Trecho do livro K.

1. O SOBERANO SATURNINO No início, há uma ponte de madeira coberta de neve. Nevoeiro cerrado. K. ergue o olhar "para o que parecia ser o vazio", in die scheinbare Leere. Ao pé da letra: "para o vazio aparente". K. sabe que há alguma coisa naquele vazio: o Castelo. Jamais o viu, talvez jamais ponha os pés ali. Kafka intuiu que só se nomeara um número mínimo de elementos do mundo à volta. Uma afiadíssima navalha de Ockham penetrava a matéria romanesca. Nomear o mínimo e em sua pura literalidade. Por quê? Porque o mundo tornava a ser uma floresta primeva, sobrecarregado de sons desconhecidos e aparições. Tudo tinha potência demais. Por isso era preciso limitar-se ao mais próximo, circunscrever a área do nominável. Então fluiria para ali toda a potência, de outro modo difusa. E naquilo que se nomeia - uma estalagem, um trâmite, um escritório, um quarto - se condensaria uma energia inaudita. Kafka fala de um mundo prévio a toda separação e denominação. Não é um mundo sagrado ou divino, nem um mundo abandonado pelo sagrado e pelo divino. É um mundo que ainda está por reconhecer o sagrado e o divino, distingui-los do resto. Ou que ainda não sabe reconhecê-los, distingui-los do resto.Uma estrutura única, feita apenas de potência. O bem em sua plenitude, mas também o mal em sua plenitude estão impregnados de potência. O objeto sobre o qual Kafka escreve é a massa da potência, ainda não dissociada, separada em seus elementos. É o corpo informe de Vrtra, que contém as águas, antes que Indra o trespasse com o relâmpago. O invisível tem uma tendência zombeteira a se apresentar como o visível, como se se distinguisse de todo o resto tão-somente por obra de circunstâncias particulares, como uma neblina que se dissipa. Assim somos induzidos a tratá-lo como o visível - e o castigo vem em seguida. Mas a ilusão permanece. O processo e O castelo são histórias em que se trata de concluir um trâmite: livrar-se de um procedimento penal, confirmar uma nomeação. O ponto em torno ao qual tudo gira é sempre a eleição, o mistério da eleição, a sua obscuridade impenetrável. No Castelo, K. deseja a eleição - e isso complica infinitamente cada ato seu. No Processo, Josef K. deseja subtrair-se à eleição - e isso complica infinitamente cada ato seu. Ser escolhido, ser condenado: duas modalidades do mesmo procedimento. A relação de Kafka com o judaísmo, examinada em cada recanto, com pertinácia muitas vezes vã, é perceptível sobretudo neste ponto, que assinala a diferença essencial entre o judaísmo e o que o circundava. Bem mais que o monoteísmo ou a lei ou a moral superior. Afinal de contas, para cada uma dessas características é possível encontrar predecessores ou análogos egípcios, mesopotâmicos, gregos. Ao passo que a ênfase na eleição, essa sim é única - e fundada numa teologia do único. O tribunal tem o poder de punir. O Castelo, o de eleger. Os dois poderes são perigosamente próximos, por vezes coincidentes. Ninguém mais do que Kafka, por atavismo e por vocação, possuía antenas para reconhecê-los. Para ninguém mais aquela adjacência e aquela sobreposição eram tão familiares. Mas não se tratava apenas de um legado judaico. Era coisa de todos e de sempre. O processo e O castelo têm um pressuposto idêntico: a eleição e a condenação quase não se distinguem. Esse quase é o motivo pelo qual os romances são dois, e não um. O eleito e o condenado são os escolhidos, aqueles que são isolados entre tantos, entre todos. Desse isolamento provém a angústia que os envolve, seja qual for a sua sorte. A principal diferença reside nisso: a condenação é sempre certa; a eleição, sempre incerta. Desconhecidos apresentam-se no quarto de dormir de Josef K., devoram seu desjejum e notificam que está em curso um procedimento penal contra ele. O procedimento já é, em si mesmo, a condenação. E nada poderia ser tão indubitável quanto aquela irrupção diante de testemunhas. Quanto a K., ao contrário, subsiste uma dúvida: a nomeação para agrimensor alguma vez chegou a ele? K. foi chamado ou apenas gostaria de ter sido chamado? É o legítimo titular de um cargo, por modesto que seja, ou é um fanfarrão que dá por certo algo que de fato não o é? K., que é ágil e tenaz em suas análises, mostra-se