Trecho do livro OS DENTES FALSOS DE GEORGE WASHINGTON

Introdução O Pai da pátria lutando contra a dor de dente? Não foi a menor de suas batalhas, e ele a acabou perdendo. Após derrotar os britânicos e vencer a primeira eleição à presidência, foi empossado em 1789 com um único dente na boca, um pré-molar inferior esquerdo. Se você olhar bem, perceberá o efeito das baixas no front dentário examinando seus retratos - não o de Gilbert Stuart na nota de um dólar, nem o famoso Stuart de 1796 em que o artista colocou algodão por trás dos lábios de Washington de modo a dar-lhes uma aparência mais natural, mas o retrato de 1779 de autoria de Charles Willson Peale, que mostra a cicatriz na cova abaixo da maçã esquerda do rosto, resultado, ao que parece, da fístula de um dente infeccionado. Washington recorreu aos serviços dos mais famosos dentistas do país. Possuía uma vasta coleção de dentes falsos, feitos de todo tipo de material: de marfim a presas de morsa, de presas de hipopótamo a dentes de outros homens. E não estava sozinho na guerra contra os males dentários. Seus contemporâneos provavelmente se preocupavam mais com as dores nas gengivas do que com a nova Constituição em 1787. Mas era uma gente esquisita, se observada de perto. Na verdade, tudo o que se refere ao século XVIII é estranho, quando examinado em detalhe. A carruagem do marquês de Sade fica presa num congestionamento e, num acesso de fúria, ele enterra a espada na barriga de um cavalo. O chevalier d’Eon anuncia que é mulher e bate-se em duelos vestido com roupas femininas. Lafayette decora sua casa em Paris com índios americanos em trajes nativos, enquanto Maria Antonieta se veste de camponesa e constrói uma aldeia nos jardins de Versalhes. O século XVIII está sempre adotando disfarces e mudando de fantasia. Está repleto também de lições cívicas. Produz declarações - de independência na América, dos direitos do homem na França - e publica tratados: Do espírito das leis, Do contrato social. Mas adiciona estranhos caprichos às apologias da liberdade. Montesquieu retoma sugestões de Maquiavel e imagina uma revolução eclodindo em um harém. Rousseau vale-se de Hobbes numa tentativa de vincular a democracia à Vontade Geral. E Mirabeau invoca Rousseau com o intuito de manipular a Bolsa. Visite o século XVIII e você voltará com a cabeça rodando, pois ele é incessantemente surpreendente, inesgotavelmente interessante, irresistivelmente estranho. O gosto pela estranheza não condiz com os sabores favoritos da história nos Estados Unidos, mas poderia produzir alguns efeitos positivos, no mínimo como antídoto à falsa consciência histórica. Quando o país se vê diante da catástrofe, os americanos freqüentemente se voltam para os Pais Fundadores em busca de ajuda, como se pudéssemos abrir uma linha direta até o século XVIII e explorar uma fonte de sabedoria. Durante as discussões sobre o afastamento dos presidentes Nixon e Clinton, por exemplo, tentamos encontrar uma saída para a crise examinando com lupa cada pedaço de papel produzido pelos homens que haviam sentado na Assembléia Constituinte. Entretanto, eles viviam num mundo diferente do nosso. Examine a correspondência entre Jefferson e Madison e você topará com observações como esta: “A terra pertence sempre à geração contemporânea [...]. Cada Constituição, portanto, e cada lei, expira [sic] naturalmente ao final de dezenove anos. Se forem levadas a durar mais, trata-se de um ato de força, e não de direito”. Se nos aventurarmos fundo o bastante pelo “mundo perdido de Thomas Jefferson”, como foi chamado por Daniel Boorstin, é bem provável que acabemos nos perdendo. Este livro oferece um guia para o século XVIII, não para todo esse período (o que exigiria um tratado em vários volumes), mas para alguns de seus recantos mais curiosos e singulares, e também para seu tema mais importante, o processo do Iluminismo. Tive a idéia de escrever um guia de viagem desse tipo há muito tempo, quando tentava seguir os passos de Jefferson em Paris. Seu rastro levou às vidas de franceses que misturavam a paixão idealista pela América com uma tumultuada atividade política na rua Grub. Um deles, Étienne Clavière, chegou a ser pego trocando socos na