Trecho do livro AS ENTREVISTAS DE NUREMBERG

Introdução NUREMBERG: VOZES DO PASSADO O norte-americano Leon M. Goldensohn era médico e psiquiatra na época em que os Estados Unidos entraram na Segunda Guerra Mundial. Em 1943, ingressou no exército de seu país e logo foi enviado à França e à Alemanha, onde participou de batalhas no front europeu. Pouco depois do fim da guerra, tornou-se psiquiatra da prisão de Nuremberg, cidade onde se realizaram os primeiros julgamentos pós-guerra dos principais criminosos de guerra nazistas. Goldensohn chegou a Nuremberg no início de janeiro de 1946, cerca de seis semanas após o início dos julgamentos, ali permanecendo até o final de julho daquele ano. Foi responsável pela saúde mental das mais de duas dezenas de líderes alemães que haviam sobrevivido à guerra e que lutavam então por suas vidas ante o Tribunal Militar Internacional. Por ser um médico que via os prisioneiros quase todo dia, ele também acompanhou cuidadosamente seus problemas físicos. Durante um período de sete meses na prisão de Nuremberg, falou regularmente com muitos dos 21 prisioneiros que estavam ali quando ele chegou, e realizou entrevistas formais e prolongadas com a maioria deles. Além disso, entrevistou grande número de testemunhas de defesa e de acusação, algumas das quais também haviam sido importantes oficiais nazistas. Este livro publica, pela primeira vez, uma ampla seleção das entrevistas conduzidas por Goldensohn durante sua permanência em Nuremberg. Importante acréscimo aos registros históricos dos julgamentos de Nuremberg, bem como aos do Terceiro Reich, constituem documentos de caráter singular - entrevistas sistemáticas conduzidas por um psiquiatra formado, novos depoimentos sobre a mentalidade e as motivações dos principais criminosos nazistas. ANTECEDENTES DOS JULGAMENTOS DE NUREMBERG Os julgamentos de Nuremberg resultaram de uma série de preocupações políticas e judiciais, e hoje são vistos por muita gente como um marco do direito internacional. No entanto, eles não foram inevitáveis, e poderiam jamais ter ocorrido. Durante a guerra, à medida que os Aliados tomaram conhecimento da vasta escala das atrocidades nazistas, o presidente americano Franklin D. Roosevelt, o primeiro-ministro britânico Winston Churchill e o secretário-geral soviético Josef Stalin em uma ou outra ocasião cogitaram na execução sumária como a resposta mais apropriada aos crimes nazistas. A idéia dos julgamentos foi aparentemente sugerida pela primeira vez pelo ministro do exterior da União Soviética, Vyacheslav Molotov, já em 14 de outubro de 1942. Nessa época, Molotov escreveu para vários governos do Leste europeu, exilados em Londres, sobre a tendência de Moscou de julgar os líderes mais importantes do "governo hitlerista criminoso" ante um "tribunal internacional especial". Os soviéticos estavam evidentemente contrariados com o fato de a Grã-Bretanha não querer julgar Rudolf Hess, o vice de Hitler, que havia voado até a Escócia em maio de 1941, e temiam que seus aliados pudessem até chegar a algum tipo de acordo com a Alemanha. Por sua parte, os Aliados ocidentais não estavam muito preocupados com os julgamentos pós-guerra, mas continuavam inclinados a algum tipo de execução sumária. Sua prioridade imediata era vencer a guerra. Não obstante, em 1 de novembro de 1943, os três Aliados finalmente divulgaram a Declaração de Moscou, na qual expunham a decisão quanto ao destino dos criminosos de guerra. Nela estavam expressos vários princípios gerais. Um deles determinava que quem havia cometido crimes seria devolvido às regiões onde eles haviam ocorrido para ser "julgado localmente". O julgamento e a punição seguiriam as leis do país de cada localidade. No entanto, tratamento diferente seria dispensado aos grandes criminosos de guerra, cujos crimes não se restringiram a uma área geográfica em particular. A Declaração de Moscou deixou no ar o que precisamente deveria acontecer com esses homens e não disse se seriam julgados ou sumariamente executados. Os pontos de vista de Churchill não eram nada brandos. Ele achava, conforme declarou a portas fechadas em uma reunião do gabinete a 10 de novembro de 