Trecho do livro GOYA

1. Ao encontro de Goya Eu vinha pensando sobre Goya e olhando suas obras havia muito tempo, de quando em quando, antes do acontecimento dramático que me iluminou para escrever este livro. Conheci algumas de suas gravuras a água-forte quando era estudante secundário na Austrália, e uma delas foi a primeira obra de arte que comprei - naqueles tempos remotos compreendi que críticos que colecionam obras de arte se arriscam em território eticamente duvidoso. Minha compra foi um exemplar de segunda, em mau estado, do Capricho 43, El sueño de la razón produce monstruos - "O sono da razão produz monstros" - aquela imagem inefavelmente comovedora do intelectual atormentado por dúvidas e por terrores noturnos, curvado sobre a escrivaninha, e com corujas girando sobre sua pobre cabeça perplexa, como os morcegos que eu conhecia tão bem da minha infância. O marchand pedia 10 mil libras, e eu a consegui por 8 mil, e tive de completar as últimas libras esterlinas com moedas, incluindo algumas de seis pence. Foi a primeira gravura a água-forte que eu possuí, mas certamente não a primeira que eu havia visto. Minha família possuía algumas. Elas eram mantidas na despensa, viradas para a parede, ícones de uma leve indecência - picante para sua época - no exílio. Suponho que meu avô as comprara, mas elas haviam ofendido o puritanismo de meu pai. Essas gravuras eram obra de um artista bastante famoso na Austrália, e desconhecido por completo fora dela, um velho polímata medíocre, furiosamente enérgico e carismático chamado Norman Lindsay, que acreditava que era o principal rival de Picasso, e cujos bizarros nus zombeteiros - algo entre Aubrey Beardsley e Antoinne Watteau - faziam parte da vida privada e imaginativa de todos os advogados, ou donos de pub australianos. Esse foi o motivo pelo qual meu ser adolescente se encantou pelas gravuras: excitação. A cultura popular e as vagas piadas sexuais - "Venha e veja as minhas gravuras" - assim o diziam. Todavia, seja lá o que estivesse na mente de Goya, não era aquilo. E à medida que o conheci melhor, através de reproduções em livros - ninguém exibia Goyas verdadeiros na Austrália tantas décadas atrás; vislumbrar El sueño de la razón foi uma sorte inesperada -, eu compreendi, para meu assombro, o extremado sentido trágico que um homem poderia registrar em pequenos pedaços de papel. Por que fue sensible, a mulher desesperada na escuridão de sua cela, culpada e sempre sozinha, esperando a morte pela qual o Estado vingará a morte de seu marido. ¡ Que se la llevaron! - "Eles a levaram!" -, a jovem mulher sendo levada à força por bandidos, possivelmente um padre entre eles, seus sapatinhos estendidos absurdamente para cima, enquanto os raptores se curvam em silêncio no seu trabalho. Tántalo - Tântalo -, um homem envelhecido, se balançando para a frente e para trás, ao lado do cutelo de uma pirâmide, num desespero profundo demais para palavras, e, atravessado sobre seus joelhos, o cadáver de uma mulher bela e muito mais jovem, cuja paixão não pôde ser estimulada por sua impotência. Eu não poderia imaginar me sentir como aquele homem - aos catorze anos, virgem e cheio de testosterona reprimida, eu nem mesmo compreendi que a impotência pudesse ocorrer, mas Goya me fez senti-la. Como alguém poderia fazê-lo? Que desejo ardente era aquele que eu não conhecia, mas ele sim? E depois havia a Igreja, a ansiedade dominante na vida de Goya, e na minha. Na Austrália, no começo dos anos 1950, ninguém que eu conhecesse teria presumido criticar a Sagrada Igreja Católica Apostólica Romana com a ferocidade e o zelo que Goya imprimiu à tarefa no final do século XVIII. Na minha infância, o catolicismo inteiro era de direita, conservador e histericamente subserviente ao mais reacionário e autoritário dos papas recentes, Pio