Trecho do livro SOLO DE CLARINETA, VOL. 1

ÁLBUM DE FAMÍLIA 1 Senti um dia a curiosidade de descobrir a origem dos Verissimos. Graças a um amigo dado a pesquisas genealógicas, fiquei sabendo que o ramo brasileiro dessa família de nome superlativo começou no Brasil com o português Manoel Verissimo da Fonseca, natural da freguesia do Ervedal, na Beira Alta. Tendo emigrado de Portugal em 1810, casou-se aqui com a moça Quitéria da Conceição, natural de Ouro Preto. O casal mudou-se para o extremo sul do país, atraído não sei por quem nem por quê, e com ele começa o tronco paterno do meu clã. O materno - também de origem portuguesa - veio possivelmente do planalto de Curitiba e de São Paulo. Desconfio que de seus ramos brotaram alguns desses tenazes tropeiros de Sorocaba, que desciam a cavalo ao Rio Grande do Sul para comprar mulas, a fim de revendê-las na feira de sua vila natal. Cruz Alta foi o ponto de encontro dos dois troncos, cujos ramos se uniram e, numa sucessão de enxertos e cruzas, tornaram possível o desabrochar desse espécime humano que agora me contempla, irreverente, do fundo do espelho. O miserável não está levando a sério estas memórias. Descobri na idade adulta que vivem dentro de mim, como irmãos xifópagos, dois sujeitos: um deles sisudo, responsável e até moralista; o outro um pícaro que não leva nada a sério. Analisando a vida e as proezas de meu pai, sinto que em suas veias predominou - vá lá mais esta simplificação! - o quente e turbulento sangue dos Mello e Albuquerques. Um de meus bisavós, um gaúcho que, apesar de sua bravura e de seu gosto pela ação militar, carregou vida em fora a alcunha de Mello Manso, era coronel do Exército imperial, lutou contra os farrapos e - segundo ouvi de murchos mas orgulhosos lábios avunculares - foi ele quem prendeu Anita Garibaldi no combate de Curitibanos. Quando menino escutei, num misto de fascinação e divertido espanto, as proezas dum certo tio-bisavô que detestava o trabalho com a mesma intensidade com que gostava de mulheres. Contava-se que esse faunesco Mello e Albuquerque, quando não era visto estendido numa rede a pitar e a improvisar versos pornográficos, era porque andava por vilas, cidades e estâncias, empenhado em promíscuas aventuras eróticas. Apesar de nunca haver-se casado, produziu quarenta filhos. 2 A jovem que se uniu em matrimônio ao homem que viria a ser meu avô paterno era uma bela criatura, alta e esguia, de face longa, boca rasgada, de belo desenho, olhos salientes e graúdos, e pele trigueira. D. Adriana, senhora do Sobrado - nome que na minha cidade natal se dava à mansão desses avós -, era uma dama de moral impecável mas, para a época em que viveu, de hábitos um tanto ousados e "modernos", pois costumava fumar cigarrilhas e escrever sonetos. As lembranças que tenho dessa avó me vêm dum velho retrato, em que ela se parece um pouco com Virginia Woolf, e das muitas histórias que entreouvi na infância, em serões familiares. Quando a morte a levou - tinha eu pouco mais de dois anos -, um vácuo se abriu no Sobrado e na vida de seu marido, o dr. Franklin Verissimo da Fonseca, cidadão conhecido pela sua generosidade, sua habilidade como médico e pela sua atitude paternal para com os pobres. Permaneceu viúvo o resto de sua vida, que não foi muito longa, pois não chegou a entrar na casa dos sessenta. Era baixo, de pernas um pouco arqueadas, testa arredondada e alta. Uma expressão de bondade e bonomia animava-lhe o rosto cor de marfim antigo. Tinha o hábito de olhar as pessoas e as coisas com o rabo dos olhos, como se desconfiasse de tudo e de todos. Mas não desconfiava. Era um homem de boa-fé, dotado duma inesgotável capacidade de tolerância. Foi estancieiro, dentista e finalmente médico homeopata, apesar de não ter sequer terminado o curso ginasial. Como naqueles tempos vigorasse no Rio Grande a liberdade profissional, o "dr." Franklin, com suas agüinhas, suas pomadas e ervas, e principalmente com sua presença sedativa, ia aliviando as dores e curando as doenças de sua numerosa clientela. Guardo desse avô paterno a mais terna das recordações. Quando minha mãe me metia na cama, suspeitando que eu estivesse febril, quantas vezes me animou a certeza de que um simples toque da mão do velho Franklin na minha testa seria o bastante para afugentar a febre! Eu gostava do cheiro de desinfetante daqueles dedos de pontas com manchas de nicotina, e que eu imaginava de iodo. Lembro-me do ruído regular de seus punhos engomados quando ele sacudia o