1943 - pouco antes da Conferência de Teerã -, que se deveria preparar uma lista curta de criminosos de guerra específicos. Ele tendia a acreditar que um tratamento sumário para tal grupo poderia abreviar a guerra, já que os indivíduos nomeados se tornariam figuras proscritas em seu próprio país. Essa estratégia requeria que os Aliados evitassem as complicações de processos judiciais, e o próprio Churchill defendia uma lista de uns cinqüenta a cem líderes nazistas. Uma vez examinada a lista por algum tipo de comissão internacional de juristas, aqueles homens seriam declarados "fora-da-lei", tornando-se alvos para quem quisesse matá-los. Para Churchill, se fosse existir algo semelhante a um julgamento para os principais criminosos de guerra, seu papel seria verificar a identidade daqueles homens. Um dos diálogos mais notáveis sobre o tema das execuções sumárias teve lugar em um encontro de Roosevelt, Churchill e Stalin durante a Conferência de Teerã, que ocorreu de 28 de novembro a 1 de dezembro de 1943. No jantar de 29 de novembro, Stalin insinuou de passagem que, se no final da guerra uns 50 mil líderes das forças armadas alemãs fossem capturados e liquidados, o poderio militar da Alemanha estaria acabado para sempre. Churchill ficou abismado com o grande número de eliminações imaginadas por Stalin e disse apenas que o Parlamento e o povo britânicos jamais aceitariam tais execuções em massa. Mas a resposta de Roosevelt a Stalin foi mais calorosa, e quando Churchill ficou contrariado (pelo menos foi o que ele contou), Roosevelt replicou que os Aliados não deveriam executar 50 mil, mas "apenas 49 mil". Elliott Roosevelt, filho do presidente, estava ali por acaso e entrou na conversa para dizer que com certeza o exército dos Estados Unidos "apoiaria aquilo". O rumo da conversa aborreceu tanto Churchill que ele se retirou do recinto, mas foi seguido por um Stalin jovial, que revelou que estivera apenas brincando. Porém se examinarmos discussões posteriores e levarmos em conta que Stalin já havia instigado a eliminação de milhares de seus compatriotas e até de muitos oficiais soviéticos, temos motivos para acreditar que, se Churchill tivesse concordado naquela noite, uma decisão importante poderia ter sido tomada. A dúvida sobre se esse passo teria culminado num grande número de execuções permanece aberta à especulação e ao debate. Decerto Churchill teve suas suspeitas quanto à seriedade do que foi dito por Stalin e Roosevelt naquela noite em Teerã. Embora se deixasse persuadir por Stalin a voltar ao jantar, ele não ficou "totalmente convencido de que tudo havia sido uma brincadeira e de que não havia uma intenção séria por detrás". Dentro do governo dos Estados Unidos reinava uma profunda divisão sobre qual deveria ser a punição para os crimes de guerra nazistas. Uma das vozes mais poderosas a favor das execuções, em detrimento de qualquer tipo de tribunal, fez-se ouvir em 5 de setembro de 1944, quando Henry Morgenthau Jr., o secretário do Tesouro, propôs um plano que teria debilitado para sempre a Alemanha. Ele sugeria que os líderes nazistas fossem sumariamente executados em número que parecia próximo à "brincadeira" de Stalin em Teerã, e distante da cifra "modesta" que Churchill tinha em mente. O secretário de Guerra dos Estados Unidos, Henry L. Stimson, felizmente foi uma voz sensata no lado americano. Stimson, então com 76 anos, não aceitava a idéia de que a economia da Alemanha deveria ser desindustrializada ou destruída, supostamente para proteger o mundo de outra guerra, e também se opunha totalmente à abordagem de Morgenthau em relação aos criminosos de guerra. Stimson insistia na necessidade de um processo justo, que deveria corporificar "os aspectos básicos da Declaração de Direitos". Em um memorando de 9 de setembro de 1944, ele observou sabiamente que não se tratava de ser duro ou brando com a Alemanha, mas de adotar um método apropriado para lidar com os criminosos nazistas. A abordagem teria de resultar de uma "reflexão cuidadosa e um procedimento bem definido". Acreditava que os Estados Unidos deveriam participar de algum tipo de tribunal internacional, que acusaria os