Trecho do livro SHALIMAR, O EQUILIBRISTA

1. INDIA Aos vinte e quatro anos a filha do embaixador dormia mal nas noites quentes e sem surpresas. Acordava com freqüência e mesmo quando o sono vinha seu corpo raramente estava em repouso, debatendo-se, agitado, como se quisesse libertar-se de horríveis algemas invisíveis. Às vezes, era assustador como gritava numa língua que não falava. Homens haviam lhe dito isso, nervosos. Não eram muitos os homens que tiveram permissão de estar presentes enquanto dormia. As provas eram, portanto, limitadas, não havia consenso; porém, um padrão veio à tona. Segundo um relato, ela soava gutural, glótico-explosiva, como se estivesse falando árabe. Árabe-noturno, pensou, a língua de sonho de Sherazade. Outra versão descrevia suas palavras como de ficção científica, como Klingon, como uma garganta pigarreando em uma galáxia muito, muito distante. Como Sigourney Weaver incorporando um demônio em Os caça-fantasmas. Uma noite, com espírito de pesquisa, a filha do embaixador deixou o gravador ligado ao lado da cama, mas quando ouviu a voz na fita, aquela feiúra mortal, que era, de alguma forma, ao mesmo tempo familiar e alheia, ficou muito assustada e apertou o botão de apagar, que não apagou nada importante. A verdade ainda era a verdade. Esses períodos de fala no sono eram, felizmente, breves e quando terminavam ela caía por algum tempo, suada e ofegante, em um estado de exaustão sem sonhos. Então, abruptamente, acordava de novo, convencida, em seu estado desorientado, de que havia um estranho no quarto. Não havia estranho nenhum. O estranho era uma ausência, um espaço negativo na escuridão. Ela não tinha mãe. Sua mãe havia morrido no parto: a esposa do embaixador lhe contara isso e o embaixador, seu pai, confirmara. Sua mãe era caxemirense, e para ela estava perdida, como o paraíso, como a Caxemira, em um tempo anterior à memória. (Considerar os termos "Caxemira" e "paraíso" como sinônimos era um de seus axiomas, que todos que a conheciam tinham de aceitar.) Ela tremia diante da ausência da mãe, uma forma vazia de sentinela no escuro, e esperava a segunda calamidade, esperava sem saber que estava esperando. Depois que o pai morreu - pai brilhante, cosmopolita, franco-americano, "como a Liberdade", ele dizia, seu amado, saudoso, caprichoso, promíscuo, muitas vezes ausente, irresistível pai - ela começou a dormir profundamente, como se tivesse sido absolvida. Perdoados os seus pecados, ou, talvez, os dele. O peso do pecado fora passado adiante. Ela não acreditava em pecado. Então, até a morte do pai, ela não fora uma mulher fácil de se dormir junto, embora fosse uma mulher com quem os homens queriam dormir. A pressão do desejo dos homens lhe era cansativa. A pressão de seus próprios desejos era em grande parte não aliviada. Os poucos amantes que tinha tido eram de várias maneiras insatisfatórios e, assim (como para declarar encerrado o assunto), ela logo limitou-se a um sujeito bem mediano e chegou a considerar seriamente a proposta de casamento dele. Então o embaixador foi massacrado na porta de sua casa como uma galinha halal para o jantar, sangrando até morrer por causa de um profundo ferimento no pescoço, feito com um único golpe da lâmina do assassino. Em plena luz do dia! Como a arma deve ter cintilado ao sol dourado da manhã, que era a bênção cotidiana da cidade, ou sua maldição. A filha do homem assassinado era uma mulher que detestava bom tempo, mas a maior parte do ano a cidade oferecia pouco mais. Conseqüentemente, ela era obrigada a suportar os longos meses monótonos de sol sem sombras e calor seco, de estalar a pele. Nas raras manhãs em que despertava com um céu encoberto e um vestígio de umidade