Trecho do livro FERDYDURKE

1. O SEQÜESTRO Na terça-feira, acordei naquela hora inanimada e indistinta, quando a noite já se acabou, mas o dia ainda não amanheceu por completo. Ao acordar repentinamente, quis pegar um táxi para a estação ferroviária, pois tive a impressão de que estava de partida - e foi somente no minuto seguinte que, com grande pesar, me dei conta de que não havia nenhum trem na estação à minha espera e que a minha hora ainda não soara. Permaneci deitado na penumbra, o corpo tomado por um temor insuportável que me comprimia a alma, e a alma, por sua vez, comprimia meu corpo a ponto de cada uma de suas fibras, por menores que fossem, se contraírem na expectativa de que nada iria acontecer, nada iria mudar, nada de novo sucederia e, mesmo no caso de que alguma coisa acontecesse, esse fato resultaria em nada e mais nada. Era o pavor da não-existência, o terror da extinção, o medo da ilusão - um grito biológico de todas as células do meu corpo diante da desintegração interior, quando tudo se rompe e se transforma em pó. Era o medo da inconveniente insignificância e da mediocridade, o horror da dispersão, o pânico da fragmentação, a apreensão pela violência, tanto a interior quanto a que me ameaçava de fora e que - o que era ainda mais importante - me acompanhava sempre, nunca se afastando de mim, nem um passo sequer, a ponto de eu poder chamá-la de um sentimento íntimo de constante irritação e escárnio, uma inata gozação das desavergonhadas partes do meu corpo e das analógicas partes do meu espírito. Todos esses medos eram fruto de um sonho que me atormentou a noite toda e acabou me despertando. Com um recuo no tempo que deveria ser proibido pelas leis da natureza, me vi como fui aos quinze ou dezesseis anos - voltei à adolescência - e, parado no meio do vento, sobre uma pedra ao lado de um moinho à beira do rio, dizia algo. Ouvi minha voz de outrora, um falsete que mais parecia o cacarejar de um galo, vi um nariz ainda não plenamente desenvolvido num rosto em formação e mãos grandes demais, sentindo a desagradável consistência daquela fase de desenvolvimento, intermediária e passageira. Acordei rindo e tremendo de medo ao mesmo tempo, porque tive a impressão de que, sendo como sou agora, com mais de trinta anos, estava macaqueando o inexperiente garoto que já fui, e que ele, de sua parte, estava macaqueando a mim e que, com direitos iguais, um gozava do outro. Amaldiçoada memória, que nos obriga a conhecer os caminhos que percorremos até chegar ao que somos! Depois, já semidesperto, tive a impressão de que meu corpo não era totalmente homogêneo e que algumas partes ainda eram as de um garoto, que a cabeça zombava da coxa enquanto a coxa ridicularizava a cabeça; que o dedo zombava do coração, o coração zombava do cérebro, o cérebro do nariz, o nariz do olho, às gargalhadas - e que todas essas partes se violentavam mutuamente de forma selvagem, numa abrangedora atmosfera de total pan-zombaria. Mas, quando despertei completamente e comecei a meditar sobre minha vida, o medo não diminuiu nem um iota; pelo contrário, aumentou ainda mais, embora fosse interrompido vez por outra (às vezes para se tornar mais forte) por uma risadinha incapaz de ser contida. No meio do caminho da minha vida, encontrei-me numa selva escura... Mas, o que era ainda pior, a tal selva era v e r d e. Pois, quando desperto, eu continuava tão indefinido e dilacerado como no sonho. Acabara de atravessar o inevitável Rubicão dos trinta anos, cruzara a fronteira. A julgar por meus documentos e minha aparência, eu parecia um adulto e, no entanto, não era - quem era eu, afinal? Um jogador de bridge de trinta anos? Um empregado ocasional e fortuito que executava tarefas triviais e cumpria prazos determinados? Andava por bares e cafés, encontrava-me com pessoas com as quais trocava palavras - às vezes até idéias -, mas minha situação não estava clara e eu mesmo não sabia se era um adulto ou um adolescente. E, assim, no início da segunda metade da minha vida, eu não era nem uma coisa nem outra - era um nada - enquanto outros