Trecho do livro CARMEN

[...] Duzentos brasileiros residentes em Boston foram receber Carmen na estação e, quando ela desceu do trem, fizeram a fuzarca que se espera de duzentos brasileiros carentes e longe de casa. Muitos deles nunca tinham visto ou ouvido Carmen, mas sabiam dela por seus parentes no Brasil, e o que lhes fora dito justificava aquele Carnaval em maio na severa Boston. Eles a seguiram em caravana até o hotel Ritz-Carlton, onde a companhia ficou hospedada e Carmen deu uma coletiva para a imprensa. Um dos repórteres, Paul Harrison, teve uma amostra do que aconteceria no palco em poucos dias: os olhos, as mãos e o sorriso de Carmen, compensando em expressividade o seu liliputiano vocabulário em inglês. À inevitável pergunta sobre se era casada ou solteira, Carmen respondeu inventando ali mesmo um "noivo" deixado no Brasil e cujo nome ela não revelou - mas que só podia ser Carlos Alberto da Rocha Faria, embora o coitado não soubesse disso. E ainda pediu a cumplicidade de seu amigo Cesar Ladeira, que se divertia assistindo à entrevista: "É ou não é, Cesar?" Cesar Ladeira tomara um navio no Rio com antecedência suficiente para pegar a estréia de Carmen em Boston. Chegara a tempo, inclusive, de ver a marquise e os cartazes na porta do Shubert Theatre anunciando, acima do título, Bobby Clark, Luella Gear e Abbott & Costello em Streets of Paris e, logo abaixo, Jean Sablon, sem nenhuma referência à brasileira. Para quem vinha em missão oficial - cobrir o inevitável sucesso de Carmen na Broadway, para a Rádio Mayrink Veiga e para vários jornais e revistas -, o começo não parecia muito auspicioso. E foi com o coração pesado que ele tomou o seu lugar na estréia de Streets of Paris em Boston, na noite de 29 de maio. Sua apreensão durou exatamente uma hora -tempo que levava para Carmen entrar em cena. Aos sessenta minutos cravados do primeiro ato, um cantor mexicano atacou uma rumba (!), acompanhado pela orquestra e pelas dezenas de "girls" - Cesar explicaria depois que, segundo o diretor Edward Dowling, a rumba era para "marcar o contraste com o ritmo brasileiro". Ao fundo, um letreiro começou a piscar anunciando o nome de um cabaré: Páteo Miranda. Finda a rumba, todo o elenco no palco gritou, como se a convocasse: "Miranda! Miranda! Miranda!" Ouviu-se o ritmo do samba. Um lance de cortina, e os seis rapazes do Bando da Lua já apareceram tocando, como um batalhão de choque. Carmen, de baiana, surgiu entre eles, esbanjando malícia, sensualidade e graça em "O que é que a baiana tem?". Os microfones camuflados no chão permitiam que ela cantasse, dançasse e evoluísse pelo palco com toda a liberdade - e Aloysio diria depois que, aquela noite, ali estava uma Carmen que ele próprio nunca tinha visto: "Os olhos não brilhavam: faiscavam. Seus movimentos pareciam ter sido preparados por uma Eleonora Duse." Carmen emendou com a suavidade bem-humorada de "Touradas em Madri", o quebra-língua de "Bambu, bambu", e, já com a platéia nas mãos, preparou-se para encerrar com "South American way", que continha as únicas palavras em inglês em todo o número. Até aquele instante, só pronunciara sons que, para quem não fosse brasileiro, poderiam muito bem ser confundidos com neo-aramaico ou sânscrito arcaico. Mas, para os atarantados bostonianos, não era a música que importava e, menos ainda, as palavras. Era toda a presença de Carmen, com as duas cestinhas de frutas na cabeça, a festa de balangandãs sobre o peito, a flamejante saia de losangos e as inacreditáveis plataformas - tudo em movimento, formando cores e padrões que ninguém ali vira num palco, ao ritmo infeccioso daqueles violões e tambores. Durante seis minutos, o espetáculo fora dela. Quando Carmen encerrou e se curvou, ainda ao som do Bando da Lua, a platéia de Boston começou a aplaudir e a gritar seu nome. Não queriam deixá-la ir embora. Nas coxias, Abbott & Costello estavam prontos para entrar e fazer o grande número de encerramento do primeiro ato. Mas, enquanto os espectadores continuassem com aquela algazarra, teriam de esperar. O show parara - a glória suprema do teatro. Carmen e o Bando precisaram "estender" a duração de "South American way" - para irritação de Abbott & Costello -, e depois voltar para mais aplausos. Quando Carmen finalmente saiu, a dupla americana entrou quase sob vaias, e o espetáculo caiu a uma temperatura polar. Em 1939, Bud Abbott e Lou