no ar, ela se esticava sonolenta na cama, arqueava as costas e ficava, brevemente, até esperançosamente, contente; mas ao meio-dia as nuvens haviam invariavelmente se queimado e lá estava de novo o azul-creche desonesto do céu que fazia o mundo parecer infantil e puro, a ruidosa órbita grosseira brilhando em cima dela como um homem que ri alto demais num restaurante. Numa cidade assim, não era possível haver áreas cinzentas, ou assim parecia. As coisas eram o que eram e nada mais, sem ambigüidade, carentes das sutilezas do chuvisco, da sombra e do frio. Sob o escrutínio de um tal sol, não havia lugar para se esconder. As pessoas em toda parte estavam em exposição, os corpos brilhando ao sol, parcamente vestidas, fazendo lembrar anúncios. Nada de mistérios aqui ou profundidades; apenas superfícies e revelações. Porém conhecer a cidade era descobrir que essa claridade banal era uma ilusão. A cidade era toda traição, toda engano, uma metrópole cambiante, movediça, que escondia sua natureza, guardada e secreta apesar de toda a aparente nudez. Em um lugar desses, até as forças de destruição não precisavam mais do abrigo da escuridão. Elas queimavam no brilho da manhã, cegando o olho, e esfaqueavam a pessoa com luz dura e fatal. Seu nome era India. Ela não gostava desse nome. Ninguém se chamava Austrália, chamava?, ou Uganda, ou Ingushetia, ou Peru. Em meados dos anos 60, seu pai, Max Ophuls (Maximilian Ophuls, criado em Estrasburgo, França, numa era mais antiga do mundo), fora o mais querido, e depois o mais escandaloso, embaixador americano na Índia, mas e daí?, as crianças não eram punidas com nomes como Herzegovina, Turquia ou Burundi só porque seus pais tinham visitado essas terras e possivelmente se comportado mal nelas. Ela havia sido concebida no Oriente - uma filha ilegítima nascida em meio a uma fogosa tempestade de ultraje que destruíra o casamento de seu pai e encerrara sua carreira diplomática -, mas se isso fosse desculpa suficiente, se fosse legal carregar o fardo de ter como nome o local de nascimento, então o mundo estaria cheio de homens e mulheres chamados Eufrates, Pisga, Iztaccíhuatl ou Wulumulu. Na América, droga, essa forma de dar nomes não era desconhecida, o que abalava um pouco seu argumento e a incomodava mais que um pouco. Nevada Smith, Indiana Jones, Tennessee Williams, Tennessee Ernie Ford: ela dirigia seus palavrões mentais e um dedo médio levantado a todos eles. "India" ainda lhe parecia errado, dava a sensação de exotismo, de colonialismo, sugeria a apropriação de uma realidade que não era a dela e, insistia para si própria, não lhe servia de jeito nenhum, não se sentia como India, mesmo que sua cor fosse rica e intensa, o cabelo preto e lustroso. Não queria ser vasta, nem subcontinental, nem excessiva, nem vulgar, nem explosiva, nem apinhada, nem antiga, nem ruidosa, nem mística, nem de forma alguma Terceiro Mundo. Bem ao contrário. Queria se apresentar como disciplinada, bem-cuidada, nuançada, interiorizada, não religiosa, discreta, calma. Falava com sotaque inglês. Não era de comportamento acalorado, mas serena. Era essa a persona que queria, que havia construído com grande determinação. Era a única versão dela mesma que qualquer pessoa na América, além de seu pai e dos amantes que haviam se afastado por medo de suas propensões noturnas, jamais vira. Quanto a sua vida interior, sua violenta história inglesa, a ficha eliminada de comportamento perturbado, os anos de delinqüência, os acontecimentos ocultos de seu breve mas movimentado passado, essas coisas não eram assunto de discussão, não eram (ou não mais) de interesse público. Hoje em dia, tinha as próprias rédeas firmes na mão. A criança-problema dentro