Bolsa de Paris, e suas negociatas o envolveram simultaneamente nos projetos de fundação de uma colônia utópica em Ohio e em planos para derrubar o governo instalado em Versalhes. Outro americanófilo, Jacques-Pierre Brissot, aparecia como espião nos arquivos do tenente-general de polícia. As linhas de investigação abriam para um território tão pouco familiar que finalmente me decidi a acompanhá-las em vez de seguir Jefferson, e passei as décadas seguintes vagando pelo campo de estudo conhecido na França como história das mentalidades. Os ensaios reunidos aqui são relatos de campo sobre essa experiência. Mas eles não percorrem todo o mapa do século XVIII. Concentram-se em quatro temas inter-relacionados: conexões franco-americanas, a vida na República das Letras, modos de comunicação e, por fim, formas de pensamento peculiares ao Iluminismo francês. Cada um desses temas oferece uma via de acesso ao remoto mundo mental do século XVIII, mas cada um também tem alguma afinidade com assuntos contemporâneos, e isso levanta um problema. “Não cometerás anacronismo” é o primeiro mandamento do historiador. Podemos violá-lo se estabelecermos conexões entre o presente e o passado. O perigo do “presentismo”, como às vezes é chamado, é mais insidioso do que parece. Poucos historiadores garimpam o passado em busca de lições morais ou imaginam Washington como um de nós, vestido em trajes de época. Mas como podemos vê-lo a não ser por meio de nossos próprios olhos, atravessando com o olhar nossa própria época? Será que não existe um viés presentista inscrito no próprio enquadramento da nossa percepção? E como podemos ter uma visão clara dele mesmo quando contemplamos as pinturas de Gilbert Stuart e Charles Willson Peale? Não existe acesso ao passado sem mediação. Os historiadores lidam com esse dilema abraçando um éthosprofissional. Eles tentam reconstruir o passado “como realmente era”, de acordo com padrões estabelecidos por Ranke a partir de Tucídides. Mas esse compromisso tem um preço, pois a história profissional tende a ser esotérica, e os historiadores profissionais freqüentemente escrevem uns para os outros, isolados do público em geral por um muro protetor de erudição. Este livro tem o propósito de romper essa barreira. Foi escrito para o leitor com um razoável grau de instrução, mas não especialista, e pretende fornecer uma perspectiva histórica para questões atuais, tais como: A adoção do euro desafia noções a respeito da identidade da Europa? A internet criou uma nova sociedade da informação? A obsessão com as vidas privadas de figuras públicas põe a nu deficiências da cultura política? Ao projetar essas perguntas sobre um pano de fundo do século XVIII, penso que seja possível vê-las sob uma nova luz, ao mesmo tempo que desfrutamos de uma visão renovada do século XVIII. Isso pode soar como anacronismo desavergonhado. Espero, entretanto, subjugar o elemento presentista implícito em qualquer retrato do passado tomando consciência dele e colocando-o bem à vista. Minha tese não é de que o século XVIII era estranho em si mesmo - Washington não achava esquisito o fato de não dispor da odontologia do século XXI -, mas de que é, sim, estranho para nós. Ao confrontar essa estranheza, podemos conhecê-lo melhor. Também podemos ser capazes de combater uma ameaça que vem do extremo oposto, e que os franceses chamam de passéisme. Uma obsessão pelo passado pode distorcê-lo ao amplificar tudo o que o torna peculiar e ao dar um destaque desproporcional a suas singularidades. Esse pecado recebe um nome diferente entre os antropólogos: othering (“alterização”). Há muitos anos eles vêm alertando contra a atribuição de uma excessiva alteridade a outras culturas. Insistir no caráter único e exótico de um outro povo poderia significar uma incompreensão que o coloca fora de nosso alcance. Analogamente, fazer o passado aparecer como uma terra estrangeira demasiado remota pode ser o mesmo que vedar o acesso a ele. Em vez de reificar culturas estranhas na esperança de capturar algo presumido como sua essência, precisamos interrogá-las. Precisamos aprender a falar suas línguas, fazer as perguntas certas às fontes relevantes e traduzir de volta as respostas para um