termômetro para fazer a coluna de mercúrio baixar, antes de colocá-lo na minha axila. Sentava-se na cama, olhava-me com seus olhos mansos e, passando a mão pelos meus duros cabelos de bugre, dizia: "Seu peidorreiro, vamos ver se isso é febre mesmo ou preguiça de ir à escola". Apanhava o termômetro, erguia-o contra a luz e murmurava: "Não é nada. Quando casar sara". Fazia recomendações a minha mãe, a quem chamava "sia" Bega, receitava papéis de calomelano e umas águas homeopáticas, que para mim já tinham "o gosto do vovô Fiquila" - e depois se ia. O velho Franklin costumava passar todas as noites à mesma hora pela frente de nossa casa, a caminho de seu sobrado. No inverno agasalhava-se numa capa preta com uma sobrecapa curta, espécie de pelerine, conhecida entre nós por cavour - um tipo de abrigo que, uns vinte e tantos anos mais tarde, eu veria em gravuras de revistas, cobrindo as adiposidades do escritor inglês G. K. Chesterton. Habituado àquela rotina noturna, eu ficava na cama, de ouvido atento. As passadas de meu avô eram para mim inconfundíveis. O menino sabia que, ao dobrar a esquina, o velho em geral soltava a sua tosse breve e seca, espécie de cacoete muito seu. E só depois que cessava o rumor daqueles passos é que eu sentia que tudo no Universo estava bem e no seu devido lugar: Deus no Céu e o dr. Franklin no Sobrado. Então eu podia fechar os olhos em paz e deixar que o sono me levasse para o reino dos sonhos. O dr. Franklin Verissimo perdeu uma fortuna ajudando financeiramente parentes, amigos e até desconhecidos. Muito contribuíram para esse empobrecimento as extravagâncias de seu filho predileto, o meu pai. 3 D. Adriana e o dr. Franklin tiveram oito filhos: três mulheres e cinco homens. A paixão era a nota tônica dessa prole que, a meu ver, se dividia em dois grupos: os magros-esbeltos e os baixos-gordos. O temperamento dos membros do primeiro grupo podia comparar-se com uma brasa que, coberta de cinzas, dá a impressão de estar apagada, mas ao menor sopro de desafio solta uma súbita labareda. Os membros do segundo grupo, esses viviam em permanente incêndio. Eram os filhos dos senhores do Sobrado personalidades dotadas de considerável riqueza psicológica, e seus defeitos chegavam a ser quase tão grandes quanto suas virtudes. Podia-se esperar sempre dum Verissimo um belo gesto, e eles próprios, imagino, tratavam conscientemente de manter a dourada legenda. Extremados em tudo - principalmente os gordos-baixos -, nas amizades e nas inimizades, nos gostos e nas aversões, tinham, tanto os homens como as mulheres, uma comprovada coragem física e um amor-próprio nunca desmentido. Em matéria de política, nada para eles era mais vergonhoso e desprezível do que votar a favor do governo por medo de represálias ou por interesses pessoais. Tinham a volúpia da oposição, isso num município dominado por um chefão político autoritário e cruel, que não hesitava em mandar espancar e, se necessário, matar seus adversários. Conservo uma apagada mas afetuosa lembrança de tia Regina, a mais jovem das irmãs Verissimo. Ela me aparece na memória baixinha e fornida, com um jeito macio e emplumado de pomba-rola, a mover-se silenciosa pelas salas do Sobrado, os pés gordos e diminutos metidos em chinelas negras bordadas a fio dourado. Em voz alta e com modulações teatrais, costumava ler histórias românticas para Dedé, sua tia solteira, criatura frágil e seca de carnes - venerada por toda a família - e que nos dias de inverno encolhia-se sob o seu xale xadrez, mascando fumo furtivamente. Durante as passagens mais tristes dos romances, nos olhos de ambas cintilavam lágrimas. Nunca pude compreender por que tia Regina aceitou sem amor a corte que lhe fazia um caixeiro-viajante de origem alemã, homem de bem mas - se não me trai a memória - destituído de atrativos físicos e intelectuais. Mais de uma vez eu os vi ou entrevi noivando na sala de visitas do Sobrado, sentados num sofá, ele tentando agradar a sua bem-amada com palavras, gestos e presentes: ela sentada e silenciosa, a cara fechada, não perdendo oportunidades para manifestar o desagrado que lhe causava a presença do pretendente. Mas casaram-se. A noiva não sorriu no dia da boda. Um ano e pouco mais tarde, morreu de parto. Quando alguém murmurava, suspirando, "Deus é grande!" - o menino que eu era perguntava a si mesmo se Deus seria maior que um tal Mr. Ernest Hammersmith, jovem magro e espigado, que a mim parecia o homem mais alto do Universo. Os ventos do destino