dela estava sublimada nos interesses de seu tempo livre, as sessões de boxe semanais no clube de box Jimmy Fish, em Santa Mônica e Vina, onde sabia-se que Tyson e Laila Ali treinavam, e onde a fúria fria de seus golpes fazia os lutadores homens pararem para olhar, os treinos semanais com um sósia de Burt Kwouk estilo Clouseau que era mestre da arte marcial Wing Chun, a solidão desbotada pelo sol das paredes negras da galeria de tiro Saltzman Alvo Móvel no deserto, na Palms, número 29, e, o melhor de tudo, as sessões de arco-e-flecha no centro de Los Angeles, perto do nascedouro da cidade no Elysian Park, onde seus novos dotes de rígido auto-controle, que havia aprendido a fim de sobreviver, de se defender, podiam ser usados para continuar no ataque. Ao estender o arco dourado, tamanho olímpico, sentindo a pressão da corda contra os lábios, tocando às vezes a extremidade da flecha com a ponta da língua, sentia uma excitação dentro de si, permitia-se sentir o calor crescendo por dentro enquanto os segundos a que tinha direito para o disparo corriam para o zero, e por fim deixava voar, liberando o silencioso veneno das flechas, satisfeita com o distante ruído surdo de sua arma ao atingir o alvo. A flecha era sua arma preferida. Mantinha também sob controle a estranheza de sua visão, a súbita alteridade de visão que ia e vinha. Quando seus olhos pálidos transformavam as coisas que via, sua mente dura as transformava de volta. Não se dava ao trabalho de se deter nessa turbulência, nunca falava da infância e dizia às pessoas que não se lembrava de sonhos. Em seu aniversário de vinte e quatro anos, o embaixador veio à sua porta. Ela olhou da sacada do quarto andar quando ele tocou lá embaixo e viu que estava esperando no calor do dia, usando aquele absurdo terno de seda como um "coronel" francês. E ainda com um buquê de flores. "Vão pensar que você é meu amante", India gritou para Max, "o namorado que vai me seqüestrar do berço." Ela adorava quando o embaixador ficava embaraçado, o dolorido franzir da testa, o ombro direito subindo para a orelha, a mão levantada como para aparar um golpe. Ela o viu se decompor em um arco-íris de cores pelo prisma de seu amor. Ela o viu retroceder ao passado, parado ali embaixo na calçada, cada momento sucessivo da vida dele passando diante dos olhos dela e perdendo-se para sempre, sobrevivendo apenas no espaço estelar na forma de raios de luz fugidios. Era isso a perda, a morte: uma fuga para as formas de ondas luminosas, para a inefável velocidade de anos-luz e parsecs, as distâncias eternamente recuantes do cosmos. Na fímbria do universo conhecido, uma criatura inimaginável colocaria um dia o olho num telescópio e veria Max Ophuls se aproximando, usando um terno de seda e levando rosas de aniversário, para sempre avançando nas marés das ondas de luz. Momento a momento ele a estava abandonando, transformando-se num embaixador de impensáveis alhures distantes. Fechou os olhos e abriu de novo. Não, ele não estava a bilhões de quilômetros entre as galáxias que giravam. Ele estava ali, correto e presente, na rua onde ela morava. Ele recuperara a pose. Uma mulher de agasalho de corrida virou a esquina na Oakwood e veio trotando na direção dele, avaliando, fazendo os julgamentos fáceis da época, julgamentos sobre sexo e dinheiro. Ele era um dos arquitetos do mundo do pós-guerra, de suas estruturas internacionais, de suas convenções econômicas e diplomáticas concordes. Seu jogo de tênis era forte ainda hoje, nessa idade avançada. O forehand de dentro para fora, sua arma secreta. Aquela silhueta magra de calça branca, com não muito mais que cinco por cento de gordura corporal, podia ainda cobrir a quadra. Fazia as