idioma que possa ser compreendido por nossos contemporâneos. Se você coloca em prática esse programa, não há como evitar uma confrontação com sua própria subjetividade. A história, assim como a antropologia, tem-se deslocado para uma tendência auto-reflexiva, mas não precisa sucumbir ao egocentrismo, nem ao etnocentrismo, como espero que estes ensaios mostrem. Alguns deles estão escritos na primeira pessoa do singular, o que costumava ser um tabu entre profissionais que tentavam criar uma ilusão de objetividade mantendo uma distância retórica decorosa entre seus temas e eles próprios. Em vez de negar a subjetividade, tento neste livro honrar um segundo mandamento, “Não serás o outro”, mesmo que ele entre em choque com o primeiro. Não vejo saída fácil para escapar do duplo risco do passéisme e do presentismo, exceto viajar para a frente e para trás através dos séculos, em busca de novas perspectivas. Mas esse, tal como o entendo, é o valor da história: não ensinar lições, mas fornecer perspectiva. Também é algo prazeroso, especialmente para aqueles que visitam o século XVIII. A era dos Pais Fundadores tinha assuntos sérios pela frente, mas também tinha diversão. Ela dava bananas, dançava com extravagância, baixava o sarrafo e buscava a felicidade em todas as suas formas. Infelizmente, também tinha dentes ruins. Qualquer pessoa que passeia pelo século XVIII topa a todo instante com a dor de dente. O personagem mais famoso da Paris setecentista, sem contar o carrasco público, era Le Grand Thomas, um tira-dentes que atendia no Pont-Neuf e que era uma figura e tanto, de acordo com a descrição feita por um contemporâneo: Podia ser reconhecido a grande distância por seu tamanho gigantesco e pela amplitude de suas roupas. Montado numa carroça de ferro, com a cabeça erguida e coberta de plumas brilhantes, ele [...] fazia sua voz viril ressoar até as duas extremidades da ponte e as duas margens do Sena. Era rodeado por uma platéia confiante; as dores de dente pareciam expirar a seus pés. Seus fanáticos admiradores, como uma inundação sem fim, apinhavam- se em torno dele e nunca deixavam de fitá-lo. Mãos erguiam-se no ar, implorando suas curas, e médicos podiam ser vistos afastando-se a passos rápidos pela calçada, resmungando com inveja daquele sucesso. A maioria de nós não se importa muito com os dentes, exceto pela ocasional injeção de anestesia dada pelo nosso dentista. Se nos puséssemos a escutar o século XVIII, ouviríamos a humanidade rangendo os dentes, fossem estes como fossem, numa batalha constante contra a dor. Nem mesmo o rei estava imune. Os médicos de Luís XIV quebraram sua mandíbula na tentativa de extrair molares apodrecidos. E o culto a Washington deve muito a suas dentaduras. Meu próprio dentista me garante que os dentes falsos do Pai Fundador aparecem em toda parte nos manuais odontológicos e que piadas sobre eles são moeda corrente nas escolas de odontologia. Por exemplo: Estudante de odontologia A: Por que George Washington parece sofrer tanto na nota de um dólar? Estudante de odontologia B: Dentaduras de madeira. Estudante de odontologia A: Não. É porque ele não conseguiu chegar à nota de vinte dólares. Washington realmente usava dentes falsos de madeira? Eu pensava tê-los visto há muito tempo em Mount Vernon, mas Mount Vernon agora tem uma página na internet que alerta que os dentes de madeira são um mito. Talvez eu devesse tê-los extraído do capítulo 1 - e também do capítulo 4, onde reaparecem brevemente -, mas mantive-os mesmo assim, porque pertencem à dimensão mítica da história, que é outro assunto deste livro. Os mitos moldam as mentalidades, e também podem ser encontrados em lugares estranhos, como salões do século XVIII, onde abasteceram Condorcet de material para imaginar a si próprio como um bourgeois de New Haven e deram a Brissot a oportunidade de procurar americanos exóticos em Paris - não apenas Lafayette e seus índios, mas Hector Saint John de Crèvecoeur, o normando transformado em fazendeiro americano que passava por perito em nobres selvagens. A própria internet está cercada por um mito: a idéia de que ela veio anunciar uma nova fase da história, a “era da informação”. Também a esse respeito o século XVIII nos oferece uma oportunidade de aguçar nossa consciência histórica, pois aquela também foi uma era de informação com seus próprios meios de comunicação, e eles transmitiram mensagens que ainda podem ser recuperadas na documentação que restou. Num dia produtivo de pesquisa, pode-se até juntar partes do sistema de comunicação pelo qual elas fluíram. Essa tarefa histórica coincide com a meta geral deste livro: abrir linhas de comunicação com o século XVIII e, ao segui-las até suas origens, compreender o século “como ele realmente era”, em toda a sua estranheza. 