como resume o poeta simbolista e redator do Jornal do Commércio Félix Pacheco: "Toda a melhor literatura brasileira dos últimos 35 anos fez escala na imprensa". Daí a ansiedade quanto à questão jornalismo-literatura. Estaria o trabalho burguês e assalariado aniquilando o artista, desinteressado e boêmio? Ou, ao contrário, abrindo as portas da fama, da prosperidade e do coração dos leitores? São perguntas difíceis, como comprova o empate técnico nas respostas da enquete de O momento literário. [...]