Trecho do livro A RAINHA DOS CÁRCERES DA GRÉCIA

26 de abril de 1974 Muitas vezes, durante o último ano, tão penoso e vazio, mencionei aqui a intenção de ocupar as horas vagas, dar-lhes sentido talvez, escrevendo o que Julia - Julia Marquezim Enone -, sempre discreta em relação a si mesma, me contou da sua vida, o que testemunhei e o que depois pude saber. Quantas noites, ouvindo o rumor dos veículos que ascende, indistinto, a esta sala agora sem alma, examino os poucos retratos que deixou? Sei quase de cor os seus apontamentos, nem sempre inteligíveis, e um diálogo nosso, gravado. As conversas diárias, estas se perderam; delas, com uma aguda noção do irrecuperável, só fragmentos consigo reconstituir. Sim, muito eu teria a dizer quanto ao seu modo negligente e desamparado de ser, através do qual parecia indicar que se sabia frágil e que, por essa razão mesma, não se resguardava. Hesito, limitando-me a esboçar, sem plano, algum breve comentário a propósito da nossa convivência. Nos últimos dias, entretanto, uma idéia vaga e que não quero ainda registrar começa a rondar-me. 1o. de maio A idéia persiste e se define. Em vez de escrever sobre a mulher, por que não dedicar um estudo ao livro, o seu, que sempre leio? Mais razoável a alternativa e mais proveitosa. Afinal, muito do que eu possa dizer de Julia Enone terá valor para mim unicamente, como as fotografias de família. Privado, apesar da atração que sobre mim exerce o novelesco, da habilidade e da energia indispensáveis à arte de narrar, correria o risco de palidamente sugerir o perfil da minha amiga. Mesmo se, cauteloso, sem qualquer veleidade de incursão no imaginário, ativesse-me à biografia. Ocupar-me do livro oferece vantagens evidentes. O texto impedirá que eu me embarace entre as recordações e imagens conservadas, dédalo a disciplinar. Somo, à existência do texto, a sua natureza. Os textos: em princípio, doação universal. Se sobre eles opinamos ou se os iluminamos de algum modo - se fazemos com que se ampliem em nós -, operamos sobre um patrimônio coletivo. No caso especial de Julia Marquezim Enone, o texto a ser apreciado, é verdade, não chegou a ser impresso. Pode-se discutir por isto o seu caráter de bem (ou de mal) público. Circunscrito ainda aos originais, não franqueado, portanto, a quem deseje e possa tê-lo consigo, já pertence a todos? 2 de maio Inclino-me a supor que sim. A obra, mesmo embrionária, concerne ao ente coletivo - nós - de cuja substância ela se forma. Depois, quem se ocupa de livros deve sempre recordar, e a volta a esse extenso período, acredito, não é de todo improvável, a reprodução manuscrita. Por último, o livro quase lendário de Julia Marquezim Enone, onde homens informados e sensíveis reconhecem, ocultas com zelo, certas explorações audaciosas, transita entre algumas dezenas de leitores e de interessados na arte romanesca, graças àqueles sessenta e cinco exemplares que eu próprio copiei numa obsoleta máquina a álcool. Contém-me ainda um senão. Admitindo, sem reserva, a condição pública da obra literária, mesmo não editada, e que a modesta reprodução subtrai o livro ao total anonimato, fico indeciso. Quais as probabilidades de obter editor para um ensaio sobre livro quase ignorado e não acessível, por enquanto, aos leitores em geral? 6 de maio Ouçamos, no limiar do meu possível estudo ou simples comentário (quem sabe entretanto aonde vai quem se enreda em projetos deste gênero?), ouçamos, entre reveladora e sibilina, a voz da romancista: "Iniciei o livro que, devagar, vinha gerando em mim. Tudo, antes, foi preparação, espera, rapinagem. E depois? Depois, será a África. Como escreveu o nosso Rimbaud, enterrarei 'minha imaginação e minhas lembranças' e rumarei 'para o porto da miséria'". (Carta de 6/1/1970 ao escritor Hermilo Borba Filho.) 18 de maio Discuto o projeto com A. B., docente na Pontifícia Universidade Católica, homem de grande saber e um tanto irônico, que, sendo eu afeiçoado aos livros, me distingue com o seu apreço. O que me diz, mesmo descontando certo exagero provável, tributo sempre devido à ironia, preocupa-me e, por outro lado, esbate em mim certos receios. Revela-me A. B., com o seu fino sorriso eclesiástico, o que sucede com alunos seus e até com mestres de nome: se, por exemplo, sabem alguma coisa de Madame de Volanges, de Danceny e do libertino Valmont, não é por terem lido As ligações perigosas, e sim porque ouviram a análise estampada há cerca de oito anos na revista Communications sobre o romance de Laclos, esse conhecedor de fortificações e da fraqueza humana. O editor, hoje, acrescenta A. B., ao publicar um estudo literário, dispõe de um público importante, ávido, mais numeroso que o público - real ou possível - da obra analisada e que talvez nem julgue necessário conhecê-la. Adverte-me, em compensação, para o lado negativo do que podia ser uma vantagem: minha intimidade com a autora. O exame dos textos, postulam hoje os especialistas, deve ignorar a mão que os redigiu (tensa, não obstante, de história e de motivos obscuros). 