Costello estavam longe de ser garotos. Abbott, que fazia o straight-man brusco e mal-humorado, já tinha 44 anos. Costello, o cômico gordinho e genial, era mais novo, mas nem tanto: 33 anos. Os dois já contavam décadas de estrada no vaudeville em carreiras separadas, e só sentiram que tinham um futuro quando se conheceram e formaram a dupla em 1936. Mesmo assim, Costello era complicado: bebia para valer, perdia muito dinheiro no jogo e, de vez em quando, seu coração lhe mandava uma carta de demissão. Streets of Paris era a primeira grande chance da dupla num espetáculo destinado à Broadway - a oportunidade pela qual tanto esperavam. E, então, a poucos minutos de se consagrarem, estavam sendo caroneados por uma cantora sul-americana que acabara de chegar aos Estados Unidos falando um inglês atroz e que ninguém conhecia. Foi isso que os críticos perceberam na noite da estréia e escreveram no dia seguinte: "Os brasileiros é que deveriam fechar o ato. E precisam aparecer mais", disse um deles. Shubert, que estava no teatro, também percebeu. Impiedoso, mandou Dowling inverter as posições de Carmen e Abbott & Costello no fim do primeiro ato. Mas não estava sendo impiedoso - era apenas um homem de teatro. Afinal, Carmen tinha parado o show, e não é todo dia que isso acontece. A partir da segunda noite, o privilégio de fechar o ato caberia a ela. Sem ter de sair às pressas para a entrada dos comediantes, Carmen e o Bando da Lua puderam esticar o número e ir ficando enquanto a platéia aplaudisse. "Carmen está promovendo uma indigestão de samba na turma embasbacada de Boston", escreveu Cesar Ladeira no Correio da Noite. Inúmeros artistas americanos trabalharam por dez anos ou mais para conquistar a glória de fechar um ato. A maioria morreu sem conseguir. Carmen só precisou de seis minutos para isso. Nada mau para quem chegara aos Estados Unidos havia apenas doze dias. Numa tarde de turfe, o Hipódromo de Boston batizou um de seus páreos em homenagem a Carmen. De luvinhas brancas, ela acenou da tribuna de honra e foi muito aplaudida; desceu para cumprimentar o jóquei vencedor e foi aplaudida de novo. Shubert pensava ficar com Streets of Paris somente uma semana em Boston, até o dia 4 de junho, para apertar os últimos parafusos e estrear na Broadway no dia 12. Mas, quando os jornalistas de Nova York começaram a chegar à cidade expressamente para ver Carmen, percebeu que uma semana a mais em Boston, até o dia 11, aumentaria a expectativa em Nova York, geraria muito espaço grátis na imprensa e faria a peça chegar rutilante ao Broadhurst Theatre no dia 19. Shubert concluiu que estava certo quando o Rainbow Room, um cabaré de Nova York cobiçado por muitos artistas, preferiu não esperar pela chegada de Streets of Paris à Broadway. Seus emissários foram a Boston oferecer-lhe quinhentos dólares por semana para Carmen e o Bando da Lua se apresentarem no seu palco, no septuagésimo andar do edifício da RCA Victor. Pois Shubert recusou - achou pouco. Para que negociar Carmen às pressas, se ele já sabia que tinha em mãos um bilhete premiado? Depois de duas semanas parando o show todas as noites, e tendo que bisar "South American way", Carmen e a companhia voltaram para Nova York no dia 12, segunda-feira. Por mais alguns dias - e pela última vez na vida -, ela ainda pôde passear pela Quinta Avenida como uma terráquea anônima. Já era uma pequena celebridade, mas restrita ao meio da imprensa e das pessoas que se interessavam por teatro. Isso ainda não era suficiente para que a reconhecessem nas ruas. Os que se viravam para olhá-la o faziam pelo exotismo das roupas e dos sapatos ou pela beleza de sua figurinha. Mas, a partir das dez da noite da segunda-feira seguinte, 19 de junho de 1939, todos os olhares na sua direção saberiam para quem estavam indo: Carmen Miranda, Streets of Paris, Broadhurst Theatre, Nova York, NY. Dez da noite - cerca de setenta minutos do primeiro ato do espetáculo de estréia. Foi quando Carmen tomou de assalto o palco de Streets of Paris no Broadhurst, tal como fizera em Boston. Mas, aqui, já com uma palpitante expectativa criada pela imprensa e com a presença de todos os críticos de jornais e revistas - de volta às pressas de seus chalés nas montanhas para assistir a uma revista de Shubert que, em condições normais, seria caridosamente ignorada. Era uma estréia de gala, com toilettes de noite e smokings, e