principais oficiais nazistas de crimes contra "as leis do Código de Guerra por terem cometido crueldades desumanas e desnecessárias relacionadas à condução da guerra". Ele observou que esse código havia sido confirmado pela Suprema Corte norte-americana e deveria constituir "a base da ação judicial contra os nazistas". Contudo, para consternação de Stimson, Roosevelt continuou apoiando Morgenthau - que também era seu amigo pessoal - e a posição da execução sumária, sem julgamento, pelos militares. De fato, após a Conferência de Quebec (que aconteceu entre 11 e 24 de agosto de 1944), Roosevelt e Churchill emitiram uma declaração que dizia que um processo judicial seria inadequado para "arquiinimigos como Hitler, Himmler, Goering e Goebbels [...]. Além das imensas dificuldades para constituir um Tribunal, formular a denúncia e reunir as provas, a questão do destino dos líderes nazistas é de natureza política, e não judicial. A palavra final sobre uma questão como essa, que envolve a mais ampla e vital política pública, não pode depender de juízes, por mais eminentes ou instruídos que sejam. Essa decisão deve ser 'a decisão conjunta dos governos dos Aliados'. Isso de fato foi expressado na Declaração de Moscou". Roosevelt e Churchill chegaram à conclusão de que, no cômputo geral, seria preferível executar certos líderes nazistas sem nenhum julgamento, e Stalin também parecia compartilhar desse ponto de vista. Churchill ficou um tanto surpreso, portanto, ao constatar, em visita a Moscou em outubro de 1944, que evidentemente Stalin havia mudado de idéia. Ele e outros líderes soviéticos agora defendiam um julgamento, no sentido de um tribunal internacional conforme originalmente sugerido por Molotov. Também é possível que, uma vez tendo percebido que Churchill jamais concordaria com a eliminação de dezenas de milhares de membros da elite alemã, Stalin adotasse a idéia de promover um julgamento dos principais criminosos de guerra, o que poderia servir para fins de propaganda. Talvez Stalin também pensasse que, ao defender os julgamentos, poderia melhorar sua imagem negativa no Ocidente. Nesse ínterim, os soviéticos vinham tomando suas próprias providências para ajustar contas com os invasores. À medida que libertavam seu país do jugo nazista, no verão de 1943, começaram a realizar seus próprios julgamentos, inclusive de seus cidadãos, pela participação nos crimes de guerra nazistas. No primeiro desses julgamentos (de 14 a 17 de julho de 1943), em Krasnodar, os soviéticos revelaram ao mundo um dos primeiros casos de assassinato em massa de judeus. Oito penas de morte foram aplicadas na praça da cidade, ante uma multidão estimada em 30 mil pessoas. Em agosto e setembro, alguns julgamentos soviéticos menores se seguiram, mas de 15 a 18 de dezembro outro grande julgamento público teve lugar em Kharkov, com um resultado semelhante. Ele culminou no enforcamento dos que foram considerados culpados, na praça do mercado, diante de um público estimado em 50 mil pessoas. O evento foi amplamente divulgado por cinejornais especiais, bem como pelo rádio e pela imprensa escrita. Tais processos lembraram certos observadores ocidentais dos julgamentos teatrais típicos do Grande Terror Soviético do final da década de 1930. Os soviéticos valeram-se desses primeiros julgamentos de simpatizantes nazistas para conquistar a opinião pública mundial, bem como para fortalecer o moral. A prática soviética, portanto, passou a preferir algum tipo de tribunal à execução sumária. É claro que a intenção soviética era usar o formato de um julgamento a fim de demonstrar a culpa do acusado. Esses julgamentos teatrais soviéticos, que aconteciam fora do combinado, preocuparam os governos dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha. Eles temiam sobretudo a possibilidade de que os processos desencadeassem retaliações nazistas e levassem à execução de prisioneiros de guerra americanos e britânicos capturados pelos alemães. De fato, Hitler ficou furioso e, em resposta, ordenou seus próprios julgamentos teatrais, não de prisioneiros de guerra soviéticos, mas do que ele denominou "criminosos de guerra anglo-americanos" e especialmente "bombardeadores terroristas anglo-saxônicos". As ordens de Hitler foram de fato transmitidas, mas acabaram não surtindo efeito, como aconteceu com tantas de suas ordens mais destrutivas ao final da guerra. O governo norte-americano, estimulado por Stimson, gradualmente passou a aceitar a visão de que ações judiciais eram preferíveis a execuções sumárias. Não bastava que Stimson expressasse sua oposição a Morgenthau, que parecia contar com o apoio do presidente Roosevelt; ele tinha de propor uma alternativa. Em setembro de 1944, incumbiu seu secretário John J. McCloy de investigar tal plano, e este repassou a incumbência para os escalões inferiores na cadeia de comando. No final, o coronel Murray C. Bernays produziu o que acabou sendo um documento-chave na evolução da política norte-americana. Bernays, que era advogado na vida civil, redigiu um documento sobre o que denominou o "julgamento de criminosos de guerra europeus", em que apresentou fortes argumentos a favor de um processo justo. Ele alegou que um julgamento teria enormes vantagens em comparação com a mera condenação política - como acontecera ao final da guerra anterior. Bernays argumentou que os nazistas podiam e deviam ser acusados de conspiração em ação criminosa. Ademais, ele sustentou que certas organizações (como o Partido Nazista, a Gestapo e a SS) poderiam ser indiciadas, e não apenas alguns líderes individuais. Tais organizações também seriam acusadas de fazer parte de uma conspiração criminosa. Não seria preciso acusar individualmente cada membro da organização, apenas "indivíduos representativos". Uma vez processada e condenada a organização, um membro dela poderia ser considerado um co-conspirador criminoso e sumariamente julgado pelos Aliados. É importante observar porém que, ao contrário do que alguns réus afirmaram nas conversas com Goldensohn, o Artigo 10 do que se tornou o estatuto do Tribunal Militar Internacional não declarou simplesmente que certas organizações nazistas eram criminosas. Coube ao tribunal decidir isso. Além do mais, um membro específico das organizações que o tribunal acabou considerando criminosas não era automaticamente tachado de criminoso. Cada um teve direito a um processo. A posição política e judicial do governo norte-americano a favor de julgamentos, bem como a abordagem de considerar as organizações culpadas de conspiração em ação criminosa, foram endossadas pelo secretário de Estado Cordell Hull, pelo secretário da Marinha James Forrestal, e por Stimson. Em 11 de novembro de 1944, eles enviaram um memorando ao presidente Roosevelt com orientações para a próxima Conferência de Yalta. Entretanto, Roosevelt mostrou-se surpreendentemente lento em mudar de direção. Em Yalta (7 a 12 de fevereiro de 1945), o presidente aparentemente não fez nenhuma menção à mudança de orientação de seu governo. Ele e Churchill ainda pareciam preferir execuções sumárias, mas nenhuma decisão foi tomada. Foram Stalin e os soviéticos que talvez mais contribuíram para persuadir os outros Aliados de que algum tipo de "processo judicial era o caminho a tomar". Stimson e outros continuaram tentando induzir o presidente a seguir naquela direção. Eles continuaram insistindo na necessidade de evitar a impressão de que os Aliados buscavam vingança. Este ponto de vista foi aceito pelo novo presidente, Harry S. Truman, ao assumir o governo, após a súbita morte de Roosevelt em 12 de abril de 1945. Os pedidos de execução sumária não deram em nada, uma vez que Truman adotou a posição pró-julgamento defendida, no final de 1944 e no início de 1945, por Stimson, Hull e outros altos funcionários do governo. Em diversas reuniões entre os Aliados, em 1945, os americanos também convenceram os relutantes britânicos. Em 3 de maio (em San Francisco), os Aliados ocidentais e a União Soviética, junto com a recém-libertada França, concordaram em princípio com processos judiciais. Em 8 de agosto, após mais alguns meses de negociações em Londres, eles enfim redigiram um estatuto para os julgamentos. Estabeleceram em detalhe como o tribunal seria constituído e quais seriam os direitos dos réus. Ao mesmo tempo, os Aliados chegaram a