Trecho do livro ÀS CEGAS

1. Era o primeiro dia dos exames. Eu estava extremamente nervoso. Sabia que não tinha base, e não tivera tempo suficiente para estudar. Em 1979 fora promulgada uma lei que, entre outras coisas, facultava ao presidiário o direito de freqüentar um curso superior. Até então, eu havia lido bastante, mas somente o que me interessava. Estudos curriculares não me chamavam a atenção. Meu amigo Henrique Moreno é que tinha vindo com essa novidade. Na época, eu estava meio que perdido, sem objetivos. Preso por homicídio e assaltos em 1972, fora condenado a quase cem anos de prisão. Certificados não teriam significado algum. Saíra de uma relação amorosa que me causara sofrimento imenso. Tinha uma certeza: pessoas como eu, que desde a infância vinham dando trombadas contra os muros da vida, não tinham grandes chances de alcançar equilíbrio. Particularmente quando presas. Estava me conformando com isso. Felicidade, eu sabia, era impossível. Tudo o que queria então era um pouco de paz. Não muita, também. Jovem, precisava de movimento. A rotina prisional esmagava. Mergulhava a alma em oceanos de tédio, angústias estupidificantes. Havia muito que eu estava consciente do que fizera. Mas e aí? Ia ficar me derretendo em culpas? Depois, a prisão tinha movimento também. Perigos nos espreitavam a cada curva de galeria. Quase toda semana três a quatro companheiros eram assassinados a facadas ou pauladas. Os motivos nem sempre justificavam. E isso me deixava pisando em ovos. De repente um daqueles malucos cismava com minha cara, e olha eu diante de uma faca ensangüentada. Tinha certeza de que não seria capaz de me defender. Se dependesse de mim, estava fodido. Passara quase três anos estudando e fazendo exames. Do final de 1979 até meados de 82, me dedicara de corpo e alma a um ideal. Chegaria a uma faculdade. Eliminei as matérias do primeiro grau e, com bastante dificuldade, as do segundo. Prestei os exames supletivos promovidos pelo setor de educação da Penitenciária do Estado, onde me encontrava. Deixei de freqüentar o pátio de recreação. Só saía da cela para ir ao campo de futebol dar uma arejada uma vez por semana e para receber visitas. Fora uma luta. Estudava através dos cursos do Instituto Universal Brasileiro. Sozinho. Amigos haviam me emprestado as apostilas. É claro que outros companheiros também estudavam. Nós nos ajudávamos. Não sei qual foi o pensador que afirmou que os cegos ajudariam aos cegos, e os aleijados, aos aleijados. Ali, ninguém sabia muito, muito menos tudo. Mas sabíamos alguma coisa e aprendíamos uns com os outros. Quando concluí a primeira parte da missão que me impusera, os ventos se tornaram favoráveis. Algo conspirava em meu benefício. Eu não sabia do que se tratava, mas sentia, nitidamente, um sopro. Duas estagiárias de direito começavam a nos atender. Buscavam ganhar experiência e cumprir o estágio. Lívia e Beatriz. Nós nos aproximamos delas. Eram lindas, particularmente Lívia, com seus olhos enormes. Claro, as garotas nos atraíam. Vivíamos contenção sexual obrigatória havia anos. Alguns companheiros, havia décadas. As coisas estavam mudando na prisão. Mas muito lentamente. A visitação, que por décadas durara só quarenta minutos e na qual era permitido apenas um contato físico mínimo, agora se alongava. Podíamos nos sentar ao lado de nossos visitantes. E por três horas seguidas. A mesa, que antes nos separava, hoje escondia o que as mãos faziam debaixo dela. Beijos, que outrora significavam trinta dias de castigo, passaram a ser a tônica. Se, a princípio, as estagiárias nos atraíam pela beleza e gostosura, logo nos conquistaram também pela educação e generosidade. Ambas tinham seus namorados lá fora, e não estavam ali em busca de aventuras. Se bem que Lívia e meu amigo Nélson Piedade tiveram um ligeiro affaire, que só não deslanchou por conta das circunstâncias. Tornaram-se amigas muito queridas de todos nós. Lutavam por nossas causas jurídicas com paixão. Tive a idéia de pedir a Lívia que encaminhasse uma carta à reitoria da Pontifícia Universidade Católica, a PUC. Uma solicitação formal de bolsa de estudos naquela instituição. A garota dos olhos grandes passou a manhã na reitoria para entregar a carta em mãos. Valeu a luta. Não demorou para que eu recebesse a resposta. A reitora declarava, oficialmente, que me concedia uma bolsa completa no curso que eu escolhesse. Nem acreditei. Precisei ler várias vezes, era bom demais. Naturalmente, a concessão da bolsa estava condicionada à classificação nos exames vestibulares da universidade. E me classificar seria complicado. Eu tinha uma dificuldade quase intransponível em física e química. Impossível