pessoas se lembrarem do velho campeão Jean Borotra: os poucos veteranos que lembravam de Borotra. Olhou com indisfarçável prazer europeu para os seios da corredora americana em seu sutiã esportivo. Quando ela passou, ele ofereceu uma única rosa do enorme buquê de aniversário. Ela pegou a flor e, então, apavorada por seu charme, pela proximidade erótica de seu pronto sorriso de poder, e por si mesma, ansiosamente acelerou o passo e se foi. Amor adolescente. Das sacadas do prédio de apartamentos, as velhas senhoras da Europa central e oriental também estavam olhando para Max, admiradas, com a lascívia franca da idade desdentada. A chegada dele era o ponto alto do mês. Elas hoje tinham saído em massa. Geralmente se juntavam em pequenos grupos na esquina ou sentavam-se em pares e trios em volta da pequena piscina do pátio, batendo papo, exibindo sem pudor desaconselháveis roupas de banho. Geralmente dormiam muito, e quando não estavam dormindo reclamavam. Haviam enterrado os maridos com quem passaram quarenta ou mesmo cinqüenta anos de vida desconsiderada. Curvadas, fracas, sem expressão, as velhas lamentavam os destinos misteriosos que as haviam feito dar ali, afastadas, do outro lado do mundo, de seus pontos de origem. Falavam línguas estranhas que podiam ser georgiano, croata, uzbeque. Os maridos lhes falharam ao morrer. Eram pilares que desmoronaram, haviam pedido que confiassem neles e trazido as esposas para longe de tudo que lhes era conhecido, para essa terra-lótus sem sombra, cheia de gente obscenamente jovem, essa Califórnia cujo corpo era o templo e cuja ignorância era a felicidade, e depois tinham se mostrado indignos de confiança soçobrando num campo de golfe ou caindo de cara numa tigela de sopa de macarrão, revelando assim a suas viúvas, nesse último estágio de suas vidas, o quanto eram pouco confiáveis a vida no geral e os maridos em particular. À noite, as viúvas cantavam canções da infância no Báltico, nos Bálcãs, nas vastas planícies mongólicas. Os velhos da vizinhança eram sozinhos também, alguns habitando sacos murchos de corpos sobre os quais a gravidade exercera demasiado poder, outros de cabelos grisalhos curtos que se permitiam circular em camisetas sujas e calças com as braguilhas abertas, enquanto um terceiro contingente, mais vivaz, se vestia bem, exibindo boinas e gravatas-borboleta. Esses garbosos cavalheiros periodicamente tentavam puxar conversa com as viúvas. Suas tentativas, com cintilações amarelas de dentaduras postiças e a melancólica visão de vestígios de cabelos lambidos por baixo das boinas levantadas em cumprimento, eram invariável e desdenhosamente ignoradas. Para esses galãs velhotes, Max Ophuls era uma afronta, e o interesse das senhoras nele, uma humilhação. Eles o matariam se pudessem, se não estivessem tão ocupados protelando a própria morte. India viu tudo, as velhas exibicionistas, desejosas, piruetando e flertando nas varandas, os velhos rancorosos à espreita. A superantigüidade russa Olga Simeonovna, um bulboso samovar vestido em jeans, estava cumprimentando o embaixador como se ele fosse um chefe de Estado em visita. Se houvesse um tapete vermelho no prédio, ela o teria desenrolado para ele. "Ela deixa senhor esperando, mister embaixador, o que se pode fazer, os jovens. Não digo nada contra. Só que uma filha hoje em dia é mais difícil, eu mesma fui uma filha que para mim meu pai era como um deus, deixar ele esperando, impensável. Ai, ai, filhas hoje são difícil de criar e elas acabam deixando a gente sozinha. Eu, sir, já fui mãe um dia, mas agora elas estão mortas para mim, minhas meninas. Os nomes delas eu esqueci, eu cuspo em cima. É assim que é." Tudo isso dito enquanto ela girava uma