XII, com seu culto descabido à Virgem de Fátima e à Assunção de Maria. Na época de Goya, a obsessão com a autoridade papal e o concomitante poder da Igreja era ainda maior, e criticá-la na Espanha não era isento de risco. Eu lembro como meus professores jesuítas (homens muito sábios) costumavam dizer, "Nós não tentamos mais justificar a Inquisição, somente pedimos que a analisem no seu contexto histórico" - como se a espantosa barbaridade de uma série de praxes desculpasse, ou pelo menos suavizasse, os horrores da outra; como se enforcar e esquartejar pessoas por motivos seculares tornasse de algum modo compreensível o ato de queimar uma velha mulher, numa fogueira em Sevilha, porque seus vizinhos testemunharam aos inquisidores do Santo Ofício que ela se acocorara, cacarejando, e pusera ovos com desenhos cabalísticos. Parecia a nós, meninos estudantes nos anos 1950, que, por mais terríveis e escabrosamente implementados que tenham sido, os terrores de Torquemada e do Santo Ofício dificilmente poderiam ser comparados com os do gulag e com os métodos violentos de persuasão da Coréia comunista. Mas, de qualquer modo, as gravuras de Goya pareceram tenebrosas e adicionaram mais uma alavanca na fenda que por fim destroçaria minha fé católica. Assim, pode-se dizer que Goya - em seus incansáveis ataques (embora, como veremos, já de certo modo ultrapassados) à Inquisição, à avareza, à cobiça e à indolência dos monges, bem como à natureza utilitária da vida monástica - teve um efeito espiritual sobre mim, e foi o único artista a fazê-lo, em termos de religião formal. Ele ajudou a me tornar um anticatólico, um passo essencial em meu crescimento e educação (e com tanta iluminação espiritual quanto eu possa tentar afirmar), e sempre fui grato por isso. A noção de que, entre a quantidade de artistas de alguma importância verdadeira na Europa no final do século XVIII, havia pelo menos um homem que podia pintar com tal realismo e ceticismo que resistiu aos sofrimentos e ao desterro que acabou se transformando em seu exílio final foi confirmada. Artistas raramente são heróis morais, e não se deve esperar que o sejam, não mais que os encanadores ou os criadores de cachorros. Goya, que não era nem louco nem masoquista, não tinha tendência ao martírio. Mas algumas vezes ele foi heróico, especialmente em suas relações conflitantes com o último monarca Bourbon, ao qual serviu, o odioso e arbitrariamente cruel Fernando VII. Sua obra asseverou que homens e mulheres deveriam ser livres da tirania e da superstição; que a tortura, o estupro, a pilhagem, o massacre, esses permanentes apoios do poder, tanto na arena civil como na religiosa, eram intoleráveis; e que não se podia confiar naqueles que os toleravam ou os empregavam, não importa o quão sedutores pudessem parecer os toques da corneta ou os juramentos de compromisso de lealdade. Encontrar essa voz - tão sutilmente elaborada e tão crua, pública, mas estranhamente privada - falando-me, aos quinze anos, com tanta insistência e urgência, de um tempo remoto e de um país onde jamais estivera, e numa língua da qual eu não falava sequer uma palavra, não foi pouca coisa. Eu tive a sensação de uma mensagem transmitida com uma urgência terrível, cochichada em meu ouvido: essa é a verdade, você precisa conhecê-la, eu passei por tudo isso. Ou, como Goya riscou embaixo das lâminas de cobre, em Los desastres de la guerra: "Yo lo vi", "Eu o vi". Aquele "o" era inacreditavelmente estranho, mas o "yo" o tornava verdadeiro. Um europeu poderia não ter reagido ao retrato da guerra feito por Goya dessa mesma maneira; essas cenas de atrocidade e de miséria teriam sido mais familiares, mais próximas das experiências vividas. A guerra fez parte do destino comum de tantos adolescentes ingleses, franceses, alemães, italianos e balcânicos, não era