Trecho do livro UM FILME É PARA SEMPRE

ENGENHARIA DOS MUSICAIS CANTANDO E DANÇANDO À SAÍDA DO CINEMA [31/5/1997] Quarenta anos depois de dado oficialmente como morto, o filme musical, um dos gêneros mais deliciosos inventados pelo cinema, passou as últimas semanas sentado no banco dos réus - do qual, pelo visto, saiu comicamente condenado. Sob o pretexto de analisar Todos dizem eu te amo (Everyone says I love you), o novo filme de Woody Allen em que atores que não sabem cantar se expressam às vezes através de canções, críticos bissextos puseram o gênero no pelourinho e cada qual se sentiu autorizado a ir até lá dar a sua chibatadinha. Mas, na maioria dos casos, o efeito backlash se fez sentir e esses críticos, ao receber o látego no próprio rosto, revelaram apenas a sua desinformação sobre o assunto. Basicamente, fazem-se duas acusações aos musicais: são filmes chatos porque, no meio de uma cena, o sujeito começa a cantar; são irreais porque, neles, qualquer marinheiro ou mata-mosquito dança e canta como um profissional. Quantas vezes você já não ouviu isso? Mas as duas acusações não fazem justiça à suposta inteligência de quem as formula. Por que, num musical, os atores cantam no meio de uma cena? Envergonhado por estar aqui a declarar o óbvio, respondo: porque se trata de um filme musical. Se fosse um filme de ação, estrelado por Van Damme, Schwarzenegger ou Bruce Willis, os atores não cantariam. Começariam a distribuir socos e pontapés, gente voaria espatifando janelas e carros explodiriam. Fosse um filme de terror, estrelado pelos efeitos especiais, os atores também não cantariam - começariam a vomitar, os olhos saltariam das órbitas e seus rostos derreteriam como um escarro. E assim por diante. Cada qual vê o gênero que prefere ou que mais alcança a sua sensibilidade. E por que, num musical, todo mundo dança ou canta "tão bem"? De novo envergonhado por ser obrigado a declarar o óbvio, repito: porque se trata de um filme musical. Nos filmes de ação, todo mundo em cena é mestre em tiro, caratê ou explosivos. Nos antigos westerns, todo mundo sabia andar a cavalo. Nos filmes de Spike Lee, todo mundo sabe dizer fuck e motherfucker. Cada gênero com a sua especialidade, qual é o problema? E, se esse ou aquele crítico não gosta de musicais e prefere os filmes de perseguições em velocidade, por que não se especializa neles, já que a crítica, com exceções, se tornou uma questão de gosto? Se todo mundo nos musicais dos anos 40 e 50 dançava ou cantava bem, era porque o público exigia. Ao ver Fred Astaire ou Gene Kelly interpretando um homem comum que dançava como um profissional, o espectador saía do cinema dançando imaginariamente pelas ruas. Os filmes lhe passavam a ilusão de que qualquer um podia dançar. Mas, para contagiar a platéia com essa sensação de extrema naturalidade, mesmo superdançarinos como Astaire ou Kelly tinham de dar o sangue nos ensaios. Seqüências que duravam cinco minutos na tela podiam exigir cinco semanas de preparação, para serem filmadas num único take, sem os truques baratos de corte e montagem de que abusam musicais "modernos", como Flashdance (1983) e Dirty dancing (1987) - nos quais ninguém sabe dançar. O mesmo se aplicava às canções que, "de repente", os atores começavam a cantar. Só que não era de repente. Os musicais, e não apenas os da MGM, obedeciam a toda uma engenharia em que o roteiro era escrito em função das canções e das seqüências de dança. O diálogo imediatamente anterior a cada número era uma preparação para que a letra da canção se encaixasse com lógica e, como se dizia em Hollywood, fizesse a ação "avançar" (donde qualquer canção ou dança que "atrasasse" essa ação era impiedosamente cortada). Havia uma sabedoria no roteiro ao intercalar canções e danças românticas ou mais swingadas, com o astro em solo ou com a parceira ou em grupo. Nada era deixado ao acaso. Aos ouvidos de muitos espectadores mais jovens, realmente parece estranho que um homem ou uma mulher se exprima cantando. Pelo tipo de discos que eles devem escutar, é