1. O processo do Iluminismo: os dentes falsos de George Washington Vivemos numa era de inflação: dinheiro inflacionado, cargos inflados, cartas de recomendação infladas, reputações infladas e idéias infladas. O exagero publicitário generalizado tem afetado nossa compreensão do movimento inicial da cultura política moderna, o Iluminismo setecentista, porque também ele tem sido amplificado de tal maneira que não seria reconhecido pelos homens que o criaram. Inicialmente irrigado com uns poucos bons mots em alguns salões parisienses, ele se tornou uma campanha para esmagar l’infâme, uma marcha do progresso, um espírito da época, uma fé secular, uma visão de mundo a ser defendida, combatida ou transcendida, e a fonte de tudo o que era bom, mau e moderno, incluindo o liberalismo, o capitalismo, o imperialismo, o chauvinismo masculino, o federalismo mundial, o humanitarismo da Unesco e a Família Humana. Qualquer um que tenha contas a ajustar ou uma causa a defender começa pelo Iluminismo. Nós, acadêmicos, contribuímos para a confusão porque criamos uma imensa indústria, os estudos do Iluminismo, com suas próprias associações, jornais, séries de monografias, congressos e fundações. Como todos os profissionais, continuamos expandindo nosso território. Segundo o último levantamento, havia trinta associações profissionais em seis dos sete continentes (a Antártica ainda resiste), e nos nossos últimos congressos mundiais ouvimos trabalhos sobre o Iluminismo russo, o Iluminismo romeno, o Iluminismo brasileiro, o Iluminismo josefiniano, o Iluminismo pietista, o Iluminismo judeu, o Iluminismo musical, o Iluminismo religioso, o Iluminismo radical, o Iluminismo conservador e o Iluminismo confucionista. O Iluminismo está começando a ser tudo e, portanto, a não ser nada. I Proponho a deflação. Tomemos o Iluminismo como um movimento, uma causa, uma campanha para mudar as mentes e reformar as instituições. Como todos os movimentos, ele teve um começo, um meio e, em alguns lugares, mas não em outros, um fim. Foi um fenômeno histórico concreto, que pode ser situado no tempo e circunscrito no espaço: Paris na primeira parte do século XVIII. Claro que teve suas raízes. Que movimento não as tem? Elas vinham da Antigüidade e cobriam o mapa da Europa. A dúvida cartesiana, a física de Newton, a epistemologia lockeana, as cosmologias de Leibniz e Spinoza, a lei natural de Grotius e Pufendorf, o ceticismo de Bayle, a crítica bíblica de Richard Simon, a tolerância dos holandeses, o pietismo dos alemães, as teorias políticas e o livre pensamento dos ingleses. Poderíamos fazer uma lista detalhada das fontes filosóficas, e muitos historiadores a fizeram. Mas compilar as fontes é errar o alvo, pois o Iluminismo era menos que a soma de suas partes filosóficas, e poucos dos philosophes foram filósofos originais. Eles eram homens de letras. Só raramente desenvolveram idéias não sonhadas pelas gerações anteriores. Compare Voltaire com Pascal, Condillac com Locke, Diderot com Descartes, Laplace com Newton, d’Holbach com Leibniz. Os philosophes empreenderam variações sobre temas estabelecidos por seus predecessores. Natureza, razão, tolerância, felicidade, ceticismo, individualismo, liberdade civil, cosmopolitismo: tudo isso pode ser encontrado, com mais profundidade, no pensamento do século XVII. Esses tópicos podem ser encontrados na obra de pensadores do século XVIII desvinculados dos philosophes ou opostos a eles, tais como Vico, Haller, Burke e Samuel Johnson. O que, então, distingue os philosophes? Compromisso com uma causa. Engagement. O philosophe era um novo tipo social, que hoje conhecemos como o intelectual. Ele