esquivo a esse respeito. Segue nebuloso o que aconteceu antes da "longa, difícil viagem" que o conduziu ao Castelo. Recebera uma convocação ou pusera-se a caminho justamente para obtê-la? Não há como saber com certeza.Mas há muitas maneiras de agravar e exasperar a incerteza. Assim fala o prefeito da aldeia a K.: "O senhor foi aceito como agrimensor, como diz, mas infelizmente nós não precisamos de agrimensor". A crueldade não está na conclusão da frase, mas nesse pungente "como diz". Tampouco as autoridades do Castelo jamais admitirão outra coisa, deixando aberta até o fim a possibilidade de que a convicção de K. seja um delírio ou uma simples impostura. De certo não há mais que um fato, como aduz o prefeito, que por sua vez insiste em precisar que "não sou funcionário de verdade" - e, portanto, não está à altura de tais questões -, mas "sou camponês e fico nisso". O fato é o seguinte: num dia longínquo, emanou um decreto que ordenava a nomeação de um agrimensor. Mas esse decreto remoto, que o prefeito teria esquecido sem mais, se a doença não lhe tivesse proporcionado a ocasião de "pensar nas coisas mais ridículas", não podia de modo nenhum dizer respeito à pessoa de K. Como todos os decretos, também esse planava acima das coisas e das pessoas, sem indicar a quem e quando seria aplicado. Desde então, esse decreto jaz entre os papéis entulhados no armário do quarto de dormir do prefeito. Sepultado nesse lugar íntimo e impróprio, manteve porém a sua energia radiante. Mas o tormento da incerteza não tem fim. De um lado, o prefeito continua a falar com K., dando a entender que K. tem boas razões para interrogá-lo. De outro, não chega jamais a reconhecer a legitimidade da pretensão de K. - e sabemos ao menos desde Hegel que o essencial para o animal humano é tão-somente o reconhecimento. Assim continua o prefeito: "Também ela [a convocação] foi pensada. Só que circunstâncias secundárias intervieram para confundir". A convocação de K. foi certamente objeto de reflexão da parte da autoridade. Mas qual foi a conclusão? K. jamais foi convocado? Isso o prefeito cuida de não dizer. Um grau ulterior do tormento se mostra quando o prefeito - ao reconstituir as complicadas vicissitudes do decreto de nomeação de um agrimensor e da falta de resposta da aldeia, por culpa do próprio prefeito (falta de resposta comprovada, segundo a reconstituição, por um "envelope vazio" encontrado num canto) - dá a entender que por vezes, justamente "quando um assunto foi ponderado durante longo tempo", pode mesmo acontecer que ele se resolva "como um raio", "como se o aparelho administrativo não suportasse mais a tensão", o prolongado agravamento da questão em aberto, e por isso procedesse à sua liquidação, decidindo "sem a colaboração dos funcionários". Uma tal possibilidade, portanto, subsiste. E é o próprio prefeito a admiti-la. Mas terá sido isso o que se deu no caso de K.? Aqui, mais uma vez, o prefeito recua e não dá garantias: "Não sei se no seu caso se chegou a uma decisão assim - algumas coisas dizem que sim, outras que não". Quanto às outras duas provas de sua nomeação a que K. apela - a carta do funcionário Klamm, endereçada a ele, e o telefonema ao Castelo, feito assim que ele chegara ao Albergue da Ponte -, também a essas, aliás sobretudo a essas, se aplica a dúvida. A carta de Klamm é patentemente (como já o indica o sobrescrito) uma carta privada, e por isso não pode valer de modo nenhum como declaração da autoridade, por mais que sua importância, por outros motivos, possa ser enorme. E a conversa telefônica é necessariamente enganosa, pois "não existe nenhuma linha telefônica definida com o Castelo". O rumor, o canto que emana dos aparelhos e que se ouve tão logo se tira o fone do gancho é a única forma acústica pela qual o Castelo se manifesta: forma indistinta - e sobretudo não lingüística. É uma música de palavras que retornam a sua origem de pura matéria sonora, prévias e subtraídas a qualquer significado. O Castelo comunica-se com o exterior por meio de um som contínuo e indecifrável. "Tudo o mais é enganoso", acrescenta o prefeito. A começar pela palavra clara e límpida. Nesse ponto, como um grande acadêmico que encerra um seminário com estudantes e os remete a