compreensível. Pode-se imaginar alguém dizendo alguma coisa ao som de funk, rap, dance, house, tecno ou qualquer outra pancadaria em voga? Mas os antigos estúdios tinham sob contrato alguns dos grandes compositores e letristas daquele tempo. A mgm tinha Burton Lane, Alan Jay Lerner, Arthur Schwartz, Howard Dietz, Hugh Martin, Ralph Blane, Betty Comden e Adolph Green. A Fox tinha Harry Warren e Mack Gordon. A Paramount tinha Jimmy Van Heusen e Johnny Burke. Os maiores nomes, como Cole Porter, Irving Berlin, Jerome Kern, Harold Arlen ou Johnny Mercer, não se permitiam ter contratos permanentes, mas alugavam seus serviços por filme. E o letrista Ira Gershwin, volta e meia, cedia a esse ou àquele estúdio as canções de seu falecido irmão e parceiro George. Com gente desse quilate produzindo as canções para roteiros previamente definidos, não era uma surpresa que, em certos momentos, os atores "parassem de falar" e começassem a cantar - porque as canções é que eram a razão de ser dos filmes. Pode haver óbvio mais ululante? Algumas das grandes canções do século XX foram compostas para musicais do cinema. Eis dez delas, e de modo algum as principais: "Over the rainbow", "Cheek to cheek", "They can't take that away from me", "A foggy day", "Blues in the night", "How about you?", "One for my baby", "My foolish heart", "Young at heart" e "The man that got away". Só por essas já devíamos nos ajoelhar diante dos musicais. Quer mais dez? "I only have eyes for you", "I'm in the mood for love", "Easy to love", "At last", "Serenade in blue", "I'll remember April", "The boy next door", "When you wish upon a star", "Thanks for the memory" e "I've got you under my skin". Nenhuma delas saiu da Broadway - todas essas pequenas obras-primas nasceram por encomenda da vulgar, comercial e cafona Hollywood. Os musicais estavam entre as produções mais caras do cinema americano, perdendo apenas para os superespetáculos tipo Cecil B. DeMille. Para realizá-los, os estúdios tinham de manter na folha de pagamento uma multidão de atores, cantores, dançarinos, roteiristas, coreógrafos, maestros, orquestradores, músicos, cenógrafos, figurinistas e maquiadores, sem contar os seus diretores especialistas - e só a MGM contava com gente como Vincente Minnelli, Stanley Donen, George Sidney ou Charles Walters. Comparados com a riqueza da MGM, os musicais da Fox e da Warner eram quase classe B. A Paramount limitava-se a dois ou três por ano e os outros estúdios, nem isso. Musicais eram coisa para profissionais. Foi por isso que, quando vários fatores precipitaram a morte dos estúdios em princípios dos anos 50, os musicais foram os primeiros a sofrer as conseqüências. Era impraticável produzi-los de forma "independente", como se podia fazer com os dramas ou comédias. Quais foram os grandes musicais lançados a partir de 1960? Amor, sublime amor (West Side story, 1961), My fair lady (1963), A noviça rebelde (The sound of music, 1965), Charity, meu amor (Sweet Charity, 1968), Cabaret (1972) - todos vieram prontos da Broadway, trazendo a música, boa parte do elenco e, às vezes, até o diretor original. Mas, de uns anos para cá, com a tomada e o estupro da Broadway por Andrew Lloyd Webber, nem isso. Todos dizem eu te amo não é uma piada ou uma gozação de Woody Allen aos antigos musicais. Ao contrário, é uma carinhosa homenagem, apenas adaptada aos ouvidos de hoje. Ao escolher não-cantores para "cantar" em seu filme, Woody tomou a única decisão possível. Numa época em que Madonna é cantora e Michael Jackson, dançarino, o que haveria de mais em entregar aquelas simpáticas canções dos anos 20 e 30 ao seu elenco? A prova de que, dentro das circunstâncias, todos se saíram bem, é o disco do filme. Pode-se ouvi-lo com prazer, porque, hoje, já não há muita diferença entre um cantor e um não-cantor. Pensando bem, Woody Allen produziu um milagre: converteu Todos dizem eu te amo a um formato "realista" e, mesmo assim, fez com que a platéia saísse do cinema com vontade de cantar e dançar. Tal como nos tempos em que nos filmes se dizia "eu te amo".