pretendia colocar suas idéias em uso, persuadir, propagar e transformar o mundo ao redor. É certo que pensadores anteriores também haviam nutrido a esperança de mudar o mundo. Os radicais religiosos e os humanistas do século XVI eram devotados a causas. Mas os philosophes representaram uma nova força na história, homens de letras agindo em conjunto e com autonomia considerável para impor um programa. Eles desenvolveram uma identidade coletiva, forjada pelo compromisso comum em face dos riscos comuns. Foram marcados como um grupo pelos perseguidores, apenas o bastante para dar dramaticidade a sua ousadia, mas não o suficiente para impedi-los de prosseguir na empresa. Desenvolveram um forte sentido de “nós” contra “eles”: homens de espírito contra os fanáticos, honnêtes hommes contra os privilégios exclusivos, criaturas da luz contra os demônios das trevas. Formavam também uma elite. A despeito das tendências de nivelamento inerentes a sua fé na razão, eles almejavam alcançar as posições de comando da cultura e iluminar de cima para baixo. Essa estratégia levou-os a se concentrar na conquista dos salões e academias, jornais e teatros, lojas maçônicas e nos principais cafés, onde poderiam ganhar os ricos e poderosos para a causa e mesmo adquirir acesso, por meio de portas dos fundos e boudoirs, ao trono. Eles atingiam um amplo público entre as classes médias, mas estavam acima do alcance do campesinato. Melhor não ensinar os camponeses a ler, dizia Voltaire; alguém tem que arar a terra. Essa visão, percebo, é heresia. É politicamente incorreta. Embora contemple a influência de damas da corte e grandes dames nos salões, ela se concentra em homens. É elitista, voltairiana e incorrigivelmente parisiense. Mas e o famoso caráter cosmopolita do Iluminismo? E os grandes pensadores de fora de Paris e mesmo das fronteiras da França? Embora eu considere Paris a capital da República das Letras no século XVIII, concordo que o Iluminismo se difundiu a partir de muitos pontos: Edimburgo, Nápoles, Halle, Amsterdã, Genebra, Berlim, Milão, Lisboa, Londres e até mesmo Filadélfia. Cada cidade tinha seus filósofos, muitos dos quais se correspondiam com os philosophes; alguns deles até os superaram. Quando se avalia a profundidade e a originalidade do pensamento, é difícil encontrar um parisiense que se compare com Hume, Smith, Burke, Winckelmann, Kant e Goethe. Então por que se concentrar em Paris? Foi ali que o movimento tomou corpo e se definiu como uma causa. Numa fase anterior, que eu chamaria de pré-Iluminismo, escritores filosóficos como John Locke, John Toland e Pierre Bayle entrecruzavam seus caminhos através da Inglaterra e dos Países Baixos. Eles compartilhavam itinerários e idéias, incluindo a visão de Bayle de uma República das Letras internacional. Mas foi só quando seus herdeiros intelectuais, os philosophes, ocuparam o terreno e lançaram-se à campanha que o Iluminismo emergiu como causa, com militantes e um programa. Seus partidários forjaram sua identidade coletiva em Paris durante as primeiras décadas do século XVIII. À medida que o movimento ganhou força, ele se espalhou, e à medida que se espalhou, sofreu mudanças, adaptando-se a outras condições e incorporando outras idéias. Mas não chegou a toda parte, nem cobriu todo o espectro da vida intelectual. Tomar o Iluminismo pela totalidade do pensamento ocidental no século XVIII é compreendê-lo muito mal. Ao vê-lo como uma campanha planejada por um grupo consciente de intelectuais, podemos reduzi-lo às devidas proporções. Essa perspectiva faz justiça a seu caráter, pois os philosophes se concentravam menos em desenvolver uma filosofia sistemática do que em dominar os meios de comunicação de sua época. Eles brilhavam na conversa inteligente, na escrita de cartas, nos boletins manuscritos, no jornalismo e em todas as formas do mundo impresso, dos grossos tomos da Encyclopédie aos borrados panfletos distribuídos por Voltaire. A visão difusionista também dá conta da expansão do Iluminismo para outras partes da Europa na segunda metade do século XVIII e para o resto do mundo dali em diante. Por volta de 1750, filósofos com idéias semelhantes, vindos de outros lugares, haviam passado a pensar