Trecho do livro HISTÓRIAS DE QUILOMBOLAS

INTRODUÇÃO Outras narrativas de escravos e libertos - Então, malungo, está comendo tão caladinho!... fala sua verdade, isto não é melhor do que comer uma cuia de feijão com angu, que o diabo temperou, lá em casa de seu senhor?... - E às vezes nem isso, pai Simão. Laranja com farinha era almoço de nós, e enxada na unha de sol a sol... isto aqui sim, é outra coisa... se eu soubesse já há mais tempo estava cá. Viva o quilombo, meu malungo, e o mais leve tudo o diabo. Assim Bernardo Guimarães inicia o romance Histórias de quilombolas, escrito em 1871. A trama se desenvolve no interior de Minas Gerais, "perto da carrancuda e negra serraria de Itatiaia, distante como quatro léguas de Ouro-Preto, em vasto grotão sombrio e profundo, coberto de espessíssima floresta", na segunda metade do século XIX. É a história do cativo "Matheos Cabra", que resolveu raptar sua amada, a escrava "mulatinha Florinda", fato que causou ciúme no forro "mulato Anselmo", que também gostava dela. A escapada de Mateus foi motivada por um castigo que levou, em conseqüência de uma surra que tinha aplicado em Florinda, justamente por causa do ciúme que sentia de Anselmo. Levada para o quilombo, Florinda despertaria paixão em Zambi Cassange, um "preto africano", principal líder. E mais: quem agora sentiria ciúme seria Maria Conga, a "rainha" no quilombo. Um romance que misturava violências, mortes, enforcamentos, preconceitos e até uma "conspiração" para destituir a chefia do quilombo. Na descrição do autor da "mulatinha Florinda" já se esboçava a imagem da escrava "quase branca" do seu romance A escrava Isaura, publicado posteriormente: "As feições, a não serem os lábios carnosos e as narinas móveis, que se contraíam e dilatavam ao arquejo violento de seu coração, eram quase de pureza caucasiana". Entre desejos e paixões, o romance de Guimarães pode servir para bem mais do que uma epígrafe. Considerando narrativas e enredos, oferece ferramentas metodológicas para abordarmos as histórias dos quilombos no Brasil. Preocupado com sua trama, ele "humanizou" os quilombolas, fazendo com que suas ações tivessem, de fato, significados próprios para a vida deles. Desvelam-se conflitos envolvendo crioulos, africanos e forros, as conexões mercantis e a proteção que os quilombos podiam conseguir junto aos vendeiros da região, os contatos com os cativos nas senzalas, os rituais de "feitiçaria africana", as relações de solidariedade entre grupos quilombolas distintos, suas práticas econômicas (principalmente saques e razias em fazendas vizinhas) e mesmo os possíveis "acordos" destes com os integrantes de uma expedição punitiva. Ao longo da escravidão e da pós-emancipação em várias sociedades coloniais e pós-coloniais nas Américas não faltam evidências sobre variadas formas de protesto. Fugas, justiçamentos de feitores e senhores, revoltas nas fazendas, insurreições urbanas, quilombos etc. constituíram alguns modos de enfrentamento. Mas não foram os únicos. Havia sociabilidades com enfrentamentos endêmicos, disseminadas no cotidiano das relações entre senhores e escravos. A interferência no dia-a-dia das variadas relações do domínio senhorial podia se dar desde a sabotagem individual na unidade produtiva, barganhas, paternalismo, rituais de poder, fugas provisórias, apadrinhamento até à insurreição aberta. Forjavam-se de modo complexo e multifacetado, uma vez que homens e mulheres escravizados agenciavam sua vida com lógicas próprias entre experiências sociais concretas em cada sociedade. Dentre vários movimentos sociais, destacamos as fugas coletivas e as formações de comunidades de fugitivos, conhecidas como quilombos e mocambos. Ao contrário do que ocorria até pouco tempo atrás no Brasil, os estudos sobre comunidades de escravos fugidos avançaram muito para as regiões do Caribe. Aqui as comunidades de escravos fugidos - excetuada a de Palmares, no século XVII, ressaltada por seu gigantismo e longevidade - apareceram na historiografia como protestos "uniformes" e "repetitivos" e, portanto, analisados como sem sentido político. Questões como: que tipo de organização social criaram as comunidades de fugitivos? Quais as estratégias de enfrentamento e o impacto para o sistema escravista? Como os quilombos se tornaram uma ameaça para senhores e autoridades? Como se constituía sua economia? Essas comunidades de fugitivos se mantiveram tão-somente isoladas e marginalizadas? Havia solidariedade entre escravos, libertos e quilombolas? Por que alguns cativos que fugiam iam para os quilombos? Qual o perfil dos escravos que procuraram melhorar sua condição pela fuga? Os quilombos eram apenas constituídos por africanos? São indagações sobre as várias situações de fugas coletivas e sobre a formação de comunidades de fugitivos no Brasil. Por muito tempo, o principal debate que vigorou na historiografia brasileira era saber se a escravidão teria sido boa ou má, em conseqüência do suposto aspecto patriarcal e paternalista das relações entre senhores e escravos. A idéia da benignidade do sistema brasileiro encontraria nas obras de Gilberto Freyre sua melhor interpretação. O debate ganharia fôlego, estendendo-se aos estudos comparativos entre Brasil e Estados Unidos. Influenciados pelas análises de Freyre, Frank Tannembaum e depois Stanley Elkins tentaram explicar as origens das características "benévolas" da escravidão brasileira em relação àquelas "malévolas" norte-americanas. As diferenças eram atribuídas aos sistemas socioeconômico-culturais implantados: no Brasil vigoraria um pré-capitalista e católico, enquanto no Sul dos Estados Unidos adotou-se um