um consenso sobre as quatro alegações da acusação: conspiração em ação criminosa, crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Mesmo após concordarem em princípio com os julgamentos, os Aliados tiveram de superar os últimos obstáculos à sua realização. Parte da dificuldade estava no fato de que as potências anglo-americanas liberal-democráticas e a União Soviética tinham concepções bem diferentes dos julgamentos. Os soviéticos haviam padecido sofrimentos extremos nas mãos dos invasores alemães. Mesmo segundo estimativas conservadoras e totalmente confiáveis, a guerra entre Alemanha e União Soviética ceifou a vida de cerca de 25 milhões de almas na União Soviética, a maioria civis. Os líderes soviéticos tinham em mente julgamentos espetaculosos, concebidos para demonstrar a "medida da culpa" de cada um dos acusados, após os quais eles receberiam "a punição necessária". Já para os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, uma vez aceita a noção de um julgamento, concluía-se necessariamente (pelo menos em teoria) que os réus tinham certos direitos de defesa. Também se presumiria sua inocência até que fosse provada a culpa, além da possibilidade de que parte ou a totalidade dos acusados viesse a ser solta ou, pelo menos, considerada não-culpada em algumas alegações. Também foi difícil aos Aliados chegar a um consenso sobre a forma e os procedimentos do julgamento, devido às diferenças entre a tradição legal anglo-americana e a do continente europeu. Os Estados Unidos e a Grã-Bretanha adotam um sistema "antagônico", em que causas relativamente indefinidas vão a julgamento, as provas são apresentadas no tribunal e testemunhas - às vezes, também o acusado - são interrogadas sob juramento por advogados de defesa e pela acusação, que se enfrentam no tribunal até se chegar a um resultado. Já no continente europeu vigora um sistema mais "inquisitorial", em que o trabalho investigativo é realizado por um magistrado que compõe um dossiê baseado nas provas. Se uma denúncia se justifica, cópias do dossiê são entregues ao tribunal e ao acusado. Durante o julgamento, são os juízes que decidem se devem ser ouvidos depoimentos adicionais. São eles que questionam as testemunhas, mas raramente interrogam o acusado, que pode ou não fazer uma declaração no final do julgamento. O juiz soviético em Nuremberg - cuja participação nos notórios julgamentos de fachada da década de 1930 em Moscou era conhecida no Ocidente - perguntou com certa consternação numa das últimas reuniões pré-Nuremberg em 1945: "O que vocês de língua inglesa entendem por 'interrogar'?". Os americanos e os britânicos levaram a melhor sobre como se procederia ao julgamento. Eles negociaram o que costuma ser considerado um acordo inteligente com os soviéticos e os franceses, mas é claro que os acusados não tiveram nenhuma participação nas discussões pré-julgamento. Eles também foram privados de muitos dos direitos mais importantes garantidos pela Constituição norte-americana. Por exemplo, os acusados não poderiam invocar a Quinta Emenda, que lhes teria permitido se recusarem a responder a uma pergunta se ela pudesse incriminá-los. Os acusados poderiam ser, e de fato foram, interrogados no tribunal, um de cada vez, e não poderiam se recusar a depor. [...] Karl Doenitz 1891-1980 Karl Doenitz foi almirante-mor, comandante-em-chefe da marinha a partir de 1943. No último testamento de Hitler, o Führer designou Doenitz seu sucessor. Foi condenado em Nuremberg a dez anos de prisão por crimes contra a paz e crimes de guerra. Libertado em 1 de outubro de 1956, aposentou-se e foi morar na aldeia de Aumühle, no Schleswig-Holstein. Escreveu dois volumes de memórias, o mais importante dos quais foi Dez anos e vinte dias (1968). Morreu em 24 de dezembro de 1980. 