batata cheia de raízes na mão. Era conhecida por todo mundo no bairro como Olga Volga e, segundo suas próprias palavras, era a última descendente viva das legendárias bruxas da batata de Astracã, uma perfeita e genuína feiticeira capaz de usar com sutileza a magia da batata para induzir amor, prosperidade ou furúnculos. Naqueles lugares distantes e em tempos remotos, fora objeto da admiração e do medo dos homens; agora, graças ao amor de um marinheiro, já falecido, ela estava à deriva em West Hollywood, usando um macacão de jeans grande demais e na cabeça um lenço escarlate com bolas brancas para cobrir o cabelo branco ralo. No bolso do quadril, uma chave de fenda e uma chave Phillips. Nos velhos tempos, era capaz de amaldiçoar um gato, ajudar uma mulher a conceber ou talhar o leite de alguém. Agora ela trocava lâmpadas, dava uma olhada em fornos com defeito e coletava os aluguéis mensais. "Quanto a mim, sir", ela insistiu em informar ao embaixador, "eu hoje vive nem neste mundo, nem no de antes, nem na América, nem em Astracã. Eu diria até também nem neste mundo, nem no próximo. Mulher como eu vive em algum lugar entre um e outro. Entre as lembranças e o dia-a-dia. Entre o ontem e o amanhã, no reino da felicidade e da paz perdidas, no lugar da calma extraviada. É nosso destino. Houve tempo que eu achava tudo bem. Isso agora eu não sente mais. Conseqüência é que também não tenho medo da morte." "Eu também sou natural desse país, madame", interrompeu ele, grave. "Eu também já vivi o bastante para adquirir essa cidadania." Ela nascera a poucos quilômetros do delta do rio Volga, à vista do mar Cáspio. Depois, na sua narrativa, vinha a história do século XX, moldado pela magia da batata. "Claro que tempos difíceis", dizia ela às velhas em seus balcões, aos velhos junto à piscina, a India onde e quando conseguia caçá-la, agora ao embaixador Max Ophuls no dia do aniversário de vinte e quatro anos da filha dele. "Claro que pobreza; opressão, deslocamento, exércitos, servidão também, a criançada de hoje tem tudo fácil, não sabem nada, dá para perceber que senhor é homem de sofisticação, rodou mundo. Claro que deslocamento, sobrevivência, necessidade de ser esperto feito rato. Estou certa? Claro que em algum lugar um sonho de outra coisa, casamento, filhos, eles não ficam, a vidas deles é deles, eles pegam de você e vão embora. Claro que guerra, marido perdido, nem me fale de tristeza. Claro que deslocamento, fome, decepção, sorte, outro homem, bom homem, homem do mar. Depois viagem por mar, o engano do Ocidente, viagem por terra, segunda viuvez, homem não dura, sem falar do senhor aqui presente, homem não foi feito para durar. Na minha vida, os homens foram como sapatos. Tive dois e os dois ficaram gastos. Depois disso aprendi que podia seguir descalça. Mas não pedi para homens facilitarem coisa nenhuma. Nunca eu pedi isso. Sempre foi o que eu sabia que me trazia o que eu queria. A minha arte da batata, sim. Fosse comida, fosse filhos, fosse documentos para viajar, trabalho. Sempre meus inimigos fracassaram e eu em glória triunfava. A batata é poderosa e tudo por ela se pode conseguir. Só que agora vem o tempo rastejando e nem a batata pode fazer tempo voltar atrás. Nós sabemos como é o mundo, estou certa? Nós sabemos como termina." Ele mandou o motorista subir com as flores e ficou esperando India em baixo. O novo motorista. Com seu jeito cuidadosamente desapaixonado, India notou que esse era um homem bonito, até belo, quarenta e tantos anos, alto, tão gracioso de movimentos quanto o incomparável Max. Andava como se estivesse na corda bamba. Havia dor em seu rosto e ele não sorria, embora tivesse rugas de riso em torno dos olhos e olhasse para