teatro lotado apesar da chuva daquela noite. Dois dias antes, Cesar Ladeira já mandara dizer pelo Correio da Noite: "Não há mais lugares para a primeira noite. Trezentos críticos [sic] de jornais e revistas americanos comparecerão à estréia de Streets of Paris. Segunda-feira será, portanto, a noite que decidirá definitivamente o sucesso de Carmen nos Estados Unidos. A nossa 'pequena notável' possui todos os atributos para vencer. E vencerá - é a minha opinião". A própria Carmen não estava tão segura. Aloysio de Oliveira também sabia que a prova de fogo estava na Broadway, mas tentava tapeá-la: "Olha, Carmen. Não vá ficar nervosa. Você já passou por Boston. Nova York é a mesma sopa." O Broadhurst, na Rua 44 Oeste, entre a Sétima e a Oitava Avenida, era uma das jóias dos Shubert. Quatro anos antes, um ator desconhecido se consagrara naquele palco: Humphrey Bogart, no papel do assassino Duke Mantee em A floresta petrificada (The petrified forest), de Robert Sherwood, com Leslie Howard. E nem tivera tempo de bisar o sucesso em outra peça - fora direto para Hollywood, na pele do próprio Mantee. Carmen entrou com "Bambu, bambu" à máxima velocidade. A platéia recebeu-a em silêncio - atônita - e levou trinta segundos para reagir. Foi o tempo que algumas pessoas precisaram para começar a se mexer na cadeira, picadas pelo embalo incompreensível, mas irresistível das palavras: Olha o bambo de bambu, bambu Olha o bambo de bambu, bambu-le-lê E olha o bambo de bambu, bambu-la-lá Eu quero ver dizer três vezes bambu-lê, bambu-la-lá. Ali, as paredes do Broadhurst esqueceram-se de que já tinham ecoado os textos de Ibsen, Shaw e O'Neill, e trataram de se adaptar aos novos tempos. Carmen "cantava" com as mãos, os olhos, os quadris, os pés - "O que é que a baiana tem?", "Touradas em Madri" e "South American way", pela nova ordem - e todo um repertório de meneios, dengos e chamegos que dispensavam tradução. Ninguém entendia uma sílaba do que ela dizia, exceto o verso "Souse American way", que arrancou as infalíveis gargalhadas. E nem era preciso. Carmen estava falando numa língua que a platéia de Nova York, habituada às grandes estréias, estava farta de entender: a do talento, talvez do gênio. A Broadway já operara aquela química muitas vezes - entre duas cortinas, transformar uma estreante numa deusa. Quase dez minutos depois, o número de Carmen e o primeiro ato de Streets of Paris terminaram em apoteose e consagração. Entre os drinques, cigarros e cafés do intervalo, e já vazando para as ruas em volta do teatro, só um assunto interessava: Carmen Miranda. Quando chegou ao camarim, Carmen já o encontrou abarrotado de flores. Os telegramas vinham do Rio e de Nova York - um deles, do compositor Jimmy McHugh, dizendo: "Potatoes! Potatoes! Potatoes!". Cesar Ladeira perguntou a Carmen o que aquilo significava. "É que, nos ensaios de 'South American way', quando eu gostava de alguma coisa, dizia ao Jimmy que estava 'na batata'. Ele quis saber o que queria dizer e eu expliquei: 'It's potatoes! '. Parece que ele também gostou!" Ao fim do espetáculo, ninguém queria sair do teatro - o pessoal de Shubert, seus pequenos investidores, os amigos do elenco. E ninguém queria ir para casa. Em meio ao violento engarrafamento na Rua 44 provocado pela peça, o elenco espalhou-se pelos cafés nas imediações do teatro, para esperar os matutinos que já trariam as primeiras críticas. As xícaras e os copos iam sendo tomados sob grande nervosismo, enquanto Aloysio, de quinze em quinze minutos, ia às bancas do quarteirão para ver se os jornais tinham chegado. Numa dessas, voltou carregado. Leu as críticas para eles. A maioria arrasou Streets of Paris, classificando-a de medíocre para baixo, com duas brilhantes ressalvas: Abbott & Costello, que, apesar de tudo, mereceram elogios - e a rendição incondicional a Carmen e ao Bando da Lua. "Uma nova e grande estrela nasceu na Broadway. Carmen Miranda e o Bando da Lua são as únicas coisas que conseguem tirar o teatro do marasmo em que se encontra devido à Feira Mundial", escreveu Walter Winchell no Daily Mirror. Não era qualquer um dizendo isso. Era Winchell - e não só no Daily Mirror, mas nos 2 mil jornais que reproduziam sua coluna, e em seu programa diário na cadeia de rádio ABC, que atingia 55 milhões de ouvintes. De sua mesa no Stork Club, na Rua 53 Leste, onde os poderosos iam beijar-lhe a mão, Winchell influía