Trecho do livro O IMPÉRIO DERROTADO

INTRODUÇÃO I Este livro estuda a ditadura e seu legado, a revolução e sua história, o nascimento e a consolidação da democracia. Procura discutir e explicar como se construiu a democracia em Portugal. A revolução portuguesa de 1974-6, que foi o centro da transição para a democracia em Portugal, é o cerne desta obra. Esse foi um período extraordinário: inesperado, muito mal compreendido, marcante em seus efeitos sobre o cenário internacional. O levante português assemelhou-se mais às revoluções européias da década de 1820 e de 1848 do que às "grandes" revoluções de 1789 na França ou de 1917 na Rússia. Em outras palavras, foi impressionante em seu poder psicológico, mas limitado na capacidade de reordenar a sociedade, suficientemente significativo em seu impacto para transformar o contexto do discurso sociopolítico e o contexto institucional no qual o poder político é exercido, mas, depois de terminado, difícil de ser levado a sério por muitos observadores estrangeiros. Em alguns aspectos singulares, porém, os extraordinários acontecimentos de meados da década de 1970 já são história antiga, e tanto a Constituição como o sistema econômico de Portugal caracterizam-se pela fuga deliberada ao legado desse período. Por motivos que espero explicar neste livro, a democracia portuguesa contemporânea assenta-se parcialmente na sublimação dessa experiência conflitante, o que pode explicar a visão altamente fragmentada desses eventos e gera o risco de fazer prisioneira da memória seletiva a história desse período. Muito do que se escreveu sobre a democracia portuguesa tende a refletir uma amnésia auto-imposta; começa-se com freqüência a história em 1976 com o estabelecimento do governo constitucional. O problema dessa abordagem está em que a Constituição de 1976 emergiu das condições do período revolucionário, incorporando sua retórica e impondo limitações legais à atividade econômica que refletiam o ponto de vista então dominante, porém esse ponto de vista ao final da década já não encontrava ressonância no povo nem nas classes políticas, muito menos nos almejados parceiros de Portugal na Comunidade Européia. É importante salientar esse fato, pois existe a tendência de homogeneizar o caso português em um quadro comparativo, com isso obscurecendo elementos vitais da democratização do país. Para a direita, essa homogeneização deriva do desejo de minimizar a história da revolução e até de negar sua ocorrência. Isso não surpreende. A imagem da revolução evidentemente é parte indissociável da luta pela memória histórica, processo que, em si, pode envolver tanto afirmação quanto negação. O Partido Comunista Português, por exemplo, apresentou-se como o defensor dos "ganhos da revolução" na década de 1980 - principalmente a expropriação radical dos grandes monopólios e propriedades rurais em 1975 e as cláusulas socializantes de 1976 -, e até 1982 esse partido personificou a resistência defensora dessas medidas. Com isso - convenientemente para muitos ex-radicais que haviam passado para o centro e para a direita -, os comunistas ajudaram a disfarçar o fato de que as nacionalizações e expropriações foram na época altamente representativas da vontade popular, impelidas tanto pela ausência ou colapso da autoridade estatal quanto por algum plano preconcebido ou maquiavélico. E os comunistas contribuíram para uma visão parcial e limitada do que ocorreu, pois sempre aceitaram de muito bom grado o crédito pelos fenômenos que outros consideravam justamente a causa dos problemas de Portugal, quando, na verdade, chegaram a fazer oposição a alguns desses fenômenos no calor da luta contra um movimento popular com freqüência liderado por jovens incendiários de extrema esquerda. A sublimação da revolução também é produto da desmilitarização da política portuguesa. Um elemento fundamental na equação política de 1975 foram os radicais nas forças armadas. Contudo, no decorrer da década de 1980, os militares radicais foram marginalizados tanto nas forças armadas como no sistema político. Mesmo os oficiais "moderados", que haviam desempenhado papel central no endurecimento da oposição aos extremismos de direita e esquerda, revelaram-se, quando a crescente anarquia e ruptura institucional ameaçaram agravar-se para um confronto armado e uma guerra civil, excessivamente intervencionistas para a nova democracia em estilo europeu que se desenvolvia em Portugal. Após a extinção do Conselho da Revolução em 1982, os golpistas de 1974, chamados "Capitães de abril" na eufórica primavera de 1974, ficaram reduzidos a um mero grupo de veteranos. Como sempre, quem escreve a história são os vitoriosos e, no caso de Portugal, os vitoriosos foram os políticos civis que, com grande incentivo e ajuda financeira do exterior, uniram forças para se opor à radicalização em Portugal no verão de 1975. Essa distorção da revolução, embora compreensível, tem a desvantagem de obscurecer parte da dinâmica vital à formação do novo regime. Obscurece especialmente o fato de que os portugueses se viram diante de escolhas dificílimas em 1975, e por isso oculta as fontes da força da democracia portuguesa, força essa que provém de ter sido uma democracia nascida da luta. II Também é difícil, às vezes, lembrar a importância que os assuntos portugueses assumiram no cenário mundial em meados da década de 1970. Mas essa oscilação entre longos períodos de desatenção seguidos por breves ondas de pânico internacional não é fenômeno inédito em Portugal. Em 1640 e 1820, como em 1974, revoluções portuguesas perturbaram o status quo internacional. As reações apavoradas que elas provocaram, respectivamente, no conde-duque de Olivares, no príncipe Metternich e em Henry Kissinger tiveram surpreendente semelhança. Em muitos aspectos, os levantes portugueses, que por algum tempo tanto preocuparam esses estadistas, acabaram sendo eclipsados por suas conseqüências