uma outra ocasião e a um novo ciclo de seus estudos para continuar a discussão, o prefeito diz a K.: "Se o senhor tivesse seguido melhor minhas explanações, precisaria saber, sem dúvida, que a questão do seu chamado para cá é difícil demais para que pudéssemos respondê-la aqui no curso de uma pequena conversa". Mas a vida inteira é "uma pequena conversa". E assim reafirma-se uma última vez o princípio da incerteza insuprimível da eleição. Os mundos do Processo e do Castelo são paralelos a qualquer outro mundo, mas não entre si. Mais, são a seqüência um do outro. Josef K. torna-se K. Nesse meio-tempo, uma condenação e uma pena capital.Mas a história é a mesma - e contínua. Agora não há ninguém que venha procurar Josef K., é K. que se move à procura de alguma coisa. Os termos se invertem.O clima é outro, mas permanece afim. Mulheres, funcionários, trajes. Longos diálogos com desconhecidos, muitas vezes terrivelmente íntimos. Uma sensação tenaz de estranheza. "Ainda não conheço com precisão suficiente o seu sistema judiciário", diz Josef K. - mesmo que se encontre, nesse momento, num bairro periférico de sua cidade, cujo sistema judiciário ele está habituado a aplicar todos os dias, em sua condição de funcionário de um banco. É como se vigorassem duas leis simultâneas e incompatíveis. Tudo isso é estranho, mas logo não o parecerá a Josef K., e não só a ele: ao leitor também. Fato ainda mais singular. Nada é tão distante do Processo como a sensação do fantástico, do visionário e do "extraordinário" no sentido de E. A. Poe. Para quem lê, a suspeita constante é de que se trata de verismo. A leitura surpreende o leitor, assim como o guarda Franz, com os seus "trajes de viagem", surpreende Josef K. no instante "mais arriscado do dia": o despertar. O momento em que se pode ser facilmente "atropelado", quando não se está preparado. E ninguém está preparado ao despertar. É preciso ao menos já estar no escritório. Como diz K. à sra. Grubach: "No banco, por exemplo, estou preparado, lá seria impossível me acontecer uma coisa dessas". O processo e O castelo se dão no interior de uma mesma vida psíquica. Após a execução da pena, Josef K. reaparece sob o nome de K. e toma distância da cidade grande. O castelo é o bar-do de Josef K. O mundo do bar-do - aquele "estado intermediário" que o Livro Tibetano dos Mortos ensina a atravessar - não se apresenta drasticamente diverso do mundo dos vivos. Mas não concede facilmente o retorno. Quando Frieda devaneia sobre fugir com K., talvez "para o Sul da França, para a Espanha", suas palavras soam desvairadas e irrealizáveis, como as de alguém que ansiasse viver no Egito dos faraós. Entrar no bar-do, assim como adentrar o sonho, exige apenas uma leve torsão daquilo que existe - mas irreversível e capaz de desequilibrar todas as relações. Entre os procedimentos do tribunal na cidade de Josef K. e os da administração do Castelo existe uma evidente consangüinidade. Mas nada nos assegura que seus fins sejam convergentes. De seguro há apenas certas diferenças de estilo: ao Castelo não ocorre expulsar ou matar, como ainda faz o tribunal do Processo, mais primitivo, quem sabe. Para o Castelo, basta que a vida escoe. O puro passar do tempo já é a pena. O que distingue O processo e O castelo é que, da primeira à última linha, ambos se dão no umbral do mundo ulterior que suspeitamos estar implícito neste mundo. Jamais esse umbral for a uma linha tão tênue, a ponto de se encontrar em qualquer lugar. Jamais esses dois mundos foram tão próximos, a ponto de dar a impressão aterrorizante de aderirem um ao outro. Desse mundo ulterior, não sabemos dizer com certeza se é bom ou mau, celeste ou infernal. A única evidência é de algo que se impõe e nos envolve. Como K., alternamos lampejos de lucidez e lapsos de torpor, por vezes tomando uns pelos outros, sem que ninguém tenha autoridade para nos corrigir. Comparado a qualquer outro personagem de romance, K. é a pura potencialidade. Por isso suas feições não podem jamais ser descritas, direta ou indiretamente. Não sabemos sequer se tem "olhos escuros" como Josef K., que é seu predecessor. E não porque K., à maneira de Klamm, sofra contínuas metamorfoses. Mas porque K. é a forma daquilo que devém. [...]