Trecho do livro A BIBLIOTECA À NOITE

1. MITO A noite, que a teologia pagã dizia ser filha do Caos, não é favorável à descrição da ordem. Sir Thomas Browne, The Garden of Cyrus A biblioteca em que finalmente reuni meus livros começou a vida em algum momento do século XV como celeiro, encarapitado sobre uma pequena colina ao sul do rio Loire. Aqui, nos últimos anos antes da era cristã, os romanos erigiram um templo a Dioniso, para louvar o deus desta região vinícola; doze séculos mais tarde, uma igreja cristã substituiu o deus do êxtase ébrio pelo deus que transformou o próprio sangue em vinho (tenho uma foto de um vitral que representa uma vinha dionisíaca crescendo de uma das chagas no flanco direito de Cristo). Mais tarde ainda, os aldeões anexaram à igreja uma casa onde alojar o padre, e por fim acrescentaram alguns pombais, um pomar e um celeiro. No outono de 2000, quando vi pela primeira vez estas edificações que hoje são meu lar, tudo o que restava do celeiro era um muro de pedra separando minha propriedade de um galinheiro e dos campos do vizinho. Diz a lenda local que antes de fazer parte do celeiro o muro fazia parte de um dos dois castelos que Tristan l'Hermite, ministro de Luís XI, célebre por sua crueldade, construiu para os filhos por volta de 1433. O primeiro desses castelos, muito modificado ao longo do século XVIII, ainda está em pé. O segundo ardeu num incêndio há três ou quatro séculos, e o único muro que resistiu, com um pombal numa das extremidades, tornou-se propriedade da igreja, limitando um dos lados do jardim paroquial. Em 1693, depois da abertura de um novo cemitério para abrigar o número crescente de mortos, os aldeões ("reunidos às portas da igreja", diz a crônica) concederam ao padre em exercício permissão para assenhorear-se do velho cemitério e plantar árvores frutíferas por cima das tumbas vazias. Na mesma época, o muro do castelo foi usado como parede lateral de um novo celeiro. Depois da Revolução Francesa, como resultado da guerra, das tempestades e do abandono, o celeiro desmoronou, e nem depois que o culto foi retomado na igreja, em 1837, e que um novo padre passou a viver na casa paroquial, o celeiro foi reconstruído. O velho muro continuou servindo de divisa, dando para os campos do fazendeiro, de um lado, e fazendo sombra para a magnólia e as hortênsias do padre, de outro. Assim que vi o muro e as pedras espalhadas à volta, entendi que aquele era o lugar onde iria construir o aposento que abrigaria meus livros. Tinha na cabeça uma imagem nítida de biblioteca, uma espécie de cruzamento entre o salão comprido de Sissinghurst (a casa de Vita Sackville West em Kent, que visitara pouco antes) e a biblioteca de minha antiga escola, o Colégio Nacional de Buenos Aires. Queria lambris de madeira escura, focos de luz suave e poltronas confortáveis, com um espaço adjacente, menor, onde instalar a escrivaninha e as obras de referência. Imaginava estantes que começassem à altura do quadril e subissem apenas até onde chegasse a ponta dos dedos de meu braço estendido, pois sei por experiência que os livros condenados a alturas que pedem escadas ou a profundezas que obrigam o leitor a rastejar acabam por receber muito menos atenção que seus companheiros a meia altura, seja qual for seu assunto ou mérito. Mas essas disposições ideais teriam exigido uma biblioteca três ou quatro vezes maior que o celeiro desaparecido; de resto, como Stevenson definiu tão pesarosamente, "nisso reside a amargura da arte: entrever um bom efeito, e continuamente ser atalhado por alguma insensatez sobre o sentido". A necessidade ditou que minha biblioteca tivesse estantes que começam pouco acima do piso e terminam a um in-octavo de distância das traves do teto. Enquanto construíam a biblioteca, os pedreiros descobriram duas janelas na antiga parede, muradas havia muito. Uma delas é um vão estreito por onde, quem sabe, arqueiros defendiam o filho de Tristan l'Hermite quando os camponeses irados se rebelavam; a outra é uma janela baixa e quadrada, protegida por barras de ferro medievais, forjadas toscamente na forma de caules com folhas pendentes. Dessas janelas, durante o dia, posso ver as galinhas do vizinho correndo pelo galpão, bicando aqui e acolá, atarantadas pela oferta exagerada, como eruditos enlouquecidos numa biblioteca; do outro lado, das janelas da parede nova, vejo a casa paroquial e as duas velhas árvores do meu jardim. Mas à noite, quando as luzes da biblioteca são acesas, o mundo exterior desaparece e nada senão este espaço de livros continua a existir. Para quem estiver do lado de fora, no jardim, a biblioteca à noite parece uma espécie