Trecho do livro AUTOENGANO

1. A NATUREZA E O VALOR DO AUTO-ENGANO 1. A ARTE DO ENGANO NO MUNDO NATURAL: PRINCÍPIOS A natureza submete tudo o que vive ao jugo de duas exigências fatais: manter-se vivo e reproduzir a vida. Nada escapa. Do protozoário unicelular ao autodesignado Homo sapiens, a preservação do indivíduo e a perpetuação da espécie constituem o mínimo denominador comum da subsistência biológica. Por que é assim, ninguém sabe. O que parece claro é que o risco de extinção é comum a todas as espécies e nem todos os seres vivos têm a mesma facilidade em satisfazer os imperativos de sobreviver e procriar. As condições ambientais mudam ao sabor de forças aleatórias e os poderes de um organismo nem sempre correspondem às demandas definidas por suas necessidades vitais. A natureza pode ser pródiga, mas não faz concessões. Falar em "guerra" seria exagero - cataclismos esporádicos à parte, há pelo menos tanta criação e exuberância quanto destruição e ruína no fluxo natural da vida pelo planeta. O que se observa, contudo, é que o processo evolutivo é marcado pela existência de forte competição e conflito na disputa por recursos escassos. Alguns ambientes, é verdade, são mais exigentes que outros. Mas, se eles forem generosamente bem-dotados para a preservação e reprodução da vida, a própria proliferação de seres vivos resultante desse fato auspicioso se encarregará de alterar o ambiente e apertar o cerco sobre cada um. Quando o ambiente se torna mais rigoroso, a peneira da seleção contrai: a nota de corte aumenta. O desafio de sobreviver e procriar com sucesso na natureza é um jogo de astúcia e agilidade, sorte e força bruta - um jogo no qual nem todos os chamados logram se fazer escolher. Até onde pode chegar um ser vivo na busca de seus imperativos biológicos? A pergunta soa pueril quando nos debruçamos sobre o mundo natural. A natureza, ao que tudo indica, é cega, perseverante e desprovida de escrúpulos. Um organismo simplesmente fará tudo o que estiver ao seu alcance para saciar suas necessidades prementes. Ele agirá impelido pela intensidade de suas carências, de um lado, e limitado pelo seu leque de comportamentos e pelas ameaças e obstáculos com que se depara, de outro. Mas se os fins perseguidos por todos os seres vivos são essencialmente uniformes, os meios dos quais dispõem para persegui-los são os mais diversificados. O repertório é fabuloso e inclui peças de espantosa sagacidade. A arte do engano - o uso pelo organismo de traços morfológicos e de padrões de comportamento capazes de iludir e driblar os sistemas de ataque e defesa de outros seres vivos - é parte expressiva do arsenal de sobrevivência e reprodução no mundo natural. Há enganos para todos os gostos. Do mais simples ao mais complexo organismo natural, o ilusionismo defensivo e ofensivo permeia toda a cadeia do ser. A arte do engano, como veremos a seguir, não requer premeditação consciente ou intencionalidade por parte de quem a pratica. Ela aparece não só nas relações entre os membros de diferentes espécies (entre-espécies) como também, em diversos casos, nas interações dentro de uma mesma espécie (intra-espécie). Os primeiros indícios do que vem pela frente manifestam-se já na esfera da vida molecular. O funcionamento do sistema imunológico dos animais baseia-se na operação automática de mecanismos que protegem o organismo contra a invasão de substâncias nocivas - microrganismos patogênicos como bactérias, vírus e protozoários. A missão do sistema imunológico é dupla: detectar a presença do invasor e despachar a artilharia adequada de anticorpos para eliminá-lo. A identificação do invasor patogênico é feita pelo reconhecimento de diferenças relevantes na composição bioquímica das células que pertencem ao organismo (e que portanto devem ser preservadas), de um lado, e das substâncias nocivas que não pertencem a ele (e por isso precisam ser destruídas), de outro. Nem sempre, contudo, a coisa funciona. Se a identificação é falha, duas coisas podem acontecer: o invasor penetra à vontade e faz a festa nas entranhas do anfitrião ou, como acontece nas doenças auto-imunes, uma parte das células boas do organismo é erroneamente destruída pela pontaria