em si próprios como philosophes. Paris os atraía como um ímã, e os parisienses os arregimentavam para a causa, contentes por receber o reforço de pensadores originais como Hume e Beccaria. Mas o philosophe estrangeiro, com seu francês imperfeito e sua peruca ondulada incorretamente, sentia a condição forasteira em Paris. Com freqüência, ele voltava para casa determinado a seguir as investigações por conta própria. (Apesar de ter sido tratado como celebridade em Paris, Beccaria correu de volta para Milão o mais rápido que pôde e trocou a criminologia pela estética.) O philosophe en mission em Londres, Berlim e Milão também descobriu fontes alienígenas de pensamento, muitas delas angustiantemente cristãs. Fissuras se abriram; desenvolveram-se divisões; ramificações se estenderam em novas direções. Essa é a natureza dos movimentos. Estão sempre em curso, multiplicando-se e dividindo-se. Uma ênfase na difusão não implica indiferença quanto às idéias, nem entre os philosophes, nem entre os historiadores que os estudam. Tampouco implica passividade na recepção final das mensagens enviadas de Paris e de outros pontos de transmissão ao longo dos circuitos de intercâmbio intelectual. Ao contrário: os estrangeiros respondiam no mesmo tom. Diálogo, interação pessoal, troca de correspondência e livros mantinham em expansão “a Igreja”, como Voltaire a chamava. E a causa infundia convicção, porque as idéias dos philosophes eram idées-forces, como liberdade, felicidade, natureza e leis naturais. Mas elas não eram particularmente originais. Pensadores em Estocolmo e em Nápoles não precisavam ler Voltaire para aprender sobre tolerância e lei natural. Essas idéias pertenciam ao acervo comum de conceitos acessíveis às classes instruídas de todos os lugares. Filósofos as desenvolviam de novas maneiras sem a necessidade de nenhum empurrão de Paris e, muitas vezes, sem o menor alinhamento com o Iluminismo. Não era uma matéria original para o pensamento o que Voltaire e seus companheiros de conspiração forneciam, mas sim um novo espírito, o sentido de participação numa cruzada secular. Começou com escárnio, como uma tentativa de expulsar os obscurantistas da sociedade civilizada por meio do riso, e terminou com a ocupação do mais alto território moral, como uma campanha pela libertação da humanidade, incluindo os subjugados e escravizados, protestantes, judeus, negros e (no caso de Condorcet) mulheres. Da deflação à difusão e da difusão ao estudo de um espírito, esta abordagem do Iluminismo pode muito bem parecer suspeita. Pois se não queremos fazer um inventário de idéias e sim tomar o pulso de um movimento, não seremos obrigados a tatear no escuro em busca de um Zeitgeist? Prefiro pensar que podemos buscar uma historicidade mais rigorosa. Os movimentos podem ser mapeados. Pode-se segui-los no espaço e no tempo, à medida que os grupos se combinam e as mensagens fluem pelos sistemas de comunicação. O Iluminismo surgiu de uma grande crise durante os últimos anos do reinado de Luís XIV. Por um século, o poder da monarquia e o prestígio da literatura cresceram rapidamente, mas depois de 1685 elas se distanciaram gradualmente uma da outra. A revogação do edito de Nantes, a querela dos Antigos e Modernos, a perseguição dos jansenistas e dos quietistas, tudo isso entrou em ebulição enquanto a França sofria uma série de desastres demográficos, econômicos e militares. Com o estado à beira do colapso, homens de letras ligados à corte - Fénelon, La Bruyère, Boulainvilliers, Vauban, Saint- Simon - questionavam as bases do absolutismo dos Bourbon e a ortodoxia religiosa que ele impunha. La ville seguia seu próprio caminho enquanto la cour sucumbia à paralisia, esperando pela morte do rei idoso. Uma nova geração de esprits forts e beaux esprits conquistou os salões e soprou vida nova na libertinagem desenvolvida durante o século XVII. Em 1706, um prodígio de doze anos de idade, François-Marie Arouet, mais tarde conhecido como Voltaire, debutou na sociedade libertina do Temple. À época da morte de Luís XIV, nove anos depois, ele havia estabelecido uma reputação como a inteligência mais arguta de Paris, e a cidade, ou sua parte rica e mundana conhecida como le