haviam soprado para as bandas de Cruz Alta aquele insinuante súdito britânico de vinte e pouquíssimos anos, nascido na Nova Zelândia. Minha tia Adélia era então a única das meninas do dr. Franklin que estava ainda solteira. Era uma mulher corajosa, dotada duma fibra de pioneira. Na primeira década deste século, e num burgo conservador e preconceituoso como Cruz Alta, teve um dia a coragem de sair à rua fumando um charuto. Pois essa tia "de faca na bota" foi apresentada a Mr. Hammersmith numa quadra de tênis. Uma amiga lhe soprou ao ouvido: "Agarra esse inglês pra ti". Uma semana depois estavam noivos. Duas semanas mais tarde, casados. ("Extravagância de Verissimo", diriam as comadres, "pois onde se viu casar com um estrangeiro que a gente nem conhece a família?") Adélia Verissimo Hammersmith sabia dedilhar na cítara suaves melodias, mas quando necessário era igualmente destra no uso dum revólver ou duma espingarda. Viveu mais de cinqüenta anos com o seu inglês, numa permanente lua-de-mel. Não tiveram filhos. Depois que ele morreu, não suportando a saudade e a solidão, ela se deixou morrer também. Tia Maria Augusta casara-se com um médico natural do Taquari, um certo dr. Catarino Azambuja. Fraco do peito, como se dizia então, havia-se ele estabelecido em Cruz Alta, lugar famoso pelos seus bons ares e águas. Depois que meu avô morreu (não esquecerei jamais o rápido, trêmulo beijo com que, à instância de meu pai, toquei de leve a testa ainda morna do morto), tia Maria Augusta ficou sendo a senhora do Sobrado. Era fisicamente muito parecida com o meu pai. Tinha como ele uma risada franca e um gênio afável. Ledora voraz de romances, essa tia, a quem sempre votei uma afeição especial, era das poucas mulheres - talvez a única - que naquela pequena cidade serrana sabia ler e falar francês. Pouco antes da Primeira Guerra Mundial, os Azambujas passaram uma temporada em Paris e levaram consigo tia Adélia, então ainda solteira. Conta-se que um dia as duas irmãs desciam lado a lado os Champs-Élysées quando um francês se aproximou delas e, o chapéu na mão, um sorriso malicioso nos lábios, fez-lhes uma proposta indecorosa. As meninas Verissimo, sem a menor hesitação, puseram-se a esbordoar com suas sombrinhas fechadas a cabeça do galanteador, que bateu em retirada, avenida em fora. 4 Recordemos os machos da família. Tenho uma vaga lembrança de tio Columbano, dono dum nome que provocava em mim misteriosas ressonâncias. Alto, de olhos expressivos, tinha bigodes castanhos com reflexos de cobre, grossos e longos como os dos oficiais ingleses que mais tarde eu viria a conhecer nas páginas de Rudyard Kipling. Homem de poucas palavras, escolhera uma profissão que sempre me pareceu estranha para o filho dum estancieiro. Era ourives. Eventualmente complicou sua vida. (Mulheres? Jogo? Não sei ao certo.) Um dia tentou o suicídio. Socorrido a tempo, sobreviveu, porém jamais tornou a levantar-se da cama, onde morreu antes dos quarenta anos. Meus tios Antônio e Fabrício formaram-se em odontologia. De todos os filhos do velho Franklin, Antônio era o que mais se parecia fisicamente com o pai: quase a mesma estatura, uma testa alta e arredondada, coroando um rosto fino e tostado, cujas feições, recordadas deste meu ângulo no tempo, me fazem pensar nas de Jawaharlal Nehru. Parecia de ordinário calmo, era parco de gestos e palavras, mas, como todos os irmãos Verissimos, quando provocado "virava bicho". Tomou parte na Revolução de 1923 - do lado dos revolucionários, é claro - e sua fé de ofício foi das mais brilhantes. Fez algumas incursões ocasionais pela literatura: lembro-me de ter lido um soneto de sua autoria intitulado "Lenço encarnado", no qual ele exaltava o símbolo de seu partido. De todos os meus tios paternos, Fabrício foi aquele com quem tive maior convívio e intimidade. Era, quando moço, uma figura romântica, esbelta e elegante, uma mecha de cabelo a cair-lhe repetidamente sobre os olhos - e o ar nonchalant com que ele a espaços erguia a mão para repô-la no lugar, como que se tornou uma espécie de "gesto registrado" de sua personalidade. Falava macio, com ares paternais. Sentia-se que tinha um interesse afetuoso pelas pessoas. Seu rosto era uma réplica masculina das feições maternas. Depois duma série de aventuras amorosas muito próprias dos vinte anos - e que punham tias e irmãs em permanente inquietação - casou-se. Teve apenas um filho, a quem deu o nome do avô. O rapaz formou-se em medicina e se tornou um grande médico.