Trecho do livro OS PLANETAS

MODELOS DE MUNDOS Panorama planetário Pelo que me lembro, meu fetiche por planetas começou na terceira série, aos oito anos de idade - tão logo descobri que a Terra tinha irmãos no espaço, assim como eu tinha irmãos mais velhos no colégio e na faculdade. A presença de mundos vizinhos foi uma revelação ao mesmo tempo específica e misteriosa em 1955, pois, embora cada planeta tivesse um nome e um lugar na família do Sol, muito pouco se conhecia sobre qualquer um deles. Plutão e Mercúrio - como Paris e Moscou, só que ainda melhor - despertaram a minha imaginação infantil para utopias ultra-exóticas. Os poucos fatos inequívocos sobre os planetas sugeriam aberrações fantásticas, desde extremos insuportáveis de temperatura a deformações do tempo. Mercúrio, por exemplo, é capaz de dar uma volta em torno do Sol em apenas 88 dias, comparado com os 365 dias da Terra, e, com isso, um ano mercuriano transcorre, zunindo, em menos de três meses, mais ou menos como os "anos caninos" comprimem sete anos de experiência animal em um só ano de seu dono, justificando a vida lamentavelmente curta desses bichos de estimação. Cada planeta abria uma esfera própria de possibilidades, uma versão peculiar da realidade. Vênus supostamente ocultava pântanos luxuriantes debaixo de sua cobertura perpétua de nuvens, onde oceanos de petróleo, ou talvez de água efervescente, banhavam florestas tropicais repletas de vegetação amarelo-alaranjada. E opiniões como essas vinham de cientistas sérios, não de gibis ou de ficção sensacionalista. A ilimitada estranheza dos planetas era um contraste abrupto com o pequeno número deles e, para falar a verdade, a novena planetária ajudava a defini-los como grupo. Entidades corriqueiras aparecem-nos em pares ou dúzias, ou em quantidades terminadas em cinco ou zero. Os planetas, porém, eram nove e apenas nove. Nove - irregular, ímpar e invulgar como o próprio espaço cósmico - é uma quantidade que, não obstante, pode ser contada nas mãos. Em comparação com a tarefa de memorizar as 48 capitais dos estados americanos da época ou as datas importantes da história da cidade de Nova York, os planetas alentavam-nos com a possibilidade de memorizá-los em uma noite. Qualquer criança que decorasse os nomes dos planetas com a ajuda de alguma sentença mnemônica absurda - "Minha velha tia matava jacarés sem usar nenhum porrete", por exemplo - aprendia simultaneamente a sua progressão correta a partir do Sol: Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter, Saturno, Urano, Netuno, Plutão. A quantidade manejável de planetas fazia com que parecessem colecionáveis e motivou-me a organizá-los num diorama de caixa de sapato para a feira de ciências da escola. Reuni bolas de gude, de três-marias, de pingue-pongue e as famosas bolas pula-pula spaldeen com as quais nós, meninas, brincávamos durante horas na calçada. Pintei todas com têmpera e as pendurei na caixa usando limpadores de cachimbo e barbante. Meu modelo (que mais parecia uma casa de bonecas do que uma demonstração científica) não dava nenhuma noção real dos tamanhos relativos dos planetas ou das enormes distâncias entre eles. Para fazer a coisa certa, eu deveria ter usado uma bola de basquete para Júpiter, mostrando como ele sobrepuja todos os outros, e, em vez de uma caixa de sapato, a embalagem de papelão de uma lavadora ou geladeira a fim de melhor insinuar as dimensões grandiosas do Sistema Solar. Felizmente, meu grosseiro diorama, produzido com absoluta falta de habilidade artística, não chegou a destruir minha linda visão de Saturno, suspenso na perfeita simetria de seus anéis giratórios, nem a paisagem mutante de Marte, que nos relatos científicos dos anos 1950 era atribuída a ciclos sazonais de vegetação. Depois da feira de ciências, minha classe montou uma peça sobre os planetas: fiquei com o papel da "Estrela Solitária" porque o roteiro exigia que essa personagem usasse uma capa vermelha e eu tinha uma, que sobrara de uma fantasia de halloween. Como "Estrela Solitária", eu tinha de recitar um solilóquio sobre o quanto o Sol desejava ter companhia. Na peça, os planetas-atores, cada um com uma fala que revelava suas particularidades, logo demonstravam seu companheirismo juntando-se a mim. As atuações mais memoráveis da peça foram as de "Saturno", que rodopiava dois bambolês