da mesma idade, já casados e exercendo funções bem definidas, não somente no que dizia respeito à vida em si mas também nas diversas repartições públicas, tratavam-me com a mais justificada desconfiança. Minhas tias - aquelas numerosas semimães alinhavadas à minha pessoa, mas que me amavam de verdade, tentaram por anos me influenciar para que eu me estabilizasse e abraçasse uma profissão, como a de advogado ou a de burocrata. Minha indecisão era-lhes profundamente desagradável e, já que não sabiam quem eu era, não sabiam como conversar comigo - no máximo, murmuravam alguma coisa como: - Józio! Já está mais do que na hora, meu querido! O que os outros vão dizer? Se você não quer ser médico, pelo menos seja um mulherengo ou um especialista em cavalos, mas seja alguma coisa... algo definível... E eu podia ouvi-las sussurrar entre si que eu não estava habilitado, nem socialmente, para enfrentar a vida. Depois, voltavam a murmurar, exaustas do vazio que eu provocava em suas cabeças. Na verdade, tal estado de coisas não podia se prolongar para sempre. Os ponteiros do relógio do tempo são implacáveis e peremptórios. Quando os últimos dentes, os do siso, emergiram das minhas gengivas, foi hora de tomar uma decisão. Meu desenvolvimento estava completo e chegara o momento do inevitável assassinato: o homem adulto tinha que matar o inconsolável rapazola e emergir como uma borboleta, deixando para trás os restos do casulo, que já perdera a utilidade. Agora, eu devia sair voando em meio àquela neblina e caos, elevar-me sobre os pântanos turvos, turbilhões, sussurros, correntezas e juncais e, abandonando o coaxar dos sapos, transferir-me para um mundo de formas claras e cristalizadas, pentear os cabelos, vestir-me adequadamente, entrar para o mundo dos adultos e deliberar com eles. Entrar? Como não! Eu já havia tentado uma vez - e uma risada sacode meu corpo só de lembrar do resultado daquela experiência. Para me tornar apresentável, cabelo penteado e tentando me fazer entender o máximo possível, comecei a escrever um livro. Pode parecer estranho, mas tive a impressão de que minha entrada no mundo não poderia ocorrer sem um esclarecimento prévio, embora ninguém ainda tivesse visto uma elucidação que não passasse de uma forma de obscurecimento. Eu desejava obter as graças do mundo adulto com o meu livro para poder, mais tarde, já ter o campo preparado para um encontro pessoal, e - eu pensava - se conseguisse plantar naquelas almas um conceito positivo da minha pessoa, esse conceito acabaria por me formar. Desse modo, mesmo que não quisesse, eu me tornaria visível. Mas por que, apesar de tudo, a pena acabou me traindo? Por que o santo pudor não me permitiu escrever um romance trivial e, em vez de engendrar pensamentos e conceitos nobres, saídos diretamente do coração e da alma, fui buscá-los nas partes mais ignóbeis, incluindo no texto sapos e pernas, trechos imaturos e fermentados que por meio de um estilo e de um tom frio e controlado consegui espalhar pelo papel, demonstrando o quanto desejava me separar de vez daquela fermentação? Por que, como se contrariando o meu propósito, fui dar ao livro o título de Memórias do período de imaturidade? Em vão os amigos me aconselharam a não dar esse título ao livro e me alertaram que evitasse quaisquer alusões, por menores que fossem, à imaturidade. "Não faça isso", disseram, "a imaturidade é um conceito drástico, e se você mesmo se considerar imaturo, quem poderá considerá-lo maduro? Será que não compreende que a primeira condição para se alcançar a maturidade é declarar-se maduro?" Mas eu acreditava piamente que não era adequado abandonar o criançola que vivia em mim de uma forma tão fácil e simples, que os Adultos eram suficientemente espertos e perspicazes para não se deixar iludir; e que todo aquele que tem um fedelho que o persegue sem cessar não tem o direito de se apresentar publicamente sem ele. Talvez eu encarasse de forma séria demais a própria seriedade; valorizasse demais a adultícia dos adultos. Lembranças, lembranças! Com a cabeça enfiada no travesseiro, os