3 DE MARÇO DE 1946 Passei a tarde com Karl Doenitz. Ele é polido, de uma afabilidade meio suspeita, fala um inglês quase perfeito, mas é preciso deixá-lo bem à vontade, senão não abre a boca. Perguntei-lhe sobre sua saúde. Pediu que eu me sentasse e ofereceu-me um lugar no catre. Falamos sobre seu reumatismo, particularmente incômodo, no pulso esquerdo. Há um ligeiro inchaço no pulso esquerdo se comparado com o direito, mas nenhuma diferença marcante. Perguntou-me o que achara dos julgamentos, e respondi que estivera muito ocupado nos últimos dias e não comparecera regularmente às sessões. As sessões das últimas semanas dedicaram-se principalmente às acusações contra as diversas organizações. "Seu juiz Francis Biddle", disse Doenitz, "vê claramente, bem claramente. Você o ouviu fazendo todas aquelas perguntas aos promotores?" Respondi que ouvira algumas delas. Doenitz está muito impressionado com Biddle, que segundo ele está bem acima dos demais juízes. "Ele exibe aquele sorriso discreto", disse, "quando está ouvindo algo questionável. Um homem admirável. Muito justo e perspicaz." Respondi que Biddle era um homem excelente e que fazia parte do gabinete de Roosevelt. Fiz o comentário enfaticamente, já que se tem comentado que a defesa recorrerá à propaganda anti-Roosevelt quando começar a atuar, na semana que vem. Doenitz gostou particularmente da pergunta de Biddle ao juiz Robert H. Jackson sobre até onde iria a responsabilidade por atos criminosos, caso as organizações fossem consideradas criminosas. Doenitz acha que é "muito perigoso" considerar criminosas essas organizações, porque milhares de pessoas fizeram parte delas, e todo alemão teve pelo menos um parente que pertencia à SS, à SA, ou ao SD e assim por diante. "Você sabe o que disse o seu general Lucius Clay? Disse que, caso este tribunal julgue culpadas as organizações, terá de prender imediatamente 500 mil alemães." Respondi que não tinha tomado conhecimento da declaração do general Clay, mas que o juiz Jackson havia deixado bem claro que não pretendia que todos os membros dessas organizações fossem julgados, mas que seu dirigente e assemelhados deveriam enfrentar a justiça. Esse ponto não era do conhecimento de Doenitz, nem de Baldur von Schirach, Wilhelm Frick e os outros com quem falei nos últimos dias. Conversamos sobre vários assuntos. Os planos de Doenitz para o futuro, por exemplo, consistem em: "Vou arranjar um quarto pequeno, me isolar com minha esposa e escrever minhas memórias. Acho que devo fazer isso pelo povo alemão. Assim, ele poderá ver o que ocorreu e quão pouco aqueles que estavam na liderança sabiam sobre as atrocidades de Hitler e Heinrich Himmler". Doenitz disse que para os americanos é difícil entender, mas o lema de Hitler era "Trate de sua própria vida e cumpra sua obrigação". Portanto, Doenitz ignorava quaisquer planos de guerra agressiva, ignorava o extermínio dos judeus, ignorava os planos de extermínio de 30 milhões de eslavos, ignorava as atrocidades na Rússia e na Polônia. "Sei que os russos fizeram as mesmas coisas quando atravessaram a Prússia oriental." Contestei, perguntando-lhe como sabia disso e de que provas dispunha. Ele admitiu que não eram informações de primeira mão, mas que tinha saído muita coisa na imprensa nazista sobre as atrocidades russas, e parte daquilo sem dúvida era verdade. Ele sente que teve uma "vida dura". Esteve na guerra anterior e, no final, era tenente da divisão de submarinos. Permaneceu na marinha durante todos aqueles anos. Percorreu o mundo inteiro, mas estranhamente nunca foi para a América. Ele acha isso uma pena, e gostaria de ter conhecido os Estados Unidos. Doenitz esteve no Japão e viajou por todo o globo. De 1918 até ser convocado pelo almirante Erich Raeder, em 1935, para reorganizar o serviço de submarinos, serviu em cruzadores e outras embarcações da marinha. Foi uma atribuição difícil, e ele se surpreendeu por tê-la conseguido. Ele se lembra de ter sido informado por Raeder de que estaria encarregado dos submarinos e do treinamento que é feito neles. Doenitz estivera afastado da evolução dos submarinos por muito tempo, e só havia homens jovens na marinha, de modo que teve de se reciclar no assunto. Daquela época em diante, esteve diariamente em submarinos. "Não foi bom para meu reumatismo", ele disse, "ficar exposto a umidade, óleo e água o tempo todo." Até 1943, ele via Hitler uma vez a cada dois anos. Depois de 1943, passou a vê-lo duas vezes por mês. Nos últimos meses, esteve em contato freqüente com o Führer. Ao ser informado