enquanto declamava, e da "Terra", uma menina rechonchuda e acanhada que, não obstante, era forçada a anunciar, como se fosse a coisa mais natural do mundo: "Minha cintura tem 40 mil quilômetros" (fazendo com que eu gravasse indelevelmente esse dado estatístico da circunferência do nosso planeta). O papel de "Estrela Solitária" ajudou-me a perceber a relação parental e mistagógica do Sol com os planetas. Não é à toa que chamamos nossa parte do universo de "Sistema Solar", onde a constituição e as características individuais de cada planeta são determinadas em grande parte por sua proximidade com o Sol. Eu excluíra o Sol de meu diorama porque não atinara com o seu poder (sem contar que isso teria me colocado um problema insolúvel de escala). Outro motivo de eu ter deixado o Sol de lado, e também a Lua, foi a brilhante familiaridade de ambos os astros, que parecia fazer deles componentes cotidianos da atmosfera da Terra, ao passo que os planetas eram vistos só em raras ocasiões (antes de irmos para a cama ou no céu ainda escuro da madrugada) e, portanto, mais enaltecidos. Num estudo do meio que fizemos ao Planetário Hayden, nós, garotos e garotas da cidade, pudemos ver um céu noturno idealizado, livre da luz ofuscante dos sinais de trânsito e outdoors de néon. Acompanhamos os planetas perseguindo-se uns aos outros no céu do domo do planetário. Testamos a força relativa da gravidade em balanças preparadas que mostravam quanto pesaríamos em Júpiter (180 quilos ou mais para um professor de tamanho normal) ou Marte (pesos-pena, todos nós). E nos embasbacamos diante de um meteorito de catorze toneladas que despencara inopinadamente sobre o vale Willamette, no Oregon - uma ameaça à segurança humana que poucos de nós tinham pensado em temer. Dizia-se, inacreditavelmente, que o meteorito de Willamette (ainda em exposição permanente no que é hoje o Rose Center for Earth and Space) era parte do núcleo de ferro e níquel de um antigo planeta que outrora orbitara em torno do Sol. Por algum motivo, esse mundo se estilhaçara havia bilhões de anos, lançando fragmentos à deriva no espaço. O acaso impelira esse pedaço em particular em direção à Terra, onde despencou no solo do Oregon a uma velocidade tremenda - queimando-se no calor do atrito e atingindo o fundo do vale com o impacto de uma bomba atômica. Ao longo do tempo, e com o meteorito imóvel durante éons, as chuvas ácidas daquela região escavaram grandes buracos em seu corpo carbonizado e oxidado. Aquela foi uma cena primordial que perturbou minhas inocentes idéias planetárias, pois ali estava um invasor maligno e escuro, que certamente convivera no espaço com hordas de outras rochas e pedaços de metal extraviados, e que poderia atingir a Terra a qualquer momento. O Sistema Solar, que até então fora um lar de regularidade e precisão exemplares, transformou-se subitamente num lugar desordenado e perigoso. O lançamento do Sputnik em 1957, quando eu tinha dez anos, me deixou apavorada. Como demonstração de poderio militar estrangeiro, conferiu um novo significado aos exercícios de treinamento contra ataques aéreos que eram feitos em todas as escolas na época, em que tínhamos de nos agachar debaixo das carteiras, de costas para as janelas, em prol da nossa suposta proteção. Era evidente que tínhamos motivos para sentir mais pavor de outros seres humanos enfurecidos do que de rochas espaciais indisciplinadas. Durante toda a minha adolescência e início da idade adulta, enquanto os EUA realizavam o sonho de um jovem presidente de enviar um foguete à Lua, mísseis clandestinos em silos de lançamento mantinham acesos os pesadelos coletivos. Porém, quando os astronautas do projeto Apollo trouxeram o último lote de pedras lunares em dezembro de 1972, espaçonaves pacíficas e auspiciosas já haviam pousado em Vênus e Marte, e outra, a Pioneer 10, encontrava-se a caminho de Júpiter. Ao longo das décadas de 1970 e 1980, raros foram os anos sem alguma excursão não tripulada a outro planeta. Imagens irradiadas de volta à Terra por exploradores robóticos pintavam-nos detalhe após detalhe dos rostos até então amorfos dos planetas. E entidades inteiramente novas vieram à luz quando as espaçonaves se depararam com literalmente dezenas de novas luas em Júpiter, Saturno, Urano e Netuno, além de múltiplos anéis em torno desses quatro planetas. Embora