aprender sem professor. Assimilava com certa facilidade o que me interessava. Mas com as coisas que não despertavam minha curiosidade... era uma negação! Matérias exatas, definitivamente, não eram meu forte. Aliás, para ser bem sincero, quase nada daquilo que eu estudava me interessava de fato. Com exceção de história, que eu lia (lia, é necessário dizer, não estudava) com algum prazer, o resto aprendia meio que na marra. Tanto que, quando não precisei mais, esqueci tudo. Carecia de apoio. Meus amigos pouco poderiam contribuir, precisava de alguém extramuros. Estava com a faca e o queijo nas mãos, mas não sabia cortar. Escrevi para minha amiga Maria João. Fazia alguns anos que a conhecia. Ela já me pusera em contato com pessoas bastante interessantes. Extrovertida, tinha um coração sem tamanho. Vivia envolvida em idealismos e causas perdidas. Devia conhecer alguém que pudesse me ajudar. Sua resposta, como eu esperava, foi puro entusiasmo. Conhecia, sim, alguém que poderia me ajudar. E muito. A professora Maria Nilde Mascelani. Uma educadora emérita. Com certeza se interessaria em defender minha causa. Escrevi-lhe com toda a ansiedade que me caracterizava. Anos antes, dona Maria Nilde fora contratada por entidades religiosas européias para fazer um levantamento do que se ensinava em termos de educação moral e cívica, além de organização social e política, nas escolas do Brasil. Suas pesquisas deixaram claro que as referidas matérias eram manipuladas para justificar a ditadura militar que oprimia o país e dar sentido a ela. A educadora foi presa e mantida incomunicável por quinze dias numa cela do DOPS. D. Paulo Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo, quebrou sua incomunicabilidade. Na época em que a procurei, ela dirigia uma organização chamada RENOV, voltada para relações trabalhistas e otimização de escolas. Respondeu-me pondo-se a minha inteira disposição. Do que eu precisava de fato? Já passáramos do meio do ano de 1982. Teria cinco meses para me preparar para os exames. Necessitava fazer a ponte entre a universidade e a Penitenciária do Estado. Somente assim os examinadores poderiam vir aplicar a prova. Dona Maria Nilde apresentou-me sua secretária, Ely Pires, que se ocuparia de tudo e a manteria a par dos acontecimentos. Registrei Ely como minha visitante. Surpreendeu-me. Cerca de dez anos mais velha que eu, era cheia de experiência e de uma generosidade pura. Diferente de mim, não se dirigia pela emoção, mas pela razão e discernimento. Conversamos muito, e a respeitei desde o primeiro instante. Seca e objetiva, ia direto aos finalmentes. Em pouco tempo me pôs em contato com Mário, professor de matemática e física. Ele se propunha a me auxiliar na preparação para os exames. Os meses se passaram. Estudei bastante, embora soubesse fosse insuficiente. Os amigos também me ajudavam. Particularmente o Henrique Moreno, que me doou um curso de vestibular da Editora Abril. Ele me apoiava havia anos e se tornara meu maior amigo. Era a pessoa que mais torcia por mim. Mais até que minha mãe, para quem eu continuava a ser o menino mentiroso e perturbado de sempre. Lutei muito com as matérias para poder fazer um teste razoável. Mas a chance de me classificar estava nas leituras anteriores. E sobretudo no despreparo dos outros vestibulandos. Eram poucos os que sabiam alguma coisa. Aqueles conhecimentos todos eram fundamentais. Mas eram um saco. Insuportáveis. Vivi momentos difíceis tentando memorizá-los, sem conseguir. Sofri demais, e me achava burro, estúpido. Aprendia hoje para esquecer amanhã. Inúmeras vezes minha auto-estima foi a zero. Mário me ajudava. Mas, quando nos encontrávamos, eu queria era saber da política. Das coisas lá fora, de mulheres, da vida e da efervescência. Pouco pôde me ensinar de fato. Bem, mas ali estava eu, pronto para dar o sangue nos exames. Logo cedo fui chamado para as entrevistas. Não era bem-visto pela diretoria. Morava no terceiro pavilhão. Pavilhão dos vagabundos - onde aconteciam os crimes e se iniciava a maioria das rebeliões. Junto comigo, o Florentino. Um companheiro que, apoiado pela diretoria da casa, conseguira autorização para prestar o vestibular. Um advogado o apadrinhava. E fora esse advogado, também professor auxiliar da PUC, que agilizara a vinda dos examinadores à prisão. Estávamos no final do mandato de Paulo Maluf, o último dos governadores paulistas imposto ao povo pelo regime militar. O diretor da penitenciária tentava, através de nós, presos vestibulandos, conservar seu posto, um cargo de confiança. O novo governador, sabia-se, seria do PMDB. O PDS, partido que dava apoio aos militares, não teria chance. A eleição