monde, havia se rendido aos ditos espirituosos, muitos deles à custa da Igreja e de qualquer coisa que passasse por digna nos círculos dirigentes da Regência. O Iluminismo, nesse estágio, permanecia confinado a uma pequena elite e também à palavra falada e manuscrita. Bons mots e panfletos libertinos passavam de um salão a outro, mas raramente apareciam impressos. As primeiras grandes exceções foram as Cartas persas (1721) de Montesquieu e as Cartas filosóficas (1734) de Voltaire. Ambas as obras mostravam um progresso da sagacidade à sabedoria, pois os dois autores misturavam irreverências libertinas com reflexões sérias sobre o despotismo e a intolerância. Tendo sido espancado pelos lacaios do chevalier de Rohan-Chabot e preso duas vezes na Bastilha, Voltaire aprendera a levar em conta a fragilidade dos escritores independentes num mundo dominado por redes de proteção da riqueza e do berço. O grande evento editorial seguinte, o aparecimento de Le Philosophe em 1743, trouxe uma resposta a esse problema. Os escritores deviam moldar-se a um tipo ideal: nem um cientista nem um sábio, mas um novo fenômeno, o philosophe, em parte homem de letras, em parte homem do mundo, e inteiramente empenhado em usar as letras para livrar o mundo da superstição. Esse pequeno panfleto, mais tarde incorporado na Encyclopédie e no Évangile de la raison de Voltaire, serviu como uma declaração de independência para o intelectual ao mesmo tempo que lhe fornecia uma estratégia: ele devia trabalhar no interior da estrutura de poder, promovendo uma aliança de gens de lettres e gens du monde, de modo a fazer avançar a causa da philosophie. Os philosophes, como o grupo agora começava a ser conhecido, encontraram seu maior aliado em C. G. de Lamoignon de Malesherbes, o diretor do comércio de livros de 1750 a 1763. Graças a sua proteção, o Iluminismo chegou plenamente ao texto impresso. Apesar da perseguição por parte de clérigos e magistrados, as obras mais importantes, desde Do espírito das leis (1748) de Montesquieu até Émile e Do contrato social (1762) de Rousseau, circularam em segurança pelas artérias da indústria editorial. A Encyclopédie (dezessete volumes de texto, 1751-65, seguidos por onze volumes de ilustrações, os últimos deles publicados em 1772) redefiniu o mundo do conhecimento para os leitores modernos, infundiu-lhe philosophie e identificou-o com um círculo de philosophes, a société de gens de lettres nomeada em seu frontispício. A Encyclopédie causou um escândalo e quase naufragou; mas em 1789 ela havia se tornado o maior best-seller da história editorial. Apesar de alguns duros golpes, ou, antes, por causa deles, particularmente durante a crise político-intelectual de 1757-62, o philosophe havia emergido como um novo tipo social e uma força a ser levada em conta, o fenômeno que hoje identificamos como o intelectual. O restante da história não precisa ser contado aqui. Ela é farta em complexidades e contradições (Jean-Jacques Rousseau não era a menor delas), e certamente não pode ser reduzida a um tranqüilo processo de difusão da luz mediante a venda de livros. Depois dos anos 1750 a maior parte dela teve lugar fora da França, especialmente através da remodelação do poder autocrático sob a forma de absolutismo esclarecido. Mas em toda parte - na Prússia de Frederico II, na Rússia de Catarina II, na Áustria de José II, na Toscana do arquiduque Leopoldo, na Espanha de Carlos III, no Portugal de José I, na Suécia de Gustavo III - soberanos e ministros voltavam-se para os filósofos em busca de orientação ou legitimação. Quase todos eles liam em francês; quase todos consultavam a Encyclopédie, e os mais importantes dos seus súditos faziam o mesmo. O propósito desse desvio através do historicismo não é meramente reduzir o Iluminismo a proporções manejáveis, mas também lançar a discussão que veio a seguir: sua importância para as questões que emergiram depois do século XVIII. O Iluminismo inflado pode ser identificado com toda a modernidade, com quase tudo o que se agrupa sob o nome de civilização ocidental, e assim pode ser responsabilizado por quase tudo que causa descontentamento, especialmente nos campos dos pós-modernistas e antiocidentalistas. [...]