Plutão continuasse inexplorado, tido como distante e inacessível demais para visitarmos, sua lua, igualmente inesperada, foi descoberta por acidente em 1978, após cuidadosa análise de fotografias tiradas por telescópios terrestres. Se minha filha, que nasceu em 1981, quisesse construir seu próprio diorama do Sistema Solar revisto e expandido ao completar oito anos, precisaria de vários punhados de jujubas e dropes para modelar os acréscimos recentes. Meu filho, três anos mais jovem, talvez decidisse fazer o seu modelo diretamente no computador. A despeito da população crescente do Sistema Solar, o número de planetas permaneceu estável em nove, pelo menos até 1992. Naquele ano, um pequeno e escuro corpo celeste, independente de Plutão, foi detectado na periferia do Sistema Solar. Descobertas semelhantes se sucederam e o número total de forasteiros diminutos chegou a setecentos na década seguinte. Essa abundância de minimundos levou os astrônomos a perguntar se Plutão deveria continuar sendo considerado um planeta ou se seria mais acertado reclassificá-lo como o maior dos "objetos transnetunianos". (O Rose Center já exclui Plutão do seu rol planetário.) Em 1995, apenas dois anos depois que o primeiro dos muitos vizinhos de Plutão foi descoberto, algo ainda mais extraordinário veio à tona: um novo e autêntico planeta - de outra estrela. Há muito que os astrônomos suspeitavam que outras estrelas afora o Sol poderiam ter sistemas planetários próprios, e agora o primeiro deles surgia na estrela 51 Pegasi, na constelação do cavalo alado. Em poucos meses, outros exoplanetas - como os novos planetas extra-solares foram logo batizados - surgiram em estrelas como Upsilon Andromedae, 70 Virginis b e PSR 1257+12. Pelo menos 160 outros exoplanetas foram identificados desde então e refinamentos nas técnicas de descoberta prometem revelar muitos outros no futuro próximo. Na verdade, o número de planetas existentes apenas em nossa Via Láctea pode exceder seu complemento de 100 bilhões de estrelas. Meu velho e conhecido Sistema Solar, outrora considerado único, tornou-se hoje não mais que o primeiro e mais conhecido exemplo de um gênero bastante popular. Contudo, até o momento, nenhum dos exoplanetas foi visto diretamente através de um telescópio, de modo que os descobridores podem somente imaginar sua aparência. Só conhecemos seu tamanho e dinâmica orbital. A maioria deles são bons páreos para a corpulência de Júpiter, uma vez que planetas grandes são mais fáceis de encontrar do que os pequenos. Na verdade, a existência dos exoplanetas só pode ser deduzida do efeito que exercem sobre a estrela-mãe - que ou oscila ao ser submetida à atração gravitacional de companheiros invisíveis ou é periodicamente obscurecida quando o planeta passa diante dela, bloqueando sua luz. Exoplanetas pequenos, do tamanho de Marte ou Mercúrio, devem necessariamente orbitar sóis distantes, mas, sendo pequenos demais para perturbar uma estrela, escaparam de ser detectados à distância. Os cientistas planetários já se apropriaram do nome "Júpiter" como termo genérico, de modo que "um júpiter" significa "um grande exoplaneta", e a massa de um exoplaneta excepcionalmente grande pode ser quantificada como "três júpiteres" ou quatro. Do mesmo modo, "uma terra" passou a representar a meta mais árdua e mais desejável dos caçadores de planetas contemporâneos, que vivem concebendo novas maneiras de investigar a galáxia em busca de pequenas e frágeis esferas nos matizes prediletos de azul e verde que aludem a água e vida. Quaisquer que sejam as preocupações cotidianas que dominem nossa mente na aurora deste século, a contínua descoberta de sistemas planetários extra-solares define o nosso momento na história. E o nosso Sistema Solar, em vez de ter sua importância rebaixada como apenas um dentre muitos outros, vai se revelando o modelo para compreendermos uma exuberância de outros mundos. Mesmo que os planetas se desnudem à investigação científica e proliferem por todo o universo, eles ainda retêm a carga emocional da longa influência que tiveram em nossa vida e de tudo que já representaram nos céus da Terra. Deuses de antanho, e também demônios, esses vagantes noturnos foram outrora - e ainda são - fontes de uma luz que nos inspira, o horizonte distante da paisagem cósmica do universo que é a nossa casa.