Trecho do livro CONTOS DE PEDRO

O DENTE DE OURO Alguns achavam que ele era bom, mas quase ninguém se arriscava a dizer. Para outros, ele não passava de um imbecil, e esses não perdiam uma chance de falar do assunto. Outros, ainda, balançavam a cabeça e pensavam: como alguém pode ser tão ingênuo? O curioso é que ninguém tivesse observado melhor para entender que tipo de monstro era ele - uma pessoa, pelo visto, sem nenhuma gota de crueldade no sangue. Pois todos estavam tão acostumados a desconfiar de todos e a cobiçar o que era dos outros - todos viviam tão habituados a exercer com rigor sua fração cotidiana de poder e a desejar expandi-la um pouco mais a cada oportunidade -, a todos parecia tão natural o desejo de sentir-se superiores a alguém, que tudo isso não só era considerado uma virtude como também já fazia parte do seu pensamento e do próprio organismo. Encharcava cada uma de suas células, tinha direito de domicílio em seus sonhos e nenhum deles seria capaz de imaginar a vida de outro modo. Mas aconteceu de Pedro conseguir o seu emprego justamente por falta de virtudes. Tinha aprendido a ler, é verdade. Mas, nele, até isso punha em evidência o quanto estava desarmado. A leitura, no meio da guerra em que foi cair, parecia munição de brinquedo. E era mesmo com uma admiração isenta de todo cálculo que ele via como as sílabas se combinavam em palavras, no papel. Havia uma reverência no prazer que sentia ao notar como essas palavras, uma vez formadas, erguiam conceitos na sua mente - imagens que Pedro podia ver até de olhos fechados. Migrante do interior, ele também sabia reconhecer nessa irrupção o ânimo de uma cobra quando dá o bote. A credulidade com que esse faxineiro e porteiro percorria cada frase na escola noturna só podia vir de uma cegueira: era incapaz de ver o encadeamento das sílabas como um mecanismo. Seu raciocínio parecia imune à suspeita de que as palavras fossem um instrumento. Mas nem mesmo os utensílios mais banais escapavam do seu impulso de ver, no mundo, apenas a boa-fé e a integridade dos propósitos. Pedro confiava tão completamente em uma vassoura quanto nas palavras do síndico do prédio. Sua cautela diante de uma garrafa plástica cheia de água sanitária era da mesma natureza do temor que lhe inspirava o morador mal-encarado do oitavo andar. Pois o mal não estava ausente do seu mundo. Só que se tratava de um perigo franco, uma coisa com que a gente pode contar. Essas ameaças recebiam de Pedro o respeito devido a algo superior e inatingível. Ele emudecia, encolhia-se um pouco, certo de estar diante de alguma espécie de divindade, capaz de esmagá-lo com um dedo ou com uma única palavra mais forte. Quando esse deus, na forma de um aspirador de pó ou de uma moradora de voz estridente, enfim se aplacava diante das suas desculpas e explicações, Pedro se sentia satisfeito consigo mesmo. Por ter se livrado de um perigo, é verdade. Mas sobretudo por ter sido agradável a um poder tão evidente. Para os moradores, era de fato agradável ver seu poder posto em relevo com tanta clareza. Mas, com o tempo, e cada vez mais, prevalecia uma irritação por saberem que nunca encontrariam em Pedro a mínima contestação ou resistência. Ser submisso não bastava. Exigiam-se repetidas derrotas cotidianas. Só que a última coisa que passava pela cabeça de Pedro era vencer alguém. Ao menor sinal de confronto, tratava de se adaptar, de ocupar a posição que cada circunstância parecia prever para ele. Ficava contente de ver como a vida, desse modo, recuperava o equilíbrio rompido. Às vezes, chegava a intuir que a vida crescia, se alastrava, de desequilíbrio em desequilíbrio. A desconfiança de que a vida existia exatamente para isso e não tinha mesmo outra