pés debaixo do cobertor, agitado por acessos de riso e de medo, eu fazia o balanço da minha entrada no mundo dos adultos. Não se fala suficientemente sobre os sofrimentos e as mágoas pessoais e internas envolvidas nesse processo, cujas graves conseqüências hão de permanecer conosco para sempre. Os literatos, pessoas dotadas de um talento divino para as coisas mais distantes e mais sem importância, como o drama na alma do imperador Carlos II resultante do casamento de Brunhilda, relutam em tocar na questão mais importante de todas: a sua metamorfose em seres públicos e sociais. É evidente que eles teriam preferido que todos os considerassem escritores por graça divina, e não humana; que tivessem caído do céu já dotados de talento. Ficam embaraçados por ter de admitir quantas concessões privadas e quantas derrotas pessoais precisaram assumir para terem o direito de escrever sobre Brunhilda ou mesmo sobre a vida dos apicultores. Não, nem uma só palavra a respeito de sua própria vida - apenas sobre a vida dos apicultores. Certamente, tendo escrito vinte livros sobre a vida dos apicultores, poderão até ganhar uma estátua, mas onde está a ligação do rei dos apicultores com o seu ser interior, onde está a conexão do homem adulto com o adolescente, do adolescente com o garoto, do garoto com a criança que já foi um dia? Qual o consolo que a criança pode ter no vosso rei? Uma vida que não respeita essas ligações e não realiza seu próprio desenvolvimento em toda a sua magnitude é como uma casa construída de cima para baixo e, inevitavelmente, terá de acabar num esquizofrênico colapso de seu próprio ser. Lembranças! A maldição da humanidade reside no fato de nossa existência neste planeta não tolerar uma hierarquia fixa e definida, que tudo sempre flui e reflui em constante movimento e que cada um de nós deve ser percebido e avaliado pelos demais, sendo que a percepção que têm de nós os menos esclarecidos, limitados e burros nos é tão importante quanto a dos inteligentes, esclarecidos e sutis. Pois o homem, no mais profundo do seu ser, depende da sua imagem impressa na alma de outro homem, mesmo que a alma em questão seja a de um cretino. E eu me oponho categoricamente aos meus companheiros de pena, que, diante da opinião dos menos esclarecidos, adotam uma postura aristocrática e proclamam em alto e bom som odi profanum vulgus. Isso não passa de uma forma barata e simplificada de se esconder da realidade; uma pobre fuga para uma fictícia altivez! Pelo contrário, afirmo que, quanto mais estreita e limitada for essa opinião, mais incômoda ela será, assim como sentimos mais desconforto num sapato apertado do que num que foi feito sob medida. Oh, esses conceitos humanos, esse abismo de conceitos e opiniões sobre a sua inteligência, o seu caráter, o seu coração, sobre todos os detalhes do seu organismo que agora se abrem diante daquele atrevido que decidiu vestir os pensamentos dele com letras impressas e os distribuiu aos homens em folhas de papel. Oh, papel e papel, letras e letras! E não estou falando aqui daqueles conceitos generosos e tíbios emitidos por nossas queridas tias; não, refiro-me a outras tias - tias culturais, aquelas inúmeras semi-autoras e autonomeadas críticas literárias que emitem seus conceitos em revistas semanais. Pois a cultura do mundo foi tomada de assalto por um bando de muquiranas, todas alinhavadas à literatura, convictas de que conhecem a fundo as virtudes morais e os conceitos estéticos e que, na maior parte das vezes, emitem conceitos e idéias próprias a ponto de afirmarem que Oscar Wilde já está ultrapassado e que Bernard Shaw é o mestre do paradoxo. Ah, elas sabem que precisam ser independentes, profundas e categóricas e, por causa disso, costumam ser independentes, profundas e categóricas sem exageros e cheias da bondade típica das tias. Titia, titia, titia! Somente aquele que nunca esteve num laboratório cultural de uma tia e que não foi, calado e sem gemer, dissecado por sua mentalidade trivial que tira da vida todo o seu significado, e não leu num jornal o modo pelo qual foi