somente um quadro numa moldura. A casa destroçada, o corpo desmembrado, a mulher urrando em sua dor implacável sobre o cadáver de seu bebê, a forma banal do bigode do estuprador num uniforme, assomando repentinamente à porta, o padre (ou rabino) trespassado por uma lança, como um porco. Essas eram coisas que aconteciam na Europa, jamais conosco, e nossa imprensa não publicava essas fotografias. Nós, meninos australianos, cuja infância transcorreu nos anos 1940, não tivemos exibição permanente de atrocidade, nem filmes do terror da vida real nos entrando na cabeça. Como nossos semelhantes norte-americanos, não tínhamos experiência de bombardeios, de metralhadoras, de gás, de invasão inimiga ou de ocupação. De fato, nós, australianos, éramos bem mais inocentes sobre essas coisas, porque não tínhamos nada em nossa história comparável aos massacres fratricidas da Guerra Civil Americana, que naquela época estava distante da experiência dos norte-americanos contemporâneos, mas decididamente não fora de sua memória coletiva. Exceto por um ataque aéreo japonês contra uma remota cidade no norte do país, Darwin, um lugar onde poucos australianos já estiveram, nossa terra era tão virginal quanto a da América do Norte. E assim o poderoso ciclo das gravuras de guerra de Goya, pouquíssimo conhecido no país da minha infância, veio de um lugar tão desconhecido e tão obscuro, tão sem relação com a vida que era vivida naquele útero peculiar de não-história, abaixo do Equador, que exigiu um escrutínio especial. Não era o Muss es sein - "Deve ser assim? Deve ser assim" - de Beethoven, escrito no topo do último movimento de seu Quarteto para Cordas em Fá Maior, em 1826. Ao contrário, "Pode ser assim? Pode ser assim!" - um sufocado grito prolongado de reconhecimento diante da pura monstruosidade encharcada de sangue do mundo. Antes de Goya, nenhum artista havia usado esse tema com tanta profundidade. As batalhas eram assuntos formais, com heróis idealizados dilacerando uns aos outros, mas morrendo mortes nobres e até mesmo elegantes: o cadáver de Sarpedon sendo levado de Tróia para os campos vastos e férteis de uma vida depois da morte em Lícia, por Hipnos, Tânatos, o Sono e a Morte. Ou o general Wolfe, britânico, expirando instrutivamente nas colinas de Québec, estabelecendo um padrão de etiqueta para o sacrifício e a morte nobre para seus oficiais, e até mesmo para um índio. Não o massacre irracional e terrível que é a realidade da guerra, antiga e moderna, como Goya quis que todos nós soubéssemos. Existirá uma pessoa cuja vida tenha sido vivida em torno das artes visuais, como a minha tem sido há cerca de 45 anos, que não tenha pensado sobre Goya? No século XIX (como em qualquer outro) existiram certos artistas cujas realizações foram cruciais para uma avaliação dos nossos atos talvez menos urgentes. Não conhecê-los é ser ignorante, e não podemos superar suas percepções. Eles conferiram um rosto à sua época, ou melhor, mil rostos. Sua experiência observa a nossa, e pode flanqueá-la com a intensidade de seu sentimento. Um ensaísta sobre música que nunca pensou sobre Beethoven, ou um crítico literário que jamais leu os romances de Charles Dickens - o que valeriam as opiniões de pessoas como essas, que impulso poderiam ter adquirido? Pessoas assim não podem ser levadas a sério. Goya foi um desses artistas seminais. A principal razão que me fez começar a pensar em Goya com alguma regularidade reside na cultura peculiar cuja extremidade eu encontrei, quando fui viver e trabalhar nos Estados Unidos em 1970. Essa cultura tinha sido quase eviscerada de toda representação humana. Naturalmente tinha bastante presença humana, mas essa era outra questão. Aqui eram os Estados Unidos, rasgados a ponto de completa desolação, sobre o conflito doloroso mais amargo no qual o país havia