desastrada do batalhão defensivo. A guerrilha intestina opondo invasores patogênicos e o sistema imunológico é um campo repleto de práticas de camuflagem, despiste e desinformação. Diversas bactérias conseguem burlar o mecanismo de detecção imunológica dos mamíferos graças à presença de uma camada química superficial que as reveste e que tem a propriedade de torná-las aparentemente idênticas às células normais do organismo. Alguns vírus, como o da pólio, certos tipos de gripe e talvez o HIV, acionam as defesas do organismo, mas entregam somente moléculas menores em sacrifício, servindo-se de táticas de camuflagem química para evitar o fogo hostil dos anticorpos sobre os alvos moleculares cruciais. O tripanossomo africano - um protozoário parasita responsável pela doença do sono - vai mais longe. Ao penetrar no aparelho circulatório humano, ele exibe uma proteína-isca que dispara os alarmes do sistema imunológico e ativa rápida e vigorosa reação. O problema é que, quando a tropa de choque dos anticorpos está pronta para entrar em campo e massacrar o invasor, o tripanossomo já trocou de armadura e exibe outra variante daquela mesma proteína, neutralizando assim a primeira linha de defesa e provocando a convocação de um novo batalhão de anticorpos. No momento em que nova conflagração é iminente, entretanto, ela é suspensa por outra alteração na superfície química do invasor. Desse modo, proteínas-isca e variações protéicas de superfície vão se sucedendo - o tripanossomo carrega genes para mais de mil manobras diversionistas análogas -, até que, finalmente, a infecção torna-se crônica e o organismo anfitrião sucumbe (não é para menos!) e cai em profunda letargia. Campo fértil para a propagação da flora do engano - não obstante a sua aparência inocente - é o reino vegetal. Algumas plantas, como por exemplo a erva-de-vênus (Dionaea muscipula), ostentam uma pseudoflor que funciona como emboscada para atrair, prender e tragar insetos. Apesar de perfeitamente ociosa do ponto de vista da reprodução da erva, a pseudoflor é preciosa quando o que está em jogo é a próxima refeição. Diversas plantas, por sua vez, mimetizam o aspecto e o odor de fezes secas para atrair moscas e besouros em busca de alimento e sítio adequado para depositar seus ovos. Ao se darem conta do embuste, os insetos reiniciam a busca e inadvertidamente polinizam as impostoras vizinhas. A camuflagem defensiva é um ardil típico de vegetais que povoam o ambiente rigoroso das regiões semi-áridas. Como sua única chance de escapar com vida do olhar famélico dos herbívoros locais é não dar na vista, muitas espécies de planta do agreste acabam adquirindo aspecto e coloração evasiva, ou seja, semelhante ao de substâncias indigestas como arbustos secos, galhos mortos, grama seca e pedregulhos. À delicada e numerosa família das orquídeas - existem cerca de 15 mil espécies distintas classificadas - está reservado um lugar de honra na flora do engano vegetal. As orquídeas reproduzem-se por meio de alogamia: o processo de fecundação requer que o pólen de uma flor se misture ao estigma de outra. Como vencer a distância? A solução é recorrer ao fascínio do sexo. Diferentes tipos de orquídea especializaram-se em atrair diferentes tipos de insetos, seduzindo-os com estímulos sexuais que evocam o aspecto, a coloração e o odor das respectivas fêmeas. Acontece que incitar o inseto a tão-somente acercar-se da flor, atraído pela promessa de sexo, não basta. Para que a polinização seja bem-sucedida ele precisa se animar a montar na flor, senti-la de perto e partir para uma pseudocópula com ela. Só assim os sacos de pólen se fixarão em seu corpo e serão efetivamente carregados e misturados ao órgão sexual de outra orquídea. O que é espantoso, contudo, é o grau de requinte e sofisticação a que certas orquídeas chegaram na simulação dos apelos de determinadas fêmeas de inseto. Para as abelhas do gênero Andrena, por exemplo, o charme e o encanto das flores da Ophrys litea superam os atrativos da fêmea real. Diante da opção concreta entre uma e outra, a maioria dos machos revela que prefere embarcar no sexo ilusório e radiante da pseudocópula. A cópia excede o original. Propaganda enganosa? [...]