ela com uma intensidade não procurada que parecia um choque elétrico. O embaixador não insistia no uniforme. O motorista usava uma camisa branca aberta e calça de sarja, o antiuniforme da América abençoada pelo sol. Os belos vinham a esta cidade em imensos e patéticos rebanhos, para sofrer, ser humilhados, ver a poderosa moeda corrente de sua beleza desvalorizada como o rublo russo ou o peso argentino; para trabalhar como mensageiros de hotel, garçonetes de bar, coletores de lixo, criadas. A cidade era um penhasco, e eles, os seus lemingues correndo em disparada. Ao pé do penhasco ficava o vale das bonecas quebradas. O motorista desviou dela o olhar, olhou para o chão. Ele era, disse numa entrecortada resposta à pergunta dela, da Caxemira. O coração dela deu um salto. Um motorista do paraíso. O cabelo dele era um riacho de montanha. Havia narcisos das margens de rios caudalosos e peônias dos altos prados a crescer em seu peito, saindo pelo colarinho aberto da camisa. Em torno deles ecoava roufenho o som do swarnai. Não, era ridículo. Ela não era ridícula, nunca se permitiria mergulhar em fantasias. O mundo era real. O mundo era o que era. Fechou os olhos e abriu de novo e ali estava a prova disso. A normalidade era vitoriosa. O motorista desflorado esperou pacientemente ao lado do elevador, segurando a porta. Ela inclinou a cabeça para agradecer. Notou que as mãos dele estavam trêmulas, os punhos cerrados. As portas fecharam e eles começaram a descer. O nome pelo qual atendia, o nome que ele disse quando ela perguntou, era Shalimar. Seu inglês não era bom, apenas funcional. Ele provavelmente não entenderia essa expressão: apenas funcional. Tinha olhos azuis, pele de um tom mais claro que a dela, cabelo grisalho com uma lembrança de loiro. Ela não precisava saber sua história. Não hoje. Outro dia perguntaria se eram lentes de contato azuis, se aquela cor de cabelo era natural, se ele estava afirmando um estilo pessoal, ou se era um estilo imposto a ele pelo pai dela, que a vida inteira soubera fazer tais imposições com tamanho charme que as pessoas as aceitavam como se fossem idéias delas próprias, autênticas. Sua mãe falecida também era da Caxemira. Ela sabia isso sobre a mulher de quem sabia pouco mais (mas conjeturava muito). Seu pai americano nunca passara no exame de motorista, mas adorava comprar carros. Daí os motoristas. Eles iam e vinham. Queriam ser famosos, claro. Uma vez, durante uma ou duas semanas, o embaixador tivera dirigindo para ele uma bela jovem, que saiu do emprego para trabalhar nos seriados diurnos. Outros motoristas haviam aparecido brevemente como bailarinos em vídeos de música. Pelo menos dois, uma mulher e um homem, tinham obtido sucesso no campo do cinema pornô, e ela havia deparado com a imagem deles nus, tarde da noite, em quartos de hotel aqui e ali. Ela assistia pornografia em quartos de hotel. Ajudava a dormir quando estava longe de casa. Assistia pornografia também em casa. Shalimar da Caxemira. Ele era legalizado? Tinha os documentos? Tinha carteira de motorista? Por que havia sido contratado? Tinha um pau grande, um pau que valesse a pena ver em um hotel tarde da noite? O pai dela perguntara o que ela queria de presente de aniversário. Ela olhou para o motorista e por um momento quis ser o tipo de mulher capaz de fazer a ele perguntas pornográficas, ali mesmo no elevador, segundos depois de terem se conhecido; capaz de falar indecências para aquele belo homem, sabendo que ele não entenderia nem uma palavra, que ele daria o sorriso concorde de empregado sem saber com o que estava concordando. Ele tomava no cu? Ela queria ver o sorriso dele. Não sabia o que queria. Queria fazer filmes documentários. O