embarcado desde a Guerra Civil. O Vietnã estava destroçando o país, e onde estava a arte que registrava a angústia norte-americana? Bem, havia arte - a maior parte dela do tipo medíocre, com a honrosa exceção de Leon Golub, o tipo de arte de "protesto", mais notável por sua polêmica do que por suas qualidades estéticas. Mas, em geral, não havia nada, absolutamente nada que sequer chegasse perto da realização dos Desastres de la guerra, de Goya, aquelas gravuras de partir o coração, nas quais o artista deu testemunho dos fatos quase inomináveis da morte, na insurreição espanhola contra Napoleão e, fazendo isso, se tornou o primeiro repórter visual de conflitos armados moderno. Nem havia nenhum quadro (menos ainda alguma escultura) produzido por um artista norte-americano que pudesse ser comparado com o quadro de Goya sobre a execução dos patriotas espanhóis no dia 3 de maio de 1808. Claramente, havia algumas coisas que a indignação moral não poderia fazer por si mesma. O que faltava à modernidade, e que Goya possuíra? Ou essa era a questão errada a propor? Ao contrário, será que uma era de massificação da mídia, nossa própria época, tão sobrecarregada de imagens visuais, que todas elas eram substituíveis num certo sentido, uma época em que poucas coisas se destacavam por um tempo maior, em meio à bruma visual prevalecente, de algum modo havia obscurecido e eliminado uma parte da nitidez memorável do ícone visual que tivera outrora? Nem é bom pensar. Mas o pensamento persistiu. Não foi destruído nem resolvido. Claro, Goya foi uma exceção. Parece que os gênios (uma palavra que, a despeito de todos os prós e contras da crítica modernista, deve sobreviver porque não existe outra que se adapte a certos casos de exceção humana) são destinados a sê-lo. Mas o fato de que, no final do século XX, não tivemos (como ainda não temos) uma pessoa que houvesse criado com sucesso uma arte eloqüente e moralmente urgente a partir do desastre humano nos diz algo sobre as frouxas expectativas do que a arte pode fazer. Desse modo, como alguém conseguiu fazê-lo com tanto sucesso há dois séculos? Não existe uma resposta conveniente, nenhuma maneira de acomodar um mistério como esse, que não é nada menos que o mistério do próprio sentido trágico. Não é verdade que eventos calamitosos se destinam, mesmo que provavelmente, a provocar a criação de grandes imagens trágicas. Quase sessenta anos depois que as portas do compartimento de bombas do Enola Gay se abriram para liberar Little Boy, e um novo nível de conflito humano, sobre Hiroshima, ainda não existe nenhuma obra de arte grandiosa que tenha marcado o começo da era nuclear. Nenhum quadro ou escultura esteticamente significativa homenageia Auschwitz. É ainda mais improvável que um evento menor, ainda que socialmente traumático, como a emoção do World Trade Center, em setembro de 2001, estimulará a criação de alguma obra de arte memorável. O que nós lembramos são as fotografias, que não podem ser superadas. Goya foi entusiasticamente um artista deste mundo. Ele não parece ter tido ímpetos metafísicos. Ele poderia fazer o paraíso, mas era, se tanto, uma simples tarefa. Os anjos que ele pintou nas paredes de San Antonio de la Florida, seu grande ciclo mural de 1798, são louros deslumbrantes com asas diáfanas, primeiro, e mensageiros da graça do céu, somente em segundo lugar. Eles jamais portariam tanta graça divina se não fossem desejáveis. Para ele, ao que parece, Deus escolheu se manifestar à humanidade através da criação dos prazeres episodicamente vastos do mundo. Goya foi um poderoso celebrador do prazer. Sabe-se que ele amava tudo que era sensual: o cheiro de uma laranja ou da axila de uma menina; o cheiro leve do tabaco e o ressaibo do vinho; os ritmos zangarreados e agudos de uma dança de rua; o jogo da luz sobre o