de que Hitler havia cometido suicídio e que ele fora escolhido para ser seu sucessor como chefe de Estado, decidiu pedir paz "imediatamente, e foi o que fiz". Comentei que, se minha lembrança do rádio daquela época estava certa, anunciou-se primeiro que a Alemanha se renderia aos britânicos e americanos, mas não aos russos. Ele assentiu. Foi apenas um gesto simbólico, ele disse. Ele sabia que aquilo era impossível. Não se considerava sucessor de Hitler. Sentiu que havia sido escolhido para apelar pela paz e tratar da rendição, porque somente uma figura não-política poderia fazê-lo. Por essa razão aceitou a designação de sucessor de Hitler como chefe de Estado. Perguntei o que achava do "princípio do Führer". Ele respondeu que nunca havia sido a favor, porque um homem sempre precisa de um "corretivo". Por isso, um chefe de Estado necessita de um chefe de estado-maior e outros conselheiros. Ele teria se oposto a Hitler de alguma maneira, por quaisquer ações ou opiniões expressas? Não. Ele era um homem do mar, e isso era tudo. A maior parte das atrocidades, ele acredita, foi cometida por austríacos, ou pelo menos pelos bávaros. Ele parece detestar mais os bávaros do que os austríacos. "Eles são coléricos." Explicou isso afirmando que os bávaros eram emotivos demais. Por exemplo, se um grupo de alemães do norte estivesse passeando de trenó e a peça de madeira entre o trenó e o cavalo se quebrasse na subida da montanha, os alemães do norte saltariam do trenó e tratariam de consertar a peça. Mas o condutor do trenó bávaro saltaria, teria um acesso de cólera, pegaria a peça quebrada e bateria com ela numa rocha, xingando: "Peça ruim, peça horrível!" etc. Ele riu dessa descrição. E o caráter do alemão do norte?, perguntei. "O alemão do norte é lento, tranqüilo, pensa, talvez seja burro." Ele sorriu ao dizer isso. Estava obviamente tentando se autocaracterizar. "O alemão do norte não se entrega a extremos. Ele tem horizontes mais amplos do que os homens das montanhas da Baviera e da Áustria." Perguntei se ele achava que Hermann Goering também não sabia nada sobre os planos de guerra, atrocidades, programas de extermínio etc. Ele respondeu que acredita que Goering está dizendo a verdade e não sabe mais do que diz que sabia. "Percebo quão impossível isso deve soar para um americano. É algo que não poderia ocorrer em uma democracia. Mas em nosso tipo de governo era possível." Joachim von Ribbentrop, ele sente, parece ser um homem insensível. Doenitz não exprime muitas opiniões sobre Ribbentrop, exceto que, "quando esses julgamentos começaram, você sabe que Ribbentrop disse que sua memória estava prejudicada pelas pílulas para dormir". Respondi que era meio impossível a memória de um homem ser seriamente prejudicada por sedativos. Doenitz riu e disse que também achava meio impossível. "Tenho um bom advogado. Ele mostrará em minha defesa que eu mal conhecia qualquer um desses homens. Encontrei-me com Ribbentrop algumas vezes, a primeira em 1943, acho. Com Schirach estive pela primeira vez, acredito, em 1944." Ele acredita que seu advogado, um juiz da marinha, é muito competente. Ao ser informado de que precisaria de um advogado de defesa, não lhe ocorreu nenhum. Depois se lembrou de que estivera presente em uma audiência presidida por esse oficial da marinha, antes da guerra, referente a um incidente em que teria de apontar o responsável pela colisão contra um navio da marinha. "Gostei da maneira como ele cuidou do caso, de modo que solicitei Otto Kranzbuehler. Devo dizer que não estou desapontado com ele. E os britânicos e os americanos estão fazendo tudo o que podem para ajudar na minha defesa. Na semana passada, meu segundo advogado de defesa, também ex-oficial da marinha, foi mandado de avião a Londres, e tratado com toda a cortesia, a fim de pegar documentos em meu favor. Ele deve voltar esta semana. "Você sabia", continuou Doenitz, "que o juiz britânico, Sir Geoffrey Lawrence, enviou-me uma carta que o tribunal havia recebido de cerca de cem comandantes de submarinos alemães agora confinados na Inglaterra, em que fizeram uma declaração juramentada de que eu nunca ordenei que se atirasse