em Nova York, Washington e Hollywood. Roosevelt gostava dele, mas isso fazia pouca diferença. O importante é que ele gostava de Roosevelt. E, como ele gostara de Carmen, ela estava feita. O apreço de Winchell por Carmen era ainda mais marcante porque ele e Shubert eram brigados. Shubert detestava Winchell e o barrava de todas as suas estréias. Mas Winchell, quando se interessava por um espetáculo, ia a um try-out em alguma cidade. Fizera isso com Streets of Paris em Boston e se deixara hipnotizar por Carmen. Os outros jornalistas não esperaram por Winchell para dar sua opinião. Todos já tinham a sua - que, por coincidência, era a mesma. John Anderson, do New York Journal-American: "Miranda parou o show, parou o trânsito na Rua 44 e provavelmente foi registrada no sismógrafo Fordham. Essa máquina, embora habituada a terremotos, está tremendo até agora. [...] Miranda é o maior evento em nossas relações com a América do Sul desde o canal do Panamá [sic]". Wilella Waldorf, do New York Post: "Pode-se ver o branco de seus olhos desde a 25a.- fila... e o efeito é devastador". Clifford Adams, de uma agência de notícias: "Ela é brasileira, e estaremos sempre em dívida para com o Brasil por nos tê-la mandado. Não há palavras em inglês ou em qualquer língua para fazer justiça a essa artista. Ela é a personificação de tudo". O veterano Brooks Atkinson, do New York Times: "O calor que ela irradia vai sobrecarregar as fábricas de ar-condicionado neste verão". E, mal as luzes do teatro tinham se apagado, os jornalistas americanos, loucos por aliterações, começaram a procurar slogans para defini-la. Surgiram "The siren from South America" (a sereia da América do Sul), "The Latin lallapalooza" (a labareda latina), "The pearl of the pampas" (a pérola dos pampas) e outras asneiras. Earl Wilson, do Daily News, teve o melhor achado e o que pegou: "The Brazilian bombshell" - a granada brasileira. Dias depois, saíram as revistas, e a adoração por Carmen continuou ilimitada. Wolcott Gibbs, em The New Yorker: "Ela é uma 'Flammenwerfer' [lança-chamas] brasileira, que canta em sua língua natal e ondula as mãos de um jeito que provocou em meus colegas emoções difíceis de descrever com discrição". Henry F. Pringle, na Collier: "Carmen poderia ter sido descoberta há mais tempo, se não fosse o bárbaro provincianismo dos Estados Unidos". Um articulista anônimo da Look: "[Carmen] cantou coisas que ninguém entendeu, mexeu os braços e o corpo, revirou os olhos e - zás! - conquistou a Broadway". Conquistou mesmo - não havia outra definição. Na noite de estréia, antes de o pano subir, o nome de Carmen fora promovido ao quarto lugar na marquise do Broadhurst, atrás de Bobby Clark, Luella Gear e Abbott & Costello, e assim ficou durante a semana. Na segunda semana, pulou para o primeiro lugar. No primeiro mês, a revista Playbill, preparada com muita antecedência, ignorou o seu nome ao tratar da peça. No mês seguinte, sua foto foi para a capa. Outro indício foram os ingressos: na bilheteria do Broadhurst, saíam a 4,40 e 6,60 dólares. Mas, poucos dias depois da estréia, certos lugares só podiam ser encontrados nas mãos dos cambistas - a cinqüenta dólares por cabeça. E nem por isso o teatro deixava de lotar. Look e Collier já tinham tocado no assunto, mas foi a revista Click, com Carmen na capa, que sintetizou tudo ao dizer, "Carmen Miranda - A garota que está salvando a Broadway da Feira Mundial". Referia-se aos excedentes de Streets of Paris - os que voltavam da porta do Broadhurst todos os dias e, para não perder a noite, iam procurar as outras atrações da vizinhança. Não que a Broadway estivesse em falta de grandes peças. Concorrendo com Streets of Paris, em todas as semanas que a revista ficou em cartaz, podia-se escolher entre Abe Lincoln in Illinois, de Robert Sherwood, com Raymond Massey; The little foxes, de Lillian Hellman, com Tallulah Bankhead; No time for comedy, de S. N. Behrman, com Katharine Cornell; e The Philadelphia story, de Philip Barry, com Katharine Hepburn (escrito especialmente para ela), Joseph Cotten e Van Heflin. Todas essas peças ficariam como clássicos do teatro americano - mas, em junho de 1939, estavam às moscas na Broadway, porque o grosso da manada preferia ir à Feira Mundial para apreciar a mulher-gorila ou saltar do pára-quedas a 75 metros de altura. Foi Streets of Paris que levou o público de volta para elas.