tafetá, a seda transparente, o simples algodão; o arrebol da tarde se expandindo num céu de uma noite de verão, ou a centelha fosca de um coice de nogueira bem entalhada de uma espingarda de caça. Não é preciso olhar longe por suas imagens de prazer; elas impregnam sua obra, dos primeiros desenhos de tapeçaria que fez para a família real espanhola - as majas e majos fazendo piquenique e dançando nas margens verdes do Manzanares, fora de Madri, as crianças brincando de toureiros, as multidões excitadas - até a sexualidade desafiadora do quadro La maja desnuda. Mas ele foi também um dos poucos grandes narradores visuais da dor física, do ultraje, do insulto ao corpo. E nisso ele foi tão bom quanto Matthias Grünewald, o Mestre do Retábulo de Isenheim. Não é de modo algum inevitável que um artista seja tão bom pintando a dor quanto o prazer. Um artista pode lidar com as imagens de uma, sem sequer sugerir convincentemente o outro, e muitos foram assim. Hieronymus Bosch, o místico holandês do século XV, cujos quadros foram colecionados tão avidamente pelo sombrio rei espanhol Felipe II e que, venerados nas coleções reais, com o tempo exerceriam tanta influência sobre um fascinado Goya, não foi - a despeito do título de seu quadro mais famoso, O jardim das delícias terrenas - especialmente bom retratando as maravilhas da sensualidade. Seus infernos são sempre genuinamente assustadores e críveis, mas é difícil acreditar nos céus que pintou. O problema exatamente oposto emerge com seu grande antítipo barroco, Peter Paul Rubens. Observe uma Crucificação de Rubens, aquele corpo nobre e musculoso martelado com degradantes pinos de ferro na madeira fatal, e dificilmente sentirá que existe morte ali: sua pura fartura física, aquela abundância de energia desafia e, num certo sentido, derrota a própria idéia do tormento. As almas condenadas de Rubens são atores, uivando sua paixão para os farrapos; não se pode sentir sua dor, exceto como uma espécie de proposição teológica. A retórica esmaga e desloca a realidade (se é que se pode falar de "realidade" nesse contexto). Mas Goya foi verdadeiramente um realista, um dos primeiros e maiores na arte européia. Uma vez tive a ilusão de que o havia conhecido. Isso foi depois do acidente de carro em 1999. O impacto esmagou meu corpo, como o de um sapo; uma parte tão grande da estrutura do meu esqueleto do lado direito foi quebrada, deslocada ou pulverizada que minhas chances de sobrevivência foram consideradas extremamente baixas. Os médicos e enfermeiras no Royal Perth hospital e, depois, no St. Vincent Hospital, em Sydney, empenharam-se intensamente para que eu sobrevivesse, mas demorou quase sete meses de hospitalização, mais de doze cirurgias, mais dor do que eu jamais imaginara ser possível e, no início, cerca de cinco semanas em coma, numa unidade de tratamento intensivo. A peculiaridade do tratamento intensivo é que, enquanto aqueles que nada sabem sobre ele assumem que o paciente está inconsciente, a consciência - não do ambiente imediato onde se encontra, ou das pessoas entrando e saindo - desse paciente é estranhamente afetada pelas drogas, pela intubação, pelas luzes violentas e contínuas, e por sua própria imobilidade. Esse somatório provoca o aparecimento de prolongados sonhos narrativos, ou alucinações, ou pesadelos. Que são muito mais pesados e mais envolventes que os sonhos normais quando se dorme, e têm a característica horrenda da inevitabilidade; não há nada fora deles, e o tempo é inteiramente perdido em seu emaranhado. A maior parte do tempo, eu sonhei com Goya. Ele não era o artista real, é claro, mas uma projeção dos meus medos. O livro que eu pretendera escrever sobre ele havia se chocado contra a parede; eu havia estado bloqueado durante anos, antes do acidente. No meu sonho, eu era jovem e algo