de grande nau, como aquela estranha villa chinesa que, em 1888, a caprichosa imperatriz Cixi mandou construir em forma de navio abandonado no lago do jardim de seu Palácio de Verão. No escuro, com as janelas iluminadas e as fileiras de livros resplandecentes, a biblioteca é um espaço fechado em si mesmo, um universo de regras próprias que pretendem substituir ou traduzir as do universo informe ao redor. Durante o dia, a biblioteca é um reino de ordem. Movimento-me resoluto pelas passagens sinalizadas, em busca de um nome ou de uma voz, convocando os livros à minha atenção segundo o posto que lhes cabe. A estrutura do lugar é visível: uma trama de linhas retas, destinadas a guiar e não a extraviar; um cômodo ordenado, que segue uma regra aparentemente lógica de classificação; uma geografia que obedece a um sumário prévio e a uma hierarquia memorizável de letras e números. À noite, porém, a atmosfera é outra. Os sons se abafam, os pensamentos se fazem ouvir. "A coruja de Minerva só bate asas ao crepúsculo", observou Walter Benjamin, citando Hegel. O tempo parece mais próximo daquele momento a meio caminho entre a vigília e o sono, quando o mundo pode ser confortavelmente reimaginado. Sem que eu me dê conta, meus movimentos se tornam furtivos, minha atividade secreta. Viro uma espécie de fantasma. Os livros passam a ser a presença real, e eu, o leitor, é que sou convocado e atraído para um certo volume e uma certa página por meio de rituais cabalísticos de letras entrevistas. À noite, a ordem decretada pelos catálogos é meramente convencional; ela não mantém seu prestígio entre as sombras. Embora minha biblioteca não tenha um catálogo autoritário, mesmo ordens mais flexíveis como a organização por autor ou a divisão por língua têm seu poder diminuído. Livre das restrições cotidianas, sem ninguém que os vigie nessas altas horas, meus olhos e minhas mãos correm à solta pelas fileiras ordeiras, restaurando o caos. Um livro clama inesperadamente por outro, criando alianças entre séculos e culturas diferentes. Um verso recordado pela metade encontra eco num outro, por razões que, à luz do dia, permanecem obscuras. Se a biblioteca pela manhã sugere um eco da ordem severa e passavelmente ilusória do universo, à noite ela parece deleitar-se na alegre e essencial mixórdia do mundo. No século I, em seu livro sobre a guerra civil romana que transcorrera cem anos antes, Lucano descreveu Júlio César vagando pelas ruínas de Tróia e observou como cada gruta e cada lenho seco recordavam a seu herói as velhas histórias homéricas. "Uma lenda prende-se a cada pedra", explicava Lucano, descrevendo tanto a viagem literária de César como, no futuro distante, a biblioteca em que estou agora. Meus livros guardam entre suas capas todas as histórias que eu já soube e ainda recordo ou já esqueci ou algum dia lerei; eles preenchem o espaço a meu redor com vozes, velhas e novas. É claro que também durante o dia essas histórias existem nas páginas, mas, quem sabe devido à familiaridade da noite com as visões espectrais e os sonhos reveladores, elas se tornam mais vividamente presentes depois que o sol se põe. Ando pelos corredores, vejo de relance as obras de Voltaire e ouço a fábula oriental de Zadig; um pouco além, o Vathek de William Beckford retoma o fio da meada e o entrega aos saltimbancos de Salman Rushdie, atrás da capa azul de Os versos satânicos; um outro Oriente ecoa na mágica aldeia de Zahiri, na Samarcanda do século XII, que por sua vez cede a narrativa aos pobres sobreviventes de Naguib Mahfouz, no Egito contemporâneo. O César de Lucano é instruído a caminhar com cuidado na planície troiana, a fim de não pisar em fantasmas. À noite, aqui na biblioteca, os fantasmas têm voz. Mas a biblioteca à noite não é para todo leitor. Michel de Montaigne, por exemplo, discordava de meu pendor soturno. Sua biblioteca (ele falava sempre de sua librairie, não de sua bibliothèque, pois as acepções desses termos estavam apenas começando a mudar no vertiginoso século XVI) estava alojada no terceiro andar da torre onde ele morava, numa antiga despensa. "Passo ali quase todos os dias da vida e quase todas as horas do dia; nunca vou à noite", confessou ele. À noite Montaigne dormia, pois achava que o corpo já sofrera o bastante durante o dia em prol da mente leitora. "Os livros têm muitas qualidades agradáveis para aqueles que sabem escolhê-los, mas não há bem que nos venha sem pena; esse prazer não é puro e simples, não mais que outros; tem seus próprios incômodos, e onerosos; a alma divaga, mas o corpo, de cujo cuidado não esqueci, permanece inativo, e se cansa e se entristece." [...]