seria direta. São Paulo era reduto dos principais quadros democratas do país. Lutavam, agora abertamente, contra a ditadura. O nome de Franco Montoro era o mais cotado. Os diretores da casa e o advogado que apoiava Florentino eram malufistas por excelência. Os diretores seriam escorraçados dos cargos, conforme todas as previsões. A prisão vivia em desespero. Direitos humanos, nem se cogitava nisso. O tema do discurso da diretoria era "trabalho para o preso". Mostravam o registro de todos os presos nas oficinas. Mas só no papel. Mais da metade da população vivia trancada feito bicho. Apenas duas horas de recreação em três dias da semana. Os guardas do Choque espancavam acintosamente. Os que mais sofriam nas mãos deles eram aqueles que enlouqueciam e perdiam a noção de tudo. Não havia quem os protegesse. A lei do cano de ferro imperava. Fui conversar com os jornalistas. Deixaram-me no corredor do prédio da administração, escoltado por um guarda do Choque. Devia ficar ali, enquadrado. Uma repórter falava com o diretor. Florentino, que trabalhava na copa da administração, estava na sala, de jaleco impecável de garçom, servindo limonada para todos. Depois de mais de duas horas de canseira, a repórter veio ter comigo. Eu a conhecia da tevê Globo. Chamava-se Maria Cristina Poli. Explicou o que me perguntaria. Levaram-nos, eu e Florentino, para o jardim. Luzes, câmara, ação! A comédia tinha início. O artista número um dizia que o diretor da prisão era como um pai para ele. Chegou a imitar um personagem do Chico Anysio que fazia muito sucesso na época: "Meu paipai...". Arrepiei-me de asco. Era minha vez. Comecei a suar, estava extremamente nervoso. Dez anos de cadeia deixavam qualquer um inseguro e inibido. Tudo era desconcertante. Só a muito custo consegui me expressar. Mesmo assim, com enorme dificuldade. Minha roupa ficou ensopada. Eu tremia, à beira de um infarto. Dei graças a Deus quando me liberaram para voltar à cela. À noite, quando fui assistir à entrevista, não me reconheci. Aquela voz não era minha. Não me saí bem, mas pelo menos não dei mancada. Consegui escapar das armadilhas que imaginei existirem. Não falara da diretoria. Não expressara juízo de valor. Havia citado apenas a luta para estudar sozinho e as perspectivas de fazer um exame razoável. Na hora do almoço, fui convidado para ir à copa da diretoria. Comida boa, bem-feita, com três tipos de mistura. Até pudim de sobremesa havia. Fazia dez anos que eu não comia numa mesa, com garfo e faca. Difícil estar à mesa com um bando de mulheres. As mulheres que trabalhavam na administração do presídio também almoçavam ali. E eu era novidade. Aquelas gostosas todas me olhando, aquele perfume forte. Não sabia se olhava para o prato ou para elas. O prazer de comer bem acabou vencendo. Comi como um cavalo. Fiquei com uma agradável dorzinha de estômago cheio. Quando chegaram os examinadores, fui escoltado até o salão nobre. Carpete cor de sangue, cadeirões antigos estofados com veludo da mesma cor do carpete. Lindo! Uma mesa enorme de carvalho, piano ao fundo. Tudo cheirava a limpeza. Eu jamais vira tamanho luxo. Era como se tivéssemos entrado num teatro. Fui apresentado aos examinadores. Pareciam assustados, como todas as pessoas que adentravam a prisão pela primeira vez. Num determinado horário, assumimos nossos postos de batalha. Eu numa ponta da mesa, Florentino na outra. Tínhamos duas horas para responder tudo. Entregaram-nos as provas, e o tempo começou a ser cronometrado. Quando abri o exame, me espantei com o número de questões. Muitas, demais! E o tempo, mínimo. Tentei me acalmar. Difícil. Liguei a máquina de chutar e tentei os chutes mais lógicos. Depois, aqueles por associação. E, finalmente, os chutes no escuro mesmo. Passamos uma semana nessa maratona. Minha engenhoca de chutar chegou a me dar certa tranqüilidade. Português: era uma redação, moleza. Francês: consegui ler tudo. História: bem, aí a máquina estava azeitada. Química, física e matemática: até cansei a perna de tanto chutar sem sequer encostar na bola. No fim, não tinha segurança de nada. Achei que fora muito mal, se não pessimamente. Teria uma chance apenas se os demais vestibulandos fossem piores que eu. O que seria lamentável. Fotógrafos dos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo nos fotografaram. O melhor de tudo foi o convívio com as mulheres na hora do almoço. Eu já me sentia esquecido da alegria feminina. Da quantidade enorme de coisas boas, além do sexo e da estética, que havia em estar com mulheres. A graça, a voz modulada, os gestos harmoniosos, o jeito terno de ser e todo o encanto delas. Como aquilo fizera falta em minha vida!