embaixador devia saber, sem precisar perguntar. Devia ter trazido um elefante para ela montar nele e descer o Wilshire Boulevard, ou levá-la para saltar de pára-quedas, ou para Angkor Vat ou para Machu Picchu ou para a Caxemira. Tinha vinte e quatro anos de idade. Queria habitar fatos, não sonhos. Crentes verdadeiros, esses sonhadores de pesadelo, agarrados ao corpo do aiatolá Khomeini, do mesmo jeito que outros crentes verdadeiros em outro lugar, na Índia cujo nome ela possuía, haviam mordido pedaços do cadáver de são Francisco Xavier. Um pedaço acabara em Macau, outro em Roma. Ela queria sombras, chiaroscuro, nuance. Queria ver abaixo da superfície, o menisco do brilho cegante, atravessar o hímen do brilho, para dentro da sangrenta verdade oculta. O que não estava oculto, o que era aberto, não era verdade. Ela queria a mãe. Queria que o pai lhe contasse sobre a mãe, lhe mostrasse cartas, fotografias, que trouxesse mensagens da morta. Queria que sua história perdida fosse encontrada. Não sabia o que queria. Queria almoçar. O carro era uma surpresa. Max tendia, de costume, para os grandes veículos ingleses clássicos, mas aquilo era outra coisa inteiramente diferente, um carro veloz de luxo, prata, com portas de asa de morcego, a mesma máquina futurista em que as pessoas estavam fazendo viagens no tempo nos filmes desse ano. Ser conduzido por chofer em um carro esporte era uma afetação indigna de um grande homem, pensou ela, decepcionada. "Não tem lugar para três pessoas nesse carro-foguete", ela disse, alto. O embaixador colocou as chaves em sua mão. O carro se fechou em volta dos dois, ostentativo, potente, errado. O belo motorista, Shalimar da Caxemira, ficou na calçada, diminuído como um inseto no espelhinho retrovisor dela, os olhos como espadas luminosas. Ele era um peixe-voador, um gafanhoto. Olga Volga, a bruxa-batata, parada ao lado dele e os corpos dos dois encolhendo na distância pareciam números. Juntos formavam o 10. Ela havia sentido que o motorista quisera tocá-la no elevador, sentira seu desejo choroso. Isso era intrigante. Não, não era intrigante. O que era intrigante era que a necessidade dele não desse a sensação de ter uma carga sexual. Ela sentiu-se transformada em uma abstração. Como se, querendo encostar a mão nela, ele esperasse atingir alguém mais, através de dimensões desconhecidas, de memórias tristes e acontecimentos perdidos. Como se ela fosse apenas uma representante, um signo. Ela queria ser o tipo de mulher capaz de perguntar a um motorista: quem é que você quer tocar quando quer tocar em mim? Quem, quando você se abstém de me tocar, não está sendo tocada por você? Toque-me, ela queria dizer para aquele sorriso de não compreensão, serei seu condutor, sua bola de cristal. Podemos fazer sexo no elevador e nunca falar disso. Sexo em zonas de trânsito, em lugares como elevadores que estão entre um lugar e outro. Sexo em carros. As zonas de trânsito tradicionalmente associadas a sexo. Quando trepar comigo, você vai estar trepando com ela, seja ela quem for ou foi, não quero saber. Não vou nem estar aqui, serei o canal, o médium. E o resto do tempo, esqueça, você é empregado de meu pai. Será uma coisa assim, tipo Último tango, obviamente sem a manteiga. Ela não dissera nada para o homem dolorido de desejo, que não teria mesmo entendido, a menos, claro, que entendesse, ela realmente nada sabia do nível das habilidades lingüísticas dele, por que estava fazendo essas suposições, por que estava inventando essa história, soando ridícula? Saíra do elevador, soltara o cabelo e fora para a rua. Era o último dia que ela e o pai passariam juntos. Na próxima vez que o visse, seria diferente. Essa era a última vez. [...]