25 de maio Vejo, na revista alemã Burda, um anúncio das porcelanas de Delft, com o seguinte texto, em meio a uma seleção de jarros e outras peças elegantes: "Não olhe antes o fundo do objeto. Evite reações estereotipadas de admiração ou confiança. Os produtos de Delft se impõem pela sua beleza e qualidade". Curiosamente, repete esse anúncio o que afirma o teórico romano Bruno Molisani, em estudo sobre poema de Hugo (Escrito na vidraça de uma janela flamenga). Molisani, aí, dá por demonstrada, há muito tempo, "a vantagem, para o analista, de não levar em conta o nome do autor, o que impede reações estereotipadas de admiração ou confiança". Creio então necessário perguntar - levando ainda em conta o que me dizia A. B. - se não errarei em desprezar um conceito igualmente firmado nos estudos literários e na publicidade da faiança de Delft, ocupando-me de Julia Marquezim Enone (melhor, do seu livro), eu, que não só sabia e sei o seu nome, como ouço-o repetir-se tantas vezes em mim, dado que fomos amantes. Não estará o meu depoimento desde já condenado à parcialidade, ao malogro, tendo eu de incidir, devido à minha antiga condição, em "reações estereotipadas de admiração ou confiança"? 26 de maio Posso indagar ainda: assente que o autor não existe, teria eu sido amante de ninguém? 3 de junho Pensei bem e decidi não recuar ante decretos que - por mais objetivos que sejam e mais virtuosos - careçam de sabedoria no sentido amplo. Vejamos. Uma simples carta pode ser mais bem compreendida se confrontada com outras - anteriores e talvez até ulteriores - de quem a enviou. Reiterações e mudanças podem indicar tantas coisas! Como traduzir certos entretons e propósitos senão contrastando-os, opondo-os a uma certa tradição, ou seja, a uma autoria? Os mesmos versos não são os mesmos versos, venham do epígono Etienne Alane ou de Hugo. É o que nos afirma, a seu modo, um argentino que entende dessas coisas, Jorge Luis Borges, no conto em que Ménard, palavra por palavra, escreve o romance de Cervantes. O estilo do Quixote, natural no seu primeiro autor, em Pierre Ménard faz-se arcaizante. Comparar os dois textos, diz Borges, "é uma revelação": Ménard haveria enriquecido a arte da leitura com uma nova técnica, a "do anacronismo deliberado e das atribuições errôneas". Sugere Borges, dentre outras, a experiência de lermos, atribuindo-a a Joyce, a Imitação de Cristo. Além do mais, estando eu longe de ser - e do desejo de ser - um teórico universitário, por que fixar-me a normas? Vamos em frente. 10 de junho Sim. Por que submeter-me à tendência hoje vitoriosa? Lembro-me agora de ter lido, no Almanaque do Pensamento, suponho, ou em algum velho exemplar do Almanaque Cabeça de Leão, o que escrevia há perto de cem anos, de um modo talvez pouco elegante, o prussiano Fontane: "Sempre que se trata da organização da obra, emitem os filósofos juízos imbecis. Falta-lhes, em absoluto, um órgão para captar o essencial". "O julgamento de um profano dotado de finura sempre é valioso; o de um profissional da estética, geralmente, não tem valor algum." Carecendo, é provável, de finura, ao menos sou um profano. De qualquer modo, Fontane, estou distante do teu filósofo ou esteta profissional, estou mesmo distante dos círculos letrados, o que me faz tender para a escala oposta, a dos apreciadores não de todo obtusos do romance. É a esse título que sonho dissertar sobre o livro da minha amiga morta, tantas vezes visitado e que ainda guarda segredos. 12 de junho Conheci a romancista, convivemos, não oculto que a amei. Amar não quer dizer, por força, cegueira e engano. Não erra o viúvo Middleton Murry quando apresenta o Diário da sua Katherine Mansfield. Há de transparecer, em certas páginas - talvez mesmo em todas -, o meu amor por Julia Marquezim Enone. Ainda que o fato acaso diminua a lucidez e a isenção do estudo, e confio que uma e outra, isenção e lucidez, não serão ofendidas, custa-me admitir que isto anule o meu comentário. Pois que inflexível lei nos obrigaria a esconder, como indecoroso, ante uma obra de arte, o nosso ardor? Onde, ao certo, a coerência, quando, ante esse objeto que se dirige ao nosso ser total, voluntariamente obstruímos parte das nossas faculdades, para sobre ele depor com um distanciamento a que não é de sua natureza aspirar? Não resvalarei no engano de "discutir o poeta e não o poema", com o que evito a clássica condenação do lúcido Pound. Mas não exigirei de mim, também, no estudo que pretendo, mutilações voluntárias. Isso, nunca. Só o meu pudor, caso não o vença, e alguma delicadeza limitarão a franqueza do trabalho - análise ou, quem sabe, simples depoimento -, a que decerto não falte uma nota elegíaca. Ó Julia, que, apesar de tudo, não direi minha, pois sempre estiveste em viagem para uma região misteriosa, invisível e sem mapa!