natureza ou apetite, sempre o apavorava. Era um dedo gelado que, vindo não se sabia de onde, tocava sua testa por um segundo. Pedro franzia o rosto e tratava de não deixar que a impressão tomasse forma diante dos olhos. Faxina e portaria serviam como aliados para desfazer as crises e repor as idéias no eixo. Contratado como faxineiro num prédio residencial de dez andares, cabia a ele também cobrir as folgas do porteiro mais antigo. Trocava o uniforme da faxina pelo da portaria e deixava que o serviço tomasse posse dos seus movimentos. Como suas funções estavam bem determinadas e como o síndico as explicava com clareza, Pedro se tranqüilizou e concluiu que nada dependia de uma decisão sua, nem de algum talento próprio. Por isso, não admira que parecesse lerdo ou até abobalhado. O que acontecia era que, em vez de buscar na própria cabeça o que devia fazer, Pedro se punha atento à sua volta, à espera de que suas funções no prédio ou algum sinal nas circunstâncias do seu trabalho indicassem os passos que devia seguir. Um reflexo na porta de vidro, uma buzina na rua, as antenas de uma barata na fenda de um ralo: o mundo era encenação pura. Cada fato pronunciava uma senha destinada a abrir a porta para um outro fato. Místico das coisas mais rasteiras, Pedro também não descuidava do além e do céu. Seu fascínio por religião tinha começado no vilarejo natal, a dois mil e quinhentos quilômetros da cidade. Ficava em uma região pouco povoada, onde plantações acanhadas e rebanhos minúsculos mal começavam a prosperar quando a estiagem vinha, mais uma vez, assolar a terra, queimar a vegetação, rachar o leito dos riachos secos. A igreja, malcuidada e construída no tempo dos escravos, só recebia a visita do padre uma vez por mês. Pedro, quando ainda garoto, aguardava ansioso essa data. Muitas vezes, ao dormir, seus sonhos rebrilhavam na luz das velas acesas, ressoavam com as rezas dos batizados e com as cantorias das missas para os mortos. A esteira onde dormia, sobre o chão de terra da casa, parecia subir e erguê-lo no ar, junto com a taça prateada que o sacerdote levantava nas mãos. Nos sonhos, tudo se misturava num esplendor confuso, infiltrado pelas poucas palavras que Pedro conseguia ouvir e entender, na rouquidão estrangeira do padre. A igreja ficava abandonada nos intervalos. Ninguém tomava a iniciativa de consertar a porta de madeira, quebrada havia anos. Por ali entravam cabras famintas, que roíam a borda dos panos e os tocos das velas. Chegavam a lamber o verniz dos rodapés e a tinta das paredes, até onde os pescoços esticados alcançavam. No vaivém de lixa das línguas, a fome raspava até o reboco. Quando calhava de passar diante da igreja e ver as cabras lá dentro, Pedro entrava e as enxotava, com gritos de menino. Havia algo de errado, e até de perigoso, na presença delas. Mas Pedro tinha de reconhecer que o prédio, esquecido e sem serventia durante semanas, parecia um pardieiro como qualquer outro. Andorinhas entravam e saíam pelos furos no telhado. Lagartos corriam pelas paredes e, sacudindo o rabo, se enfiavam nas rachaduras. Num instante a presença de Pedro ali sozinho começava a produzir a mesma sensação de erro e de perigo que antes vinha das cabras. E ele se via compelido a sair depressa, atrás delas. Gostaria que o padre viesse sempre, gostaria que o padre morasse ali, queria que todo dia houvesse alguma cerimônia na igreja. Pedro preenchia as quatro semanas de intervalo com a ajuda de um rádio, que às vezes conseguia emprestado. O estojo de plástico estava partido, preso com um elástico em toda a volta, e tinha um pedaço de arame no lugar da antena. Ainda assim, captava chiados e roncos, de onde emergia, aos trancos, a voz de um