parecido com um desordeiro de rua - um majo, vestido, depois eu compreendi, com a jaqueta de toureiro de seu auto-retrato (p. 2) de 1794-5. Ele tinha um grupo de amigos ao seu redor, majos companheiros desdenhosos, e todos me julgaram como um intruso ridículo, tão fora da sua profundidade, que chegava a ser como um palhaço. Nosso encontro aconteceu nas sombrias celas cavernosas de um asilo de loucos, ou de um hospital para doentes atacados pela peste - outra locação familiar dos quadros de Goya. Mas essas salas, com sua luz opaca e seus sons reverberantes, eram também um aeroporto: o aeroporto, por alguma razão inescrutável, de Sevilha (Sevilha teve pouca participação na vida de Goya; ele jamais viveu ou trabalhou ali, embora tivesse feito um grande quadro de suas santas protetoras - Justa e Rufina - para a catedral da cidade). Meu único desejo, aparentemente minha única esperança, era escapar dali e, de algum modo, me enfiar num vôo doméstico da Iberia que me levasse para longe daquele lugar horrendo, onde eu nada tinha a fazer. As pedras eram antigas, mas o mobiliário era opressivamente novo e barato: mesas de fórmica, estranhos emaranhados de cortinas pegajosas de plástico, e portões com scanners eletrônicos de segurança. Goya se deliciava em me fazer caminhar ou, melhor, cambalear e rastejar, através dos scanners, que emitiam repetidos guinchos e zumbidos de alarme. Então, ele e seus amigos me rodavam e me faziam voltar para trás, e se arrebentavam de rir diante dos esforços desse inglés asqueroso para fazer o impossível e se libertar. Era impossível porque eles tinham amarrado uma bizarra estrutura de metal na minha perna direita, que me impedia de passar através de uma porta, ou de rastejar através de uma das brechas tentadoras nas paredes externas da prisão-aeroporto. A estrutura metálica tinha o peso tosco de uma peça de ferro rural do século XVIII, mas era feita de aço inoxidável altamente polido e de outro metal, que eu supus que fosse titânio. Isso, pelo menos, tinha alguma correspondência com a realidade. Os médicos do Royal Perth Hospital tinham adaptado à minha perna direita, cuja tíbia, fíbula, junta do joelho e fêmur haviam sido pulverizados pela colisão, um aparelho terapêutico chamado suporte Isikoff. A perna inteira foi envolta por anéis de plástico rígido, com pinos agudos enfiados ao longo do membro: esses pinos foram aparafusados através da carne nos pedaços quebrados dos ossos, e os mantinham numa relação espacialmente correta, um com o outro, para permitir o começo do lento processo de consolidação óssea. Eu teria que usar essa prótese durante vários meses. Em meu sonho, ou alucinação, ela se transformou no dispositivo para a restrição e o tormento que Goya tinha me infligido. Não é preciso ser Freud para reconhecer o significado dessa visão bizarra e obsessiva. Eu tinha ambicionado "capturar" Goya por escrito e, em vez disso, ele me aprisionara. Meu entusiasmo ignorante havia me arrastado para uma armadilha, da qual não havia uma fuga evidente. Não somente não poderia fazê-lo; meu objeto sabia disso, e achava minha incapacidade histericamente engraçada. Havia uma única maneira de escapar dessa relação humilhante, que era destroçá-la. Ou assim pareceu. Através de toda a dor e confusão física, Goya assumira uma tal importância na minha vida subjetiva que, mesmo se eu pudesse, ou não, tratá-lo com a correção merecida no que escrevesse, não poderia desistir dele. Foi como dominar e vencer o bloqueio de um escritor, através da explosão do edifício em cujo corredor ele havia ocorrido. Por que ele pareceu tão urgente? Eu não poderia me imaginar tendo alucinações dessa maneira sobre Delacroix ou Ingres, cuja obra eu também adoro. Mas muitas pessoas, eu mesmo incluído, pensam em Goya como parte da nossa própria época, quase tão nosso