avaliado por uma tia, terá condições de saber o verdadeiro significado da pequenez, especialmente da pequenez de uma tia. E mais ainda; tomemos a opinião dos fazendeiros e fazendeiras, as opiniões das colegiais, as mesquinhas opiniões dos funcionários públicos de menor importância, assim como as burocráticas opiniões de seus chefes, as opiniões dos advogados do interior, as exageradas opiniões dos estudantes, as presunçosas opiniões emitidas pelos velhinhos, bem como as opiniões dos jornalistas, dos ativistas sociais, das esposas de doutores e, finalmente, as opiniões das crianças que ouvem as opiniões dos pais, as opiniões das empregadas domésticas - tanto das arrumadeiras quanto das cozinheiras -, as opiniões das primas; um autêntico mar de opiniões que nos definem e nos criam nas almas dos outros. É como nascer em milhares de almas acanhadas! Mas minha posição era tão difícil e penosa quanto fora difícil o meu livro e quanto mais provocador ele era em confronto com a literatura dita madura. É verdade que ele me proporcionou um punhado de amigos de primeiríssima grandeza e, caso as tias culturais e outros segmentos da sociedade pudessem ouvir como os Entendidos e os Sábios, trancados em ambientes fechados e inacessíveis aos demais, me elevavam aos céus em suas conversas intelectuais, creio que cairiam aos meus pés e lamberiam os meus sapatos. Mas, por outro lado, meu modo de escrever devia conter algo de imaturo, algo que atraía os seres imaturos e lhes permitia uma certa intimidade comigo - o período da imaturidade seduzira o demi-monde cultural. É bem possível que minha forma de escrever, por demais sutil para as mentes obscurecidas, era, ao mesmo tempo, insuficientemente elevada e pomposa para as comunidades sensíveis apenas aos sinais externos de seriedade. E não foram raros os momentos em que, tendo saído dos lugares sagrados e enaltecidos onde me vira saturado de profundo respeito e agradável admiração, eu dava de cara na rua com a esposa de um engenheiro ou com uma estudante secundária, que me tratavam de um modo familiar, como se eu fosse um de seus parentes imaturos e, dando-me tapinhas nas costas, diziam: "E aí, Józio! Como você é bobo e imaturo!". E, dessa forma, eu podia ser ao mesmo tempo inteligente para uns e burro para outros; uns me viam como um gênio, enquanto outros quase não me notavam; havia os que me consideravam um simplório e outros, um aristocrata. Dilacerado entre enaltecimento e desprezo, tratado com intimidade por ambos os grupos, sério e burlesco, soberbo e menosprezado, talentoso e desprovido de qualquer talento - eu era tudo isso, dependendo da situação e do acaso! A partir daí, minha vida ficou ainda mais dilacerada do que quando eu vivia trancado em meu quarto, a ponto de não mais saber a quem eu pertencia: se àqueles que me apreciavam ou se àqueles que não tinham nenhum apreço por mim. Mas o pior de tudo era que, odiando a ralé semi-inteligente mais do que alguém já a odiara, odiando-a do fundo do coração, eu me entregava a ela; fugia dos abraços amigos da elite e da aristocracia para atirar-me nos braços toscos da plebe ignara que me considerava um imaturo. Trata-se aí de uma coisa de fundamental importância, e determinante para o futuro desenvolvimento de alguém, diante da qual o homem se forma e organiza: a dúvida de se, ao falar, filosofar e escrever, ele leva em consideração apenas as acepções de pessoas adultas, formadas, cristalizadas, conhecedoras das questões mundiais ou se, pelo contrário, ele é constantemente perseguido pela visão do vulgo, da imaturidade, de colegiais, camponeses, burgueses, tias culturais, jornalistas, colunistas, de uma visão suspeita de um submundo turvo que o espreita pelos cantos, enlaçando-o aos poucos, como verdejantes lianas, trepadeiras, cipós e outras plantas africanas. Não podia me esquecer, nem por um momento, daquele inframundo e daqueles infra-seres e, mesmo tendo medo e asco deles e sentindo repugnância só de pensar no seu verdor pegajoso, não conseguia me libertar, fascinado como um passarinho diante de uma serpente! Era