pastor. Satã, coração, milagre, amor, sangue. Gritos de salvação e de inferno. De adultério e câncer. A violência da estática trepidava entre seus dedos - uma ênfase a mais para o horror encravado no sublime. Além do que conseguia captar no rádio, Pedro dava muita atenção às lendas sobre cobras venenosas - crenças oriundas do tempo em que os últimos nativos da região foram assimilados ou expulsos. As serpentes personificavam forças que não se restringiam à natureza. Seus ciclos de vida e as mudas de pele tinham relação com o brotar das sementes, com o teor do leite das vacas, com o afluxo e o sumiço da água nos riachos e nos poços. Além disso, de algum modo as serpentes podiam, também, avisar que os mortos se sentiam esquecidos. Nesse caso, os garotos capturavam ratazanas e as amarravam à beira de um poço de água cor de ferrugem freqüentado por cobras para que, à noite, elas se servissem. Mas cobras, padre e pastores só ocupavam o pensamento de Pedro quando o cansaço do corpo lhe dava uma folga. O pai, desde manhã cedo, o punha para capinar, revirar a terra e alimentar os porcos. Pedro, deitado na esteira de palha, acordava com o cutucão do pé descalço do pai nas costelas. O dedão calcava fundo, entre os ossos, enquanto um grunhido, no alto, o puxava do sono pelo nome. Daí em diante era ir e vir com enxadas e foices quase da mesma altura que ele. O peso do cabo machucava o ombro, por baixo dos rasgões da camisa, e fazia bolhas nas palmas das mãos. Pedro tinha de rolar pedregulhos semi-enterrados no campo, onde o pai teimava em plantar e replantar. Tinha de arrancar da terra tocos e raízes de árvores incendiadas. A poeira e a fuligem das queimadas encardiam sua pele, voavam para dentro do nariz, deixavam a língua preta. A terra, em todas as direções, se esticava em uma chapa ensolarada. Quase não havia sombra. Quando parava um instante e, sem querer, olhava para cima, Pedro via as nuvens, pequenas e afastadas umas das outras, recuarem para altitudes incalculáveis e encolherem-se, na sua brancura cegante. Quanto mais olhasse, mais o céu se desenrolava para trás, para o alto, onde o grão negro de um abutre revelava distâncias que um minuto antes não se imaginava existirem. O grito do pai logo soava, de longe, nessas horas, para Pedro não interromper o trabalho. Não admira que o que mais deliciou Pedro, quando chegou à cidade, tenha sido a fartura de igrejas e de missas. Descobriu que havia três igrejas num raio de dois quilômetros a partir do prédio onde foi trabalhar. Abertas e ativas todos os dias, com missas em horários diversos e vários padres, Pedro nem sabia qual delas escolher, nas horas de folga. Uma embriaguez o dominava e, entontecido pelo excesso, seguia numa direção, hesitava após um quarteirão e voltava, no rumo de outra igreja. Os alto-falantes permitiam que ouvisse tudo. O sentido ignorado de muitas palavras lhes dava uma autoridade que Pedro, mais tarde, experimentava com cuidado, quando tentava repeti-las sozinho. Em pouco tempo se envolveu em atividades das igrejas e foi encaminhado para uma escola noturna. Quando todos rezavam juntos, em coro, antes da aula, Pedro tinha a sensação de que crescia de repente, feito uma árvore, até ocupar todo o espaço da sala, enquanto via sua voz sumir, sem deixar marcas, na massa das vozes dos colegas, e ouvia as vozes deles se apagarem umas nas outras. Pedro, então, e como em nenhum outro momento, emitia a voz com desembaraço. Chegou a imaginar que ali alguma coisa ia mudar, alguma coisa ia acontecer. Mas logo notou como tomava cuidado para falar o mínimo possível, com medo do efeito do seu sotaque e dos seus erros. Percebeu que, diante dele, todos pareciam esconder alguma coisa. Não podia haver dúvida: existia uma parte do mundo que ele precisava ignorar e que até dependia da sua ignorância. Pedro identificou nisso os sinais já bem conhecidos - a ordem de recuar e ocupar um degrau mais baixo. Acabou dirigindo a admiração para as estátuas, as colunas, os vitrais, as músicas e as pastilhas de cerâmica que formavam desenhos no chão. Agradecido, voltava da igreja com os bolsos cheios de folhetos e santinhos, que colava na parede e atrás da porta do seu cubículo. Morava nos fundos do prédio onde trabalhava, num quarto de três metros por dois. A janela basculante dava para os carros dos moradores, na garagem. Quando ligavam um motor, entrava um sopro de fumaça. O chão de tacos lhe parecia um luxo, um milagre da sorte, assim como o chuveiro elétrico e a privada com descarga, instalados num nicho no canto da garagem, que ele tinha de dividir com o outro porteiro. Conservava sua cela rigorosamente limpa. Sempre deixava a sandália e o sapato no degrau da porta, antes de entrar. As roupas cabiam dobradas numa caixa de papelão, que guardava embaixo da cama. Deitava-se esgotado sobre o colchão, após a faxina nas escadas dos dez andares e nas lixeiras. À beira do sono, as imagens coaguladas no pensamento durante o dia inteiro se dissolviam e se misturavam. Pedro adormecia no meio de um impulso de abraçar-se à solidez do teto, do chão, das paredes e da porta, intoxicado pela gratidão de saber que nem chuva, nem vento, nem ratos chegariam até o seu sono. Na portaria, tinha telefone, interfone, rádio e tevê - instrumentos que no início operava com timidez. Sentia-se antes o alvo do que a fonte desse poder. Mas havia também a porta, e isso era diferente. Levantava-se a todo instante para abrir e fechar a porta de vidro, quando as pessoas saíam ou entravam. Por razões de segurança, nem os moradores podiam ter a chave. Esse ir e vir constante das pessoas, a troca rápida de palavras ou de um aceno, a espera breve se ele não estivesse na portaria, a permanência de Pedro em seu posto, em contraste com o movimento dos demais - tudo sugeria a idéia de uma fronteira importante entre a rua e o prédio, ao mesmo tempo que atribuía a ele uma posição bem determinada naquele mundo. A noção de que dependiam dele, de que sua função ali era essencial e simples, como a de uma dobradiça, começou a ganhar a autoridade das coisas naturais, das coisas que sempre fizeram parte do mundo, e assim unia Pedro às pessoas, ao prédio e também à porta. O movimento na portaria às vezes diminuía e, sentado à escrivaninha, ele tinha a oportunidade de fazer as tarefas da escola noturna ou ler os folhetos que apanhava na igreja. Experimentou escrever no caderno, ao acaso, o que viesse à cabeça, só para treinar. Logo descobriu que as sílabas esticavam intervalos musicais, melodias se abriam de uma vogal para a outra e entendeu que, sem querer, estava compondo canções. Nada era dividido em versos, e as linhas quase sem pontuação corriam febris até a margem da folha. Milagre, coração, Jesus, redenção, pó. Sangue, ressurreição, amor, chaga, espada. Canções religiosas, uma após a outra: Jesus, pó, sangue, virgem, túmulo, peixe, pão. Às vezes, mais de uma no mesmo dia. O porteiro mais velho e o síndico prenderam o riso quando ele apontou para o caderno: - Já fiz quarenta e sete hinos. Ainda mais porque não tocava nenhum instrumento e não sabia nada de música. Um morador, desconfiado da memória musical de Pedro, voltou as páginas do caderno para as canções mais antigas e pediu para ele cantar. Milagre, perdão, morte, Jesus, virgem. Carne, sangue, salvação, céu, chaga, espinho, vinagre. Pedro se surpreendeu com a semelhança da melodia dos hinos, a partir da terceira linha, mais ou menos. E parou de cantarolar. [...]