contra os sobreviventes de navios afundados, muito pelo contrário?" Quanto aos projetos para o futuro, depois que fosse libertado da prisão, indaguei: Qual será o tema de suas memórias? Bem, ele respondeu, em essência, eu as estenderei por toda a minha vida, ao longo do Império, da época da República de Weimar aos tempos do Terceiro Reich. Seu tema principal, ele acredita, será sobre se deveriam existir os Estados Unidos da Europa, sob a direção da Grã-Bretanha. "Uma comunidade de nações da Europa", ele disse, "para se agruparem e contrabalançarem a Rússia a leste." Perguntei se ele achava que aquilo fosse realmente acontecer. Ele respondeu que era o que achava, e que aquela não era uma idéia nova para ele. Se a Grã-Bretanha viesse a realizar aquilo, deveria convidar a Alemanha para ser membro dessa comunidade de nações. Disse que a Alemanha precisa fazer isso, porque sua cultura está ligada ao Ocidente, e não ao Oriente, como a cultura russa. Perguntei se ele continuava raciocinando em termos de equilíbrio de poder. Sim, definitivamente. Perguntei se ele não achava que uma guerra contra o Leste europeu estava implícita em suas recomendações de uma comunidade européia unida para contrabalançar o peso da Rússia. Ele respondeu que não tinha a menor idéia do que resultaria daquilo, mas que não pensava numa guerra com a Rússia ao recomendar uma Europa unida, que seria uma comunidade sob a proteção britânica. Ele perguntou onde eu estava morando, e respondi. Quis saber se era um hotel. Respondi que era um antigo prédio de apartamentos. Suspirou. "Sou um velho aos 54 anos, sem dentes e com reumatismo." Explicou que quase todos os seus dentes eram artificiais e ele sentia que sua vida útil meio que já havia passado. "Minha esposa terá de trabalhar para ganhar nosso pão enquanto escrevo minhas memórias", observou ironicamente. Acho que esse homem não tem a menor idéia do que está ocorrendo no mundo. Ele é arguto, nada estúpido, mas sua mente parece ter bloqueado os aspectos principais dos julgamentos até agora. Rejeita as atrocidades, a matança de milhões de judeus, o barbarismo da ss, todo o modus operandi criminoso do Partido Nazista. Vê apenas que era inocente de qualquer crime, passado ou presente, e que seja qual for a tentativa de incriminá-lo ou a qualquer um dos outros que estão sendo julgados com ele, isso é maquinação política. Se por um lado sente que as ações da Alemanha foram o resultado da opressão após a guerra anterior, por outro, nega-se a reconhecer a própria culpabilidade como servidor fiel de Hitler e seu regime. Ele nega as atrocidades no mar, e ainda tem dúvidas sobre as cometidas em terra. E quanto às provas?, perguntei. "Sim", respondeu, "o doutor Douglas Kelley e o doutor Gustave Gilbert me disseram, quando foi mostrado aquele filme em que os habitantes de Weimar tiveram de ir ver Buchenwald, que estava claro no rosto das pessoas que elas nada sabiam do que ocorrera ali. No filme, seu rosto estava alegre quando entraram em Buchenwald. Quando deixaram o local, dava pra ver que elas estavam arrasadas." Perguntei se o próprio filme não seria prova suficiente dos crimes de guerra e das atrocidades do regime nazista, se aceitava aquele filme como documentário e verdadeiro. Claro que sim, respondeu, mas quanto às demais atrocidades, ainda tinha dúvidas. "Isso simplesmente mostra quão pouco nós da liderança sabíamos do que estava acontecendo." Durante a entrevista, ele desenhou para mim um torpedo tripulado e explicou seu funcionamento. Contei que ouvira dizer que se tratava praticamente de uma missão suicida para o piloto. Ele concordou, mas observou que era uma arma muito eficaz quando o inimigo se aproximava da costa e deu a entender que atingir um grande encouraçado ou outra embarcação valia uma vida. Comentei que eu não gostaria de ser o piloto de um daqueles torpedos. Rindo, Doenitz disse: "Para atingir um grande navio, vale a pena". Quando saí para atender o telefone, ele escreveu (em alemão) no papel onde havia desenhado o torpedo submarino: "Lembrança de uma agradável conversa vespertina" e assinou seu nome. Disse que havia adorado a conversa e me convidou a voltar. [...]