contemporâneo quanto Picasso, igualmente morto: um "artista moderno". Goya parece ser uma verdadeira figura axial, a última do que estava acabando, e a primeira do que estava por chegar: o último Grande Mestre e o primeiro Modernista. Ora, é verdade que num sentido estritamente existencial isso é uma ilusão. Nenhuma pessoa "pertence" a nenhuma época, além da sua própria. Existem elementos modernistas em outros artistas também; o fato é que em Goya eles são mais vívidos, mais pronunciados do que em seus contemporâneos. Não existe nada "moderno" em Anton Raphael Mengs, o pintor mais importante da corte de Carlos III, em Madri. Seria difícil encontrar traços de modernidade naquele pintor maravilhosamente inventivo e jovial, Giambattista Tiepolo, que precedera Goya na corte espanhola. Mas o tipo de modernismo que quero especificar não é uma questão de inventividade. Tem relação com uma atitude irreverente que questiona a vida: com um ceticismo persistente que enxerga através das estruturas oficiais da sociedade, e que não presta uma homenagem manifesta à autoridade, seja a da Igreja, a do monarca ou a do aristocrata; que tem a tendência, acima de tudo, a não dar valor a pouco, e a buscar uma atitude continuamente realista em relação a seus temas e às pessoas que retrata; a ser, como Lênin observaria em Zurique muitos anos depois, e num contexto social diferente, "tão radical quanto a própria realidade". Poderia ser dito, por exemplo, que Goya foi um homem do Velho Mundo, porque ele foi muito claramente fascinado pela feitiçaria e absorvido pelas antigas superstições que envolviam o culto espanhol às feiticeiras. Ele ilustrou esse fascínio de maneira reiterada, não somente na série monumental e fantasticamente criativa das gravuras satíricas conhecidas como os Caprichos, mas num número razoável de seus quadros, incluindo as Pinturas negras, profundamente enigmáticas, que ele fez para decorar as paredes de seu último lar espanhol, a Quinta Del Sordo, do outro lado do rio, em Madri. Poderia ser dito, então, que a feitiçaria foi uma presença contínua na vida imaginativa de Goya. Mas foi a própria feitiçaria que tanto o fascinou - a prática do encantamento, a magia branca e negra agindo sobre a realidade, vivenciada por Goya como um fato da vida no mundo real - ou foi a peculiaridade da crença social, que perturbava um artista racionalista como o vestígio de um mundo que era melhor sem essas superstições? Afirmação ou denúncia? Ou (uma terceira possibilidade) ele considerava a feitiçaria como um surrealista poderia enxergá-la muito tempo depois, como um anacronismo estranho e extraordinariamente curioso, que testemunhava uma irracionalidade humana incorrigível, atávica, teimosa e, por conseguinte, maravilhosa? Mas ele também foi um homem do Novo Mundo que estava chegando, cujo projeto grandioso e difuso os ingleses chamaram de Iluminismo, os franceses de éclaircissement [esclarecimento], e que os espanhóis denominaram ilustración. Essa foi a corrente racionalista e cética de pensamento que fluíra através dos Pireneus para a Espanha. Sua fonte original foi a obra do inglês John Locke. Mas sua influência imediata sobre os intelectuais espanhóis veio da França: das Cartas persas (1721) de Montesquieu, de Voltaire, Rousseau e da gigantesca Enciclopédia, de Denis Diderot, compêndio das idéias do século XVIII, que apareceu em seqüência de 1751 a 1772. Os amigos de Goya eram ilustrados, homens e mulheres do Iluminismo. Ele pintou seus retratos e os de suas mulheres, filhos e amantes. Ao mesmo tempo, também pintou pessoas que eram bastante não ilustradas, os representantes dos regimes tradicionais da Igreja e do Estado, algumas vezes poderosos. Goya costumava pintar de acordo com as comissões, ou encomendas. Existe pouco sinal de preferência ideológica ou patriótica