como se houvesse um demônio me seduzindo para a imaturidade! Como se eu, contrariando a natureza, simpatizasse com a esfera mais baixa e a amasse por permitir que eu mantivesse em mim o que eu tinha de criança. Eu não podia, nem por um segundo, falar corretamente, nem que fosse para me mostrar capaz disso, pois sabia que lá numa cidadezinha do interior um médico qualquer me considerava um tolo e esperava ouvir de mim somente tolices; e eu não podia me comportar séria e decentemente numa reunião social porque sabia que algumas colegiais esperavam ouvir de mim apenas indecências. Na verdade, no mundo do intelecto a violação é algo constante. Nós não somos nós mesmos, mas vivemos em função dos outros. Temos que ser como os outros nos vêem. E a minha desgraça final residia no meu mórbido prazer de ser aceito pelos imaturos, adolescentes e tias culturais. Ah, a sensação de ter sempre uma tia sobre os ombros, de ser ingênuo porque um ingênuo acha que você é ingênuo, de ser estúpido porque um estúpido o considera estúpido, de ser imaturo porque um outro imaturo o mergulha e o banha na sua imaturidade. Isso tudo poderia nos levar à loucura não fossem duas palavras mágicas - "no entanto" - que fazem a vida tolerável! Roçar naquele mundo elevado e adulto e não poder penetrar nele; estar a um passo da distinção, da elegância, da sabedoria, da dignidade, de conceitos maduros, de respeito mútuo, de hierarquia, dos valores e somente poder lamber essas guloseimas por trás de uma vitrine, não ter acesso àquelas questões e ser apenas supérfluo. Conviver com os adultos e sempre, como um adolescente, ter a impressão de que apenas se está fingindo ser um adulto? Fingir ser um escritor e um literato, parodiando estilos literários e formas rebuscadas e maduras? Participar, na qualidade de artista, da cruel batalha pública pelo meu próprio "eu" e, ao mesmo tempo, continuar aliado, às escondidas, de seus inimigos mortais? Ah, sim! Logo no começo da minha vida pública, recebi uma consagração semi-sagrada e fui generosamente ungido pelas esferas inferiores. E o que complicava ainda mais a situação era que o meu modo de vida deixava muito a desejar. Era turvo, pobre, apagado e indefensável perante os semi-esclarecidos homens do mundo. Uma certa incapacidade nascida da timidez e da incerteza ou, talvez, do medo, não me permitia harmonizar com qualquer forma de maturidade, e houve casos em que eu, por puro medo, dava um beliscão numa pessoa que, com a melhor das intenções em seu espírito, se aproximara do meu. Como eu invejava aqueles literatos, engrandecidos desde o berço e evidentemente predestinados à Grandeza, cujas almas ascendiam sem cessar, como se espetadas por uma sovela no traseiro. Escritores sérios, que levavam sua alma a sério e que, com facilidade inata e grande sofrimento criativo, lidavam com conceitos tão sérios e consagrados que o próprio Deus lhes era vulgar e ignóbil. Por que não é permitido a qualquer um escrever mais um romance sobre o amor ou, com o coração partido, denunciar alguma injustiça social e tornar-se o Defensor dos Oprimidos? Ou escrever versos e tornar-se um Poeta, um crente no "glorioso futuro da poesia"? Ser talentoso e, com seu espírito, alimentar e elevar as incontáveis hostes de espíritos desprovidos de talento? Ah, que prazer deve sentir alguém que, mesmo sofrendo, sacrificando-se e, torturado, está sempre nas alturas, nas categorias tão sublimes, tão... adultas. Como deve ser bom poder sentir a sua própria satisfação e a satisfação dos outros utilizando as milenares instituições culturais com a mesma segurança com que deposita seu dinheiro numa caderneta de poupança. Mas o fato é que eu não passava - ai de mim - de um adolescente, e a adolescência era minha única instituição cultural. Duplamente aprisionado e limitado: pelo meu passado infantil que eu não conseguia esquecer e pelo conceito infantil que os outros tinham de mim, por aquela caricatura de mim que guardavam em suas almas... Eu era um melancólico escravo da imaturidade; um inseto perdido num denso e profundo matagal. [...]