internacionais - o colapso da tentativa de regenerar o poder espanhol na década de 1640, a independência do Brasil na década de 1820 e o início do fim do domínio branco no Sul da África na década de 1970. Talvez devido a essa singular trajetória os historiadores tenham dado mais atenção aos resultados que aos inícios desses acontecimentos. O mais das vezes, os eventos em si ganharam, quando muito, uma linha na narrativa histórica. A fracassada revolta dos catalães em 1640 é tema de uma obra clássica de John T. Elliot, mas a vitoriosa revolta portuguesa de 1640 ainda aguarda um historiador. A importância que Metternich atribuiu à revolução de 1820 em Portugal em geral é descrita em duas linhas. A revolução portuguesa de 1974 já é descartada por muitos como uma doce ilusão de esquerdistas esperançosos, ainda que alguns participantes tenham boas razões para esquecer esse período. As ações de Henry Kissinger em meados da década de 1970, por exemplo, não refletiram as melhores qualidades desse estadista nem seu discernimento e, como seria de esperar, não constam de nenhuma parte de seu volumoso livro Diplomacia. Cabe notar que o contraste entre projeção no curto prazo e conseqüência no longo prazo também foi movido pelo ritmo da história portuguesa, ou seja, por certa alternância entre breves ondas de experimentação precoce seguidas por prolongadas calmarias. Cada uma dessas fases parece excluir temporariamente a possibilidade da outra. Recordo-me bem de estar em um café lisboeta no início de 1964, lendo a descrição do professor Edgar Prestage sobre a Lisboa de cinqüenta anos antes, que fala de manifestantes tomando as ruas em passeata e de tumulto político e militar. Uma Lisboa assim pareceu-me inconcebível na época, e menosprezei o relato de Prestage como exageros da memória de um velho. Apenas uma década depois, contudo, a maioria dos velhos cafés havia sido substituída por bancos cujos empregados eram vociferantes "antifascistas" liderados por um ministro de gabinete comunista, e a meticulosa ordem de 1964 já era inimaginável, exatamente como o levante revolucionário de 1974-5 deve parecer inexplicável aos estudantes que ingressam na universidade hoje em dia. Isso tudo é para ilustrar a rapidez com que todos nos tornamos antiquários e mostrar que, quanto mais próximo de nós está o passado, mas distante ele nos parece. Isso obviamente não quer dizer que os próprios eventos sejam insignificantes (ou que nossa percepção sobre eles na época o seja). A experiência portuguesa foi qualitativamente diferente de muitas outras mudanças de regime contemporâneas justamente porque a transição em Portugal adquiriu muitas características de uma revolução. Em alguns aspectos, o que ocorreu em seguida foi não só um processo de estabelecimento da democracia, mas um processo de uma revolução domada. O levante português de 1974-5 não "virou o mundo de pernas para o ar" como quiseram os levellers durante a Guerra Civil inglesa do século XVII, ainda que, por vários meses, Portugal recobrasse boa parte da euforia, embora não da violência, de revoluções passadas. De fato, graças a essa trajetória sem carnificina a revolução portuguesa não é pontuada por imagens indeléveis como a da execução de Carlos I da Inglaterra, a queda da Bastilha ou a tomada do Palácio de Inverno pelos bolcheviques, que, em outros contextos históricos, marcaram dramaticamente a ruptura com o passado. É bem verdade que em todos esses casos o passado, de uma forma ou de outra, voltou para assombrar o novo regime e que antigas desigualdades sociais ressurgiram em novas estruturas políticas. Mas o evento simbólico permaneceu para sempre na imaginação popular e na historiografia, proclamando a intenção de mudança radical, ainda que não sua consumação. Mesmo revoluções fracassadas tiveram tais momentos. Esvaeceram-se na memória histórica unicamente porque as conseqüências dos eventos não foram as antevistas ou porque a velha ordem levou a melhor sobre a nova e retornou, às vezes com nova roupagem, para suprimir os fatos e até a memória da potencial ruptura. Portugal vivenciou tais momentos, e um objetivo deste livro é registrá-los antes que passem pelo bisturi dos amnesiologistas históricos. A dinâmica do fracasso e do sucesso, que fluiu da coalescência e da desintegração de alianças durante o tumultuado período entre o colapso da velha ordem e a cristalização da nova, não é desconsiderada aqui. O breve interlúdio de euforia, característico de todos os momentos revolucionários, quando tudo parece possível, é o mais difícil de recapturar retrospectivamente. Wordsworth sintetizou esse momento em sua célebre frase sobre a Revolução Francesa: "Foi glorioso estar vivo naquele amanhecer", e Marx, escrevendo sobre a revolução de 1848 na França, chamou-o de um momento de "brilhante resplendor". Esse momento acaba passando despercebido aos estudiosos de revoluções bem-sucedidas, que quase sempre vêem os resultados como inevitáveis. E é muito freqüentemente descartado pelos estudiosos de revoluções fracassadas, pois o vêem como efêmero, fantasmagórico até. Há em toda revolução certas restrições estruturais - socioeconômicas e psicológicas, além das geradas pelo contexto internacional - que invariavelmente estabelecem poderosos limites. Mas as visões dos atores do drama e suas interpretações do equilíbrio de forças políticas e sociais permanecem cruciais para a ação política, mesmo se objetivamente suas construções e interpretações vierem a revelar-se incorretas depois. Muitas são as vantagens da análise retrospectiva, mas uma desvantagem é roubar a história de toda sensibilidade para as escolhas que homens e mulheres defrontaram nos momentos de comoção. Essa provavelmente é a razão por que, apesar de todas as teorias da revolução e dos debates acadêmicos e ideológicos sobre suas causas, cada revolução é um choque e uma surpresa. De fato, a revolução portuguesa não fugiu à regra.