sistema de economia capitalista e protestante. Em última instância, essas interpretações evidenciavam que, marcadas pelo paternalismo e mediadas pela ação do Estado e da Igreja, as relações sociais entre senhores e escravos no Brasil produziram cativos indolentes, preguiçosos, passivos e, acima de tudo, submissos a uma grande família patriarcal. Nos anos 1960 e 70, a historiografia brasileira temática teve grande impulso. As visões sobre o cativeiro "brando" foram contestadas. O protesto escravo ganhou destaque a partir de novas interpretações, que desmistificaram as imagens de passividade e submissão. Nessas abordagens revisionistas, a escravidão brasileira era apontada como sendo essencialmente cruel e violenta, tendo por isso, entre outras coisas, despersonalizado e coisificado os cativos e as organizações sociais por eles vivenciadas, como a constituição de famílias, por exemplo. Parte dessa revisão historiográfica focalizou o que denominava rebeldia escrava, explicando-a basicamente como reações ao caráter violento das relações sociais sob o escravismo. Essa nova corrente historiográfica em parte acabou por cair no extremo oposto das reflexões fundadas em Freyre e outros. Os escravos são descritos pelos seus atos de bravura e heroísmo, apresentando-se, assim, uma visão romântica do protesto escravo. O binômio senhor cruel/escravo rebelde substituiu o binômio senhor camarada/escravo submisso. Foram raras as abordagens que tiveram como objetivo perceber os cativos enquanto sujeitos das transformações históricas ao longo da escravidão. Amparada por modelos teóricos cristalizados, nos quais a escravidão era somente explicada pela violência e pelo controle senhorial, parte dessas interpretações relegou aos escravos o papel de figurantes. O protesto foi reduzido a mero processo de "reação" diante da crueldade e violência sistêmica. Valores, sociabilidades e mediações culturais foram pouco recuperados, visando a perscrutar as experiências escravas. Totalmente coisificado pela exploração do trabalho e pela violência física, o cativo - segundo alguns autores - só conseguia "humanizar-se" quando se revoltava, fugia e se refugiava nos quilombos. As fugas coletivas, as insurreições e os quilombos foram vistos como as formas quase que exclusivas denominadas generalizadamente de resistência e rebeldia. Diversos autores - desde a década de 1930 - procuraram analisar os quilombos no Brasil. Utilizando as categorias empregadas por João Reis para avaliar os estudos sobre as revoltas escravas na Bahia, podemos classificar tais interpretações em duas correntes: culturalista e materialista. As primeiras abordagens surgiram nos estudos afro-brasileiros dos anos 1930. Desdobrando os caminhos da escola de Nina Rodrigues, autores como Arthur Ramos, Edison Carneiro e, mais tarde, Roger Bastide difundiram as interpretações culturalistas sobre os quilombos brasileiros. O próprio Nina Rodrigues, já no início do século XX - tendo como referência os mocambos de Palmares -, ressaltava que os quilombolas, reproduzindo "as tradições da organização política e guerreira dos povos bantos" africanos, procuravam voltar "à barbárie africana". Nessas perspectivas culturalistas, quilombos representavam um fenômeno "contra-aculturativo", que tinha origem na "persistência da cultura africana", em resposta ao permanente processo de "aculturação" da sociedade escravista. Para Arthur Ramos, as comunidades de fugitivos e seus arranjos socioeconômicos tinham como objetivo fundamentalmente a recriação de "Estados africanos", significando "uma desesperada reação à desagregação cultural que o africano sofreu com o regime de escravidão". Estudioso das "culturas negras" nas Américas, Ramos avaliava que os africanos escravizados no Novo Mundo passaram por um processo de "aculturação negra", fenômeno de "adaptação" e "reação" culturais. A "adaptação" consistiu em que "as culturas negras combinaram-se a padrões de cultura branca" e a "reação" ocorreu "nos casos em que as culturas negras reagiram mais ou menos violentamente à aceitação dos traços de outras culturas". Tentava ele compreender - através do "método comparativo das culturas negras" - as origens e os padrões culturais africanos nas Américas. Nessa visão, os "quilombos e as insurreições negras" constituíam exemplos de um processo contra-aculturativo durante a escravidão: No Brasil, houve também reação, na aculturação negra, em dois casos onde o fenômeno pôde ser nitidamente observado: nas fugas negras dos quilombos e nos movimentos insurrecionais dos malês, na Bahia. No caso dos quilombos, tivemos um fato análogo aos dos negros fugitivos das Guianas. Unindo-se representantes do mesmo grupo de cultura (bantos, no quilombo dos Palmares) eles reagiram ao contato ("folga negro, branco não vem cá", como ainda hoje cantam os negros no auto popular dos quilombos) e mantiveram as suas culturas originárias: religião, tradições sociais, linguagem, cultura material. Enfatizando um quadro de "sobrevivências africanas" das "culturas negras" - a partir de um modelo teórico ainda pautado num "evolucionismo cultural" -, Ramos reduziu a compreensão dos quilombos ao caráter de "reação" e/ou "adaptação" sob o ponto de vista da cultura. As experiências em torno deles significavam as estratégias dos africanos na diáspora para preservar suas "culturas negras" longe da dominação dos padrões culturais dos senhores brancos. Em parte com base nas interpretações de Nina Rodrigues, as perspectivas antropológicas de Ramos ganharam força nos anos 1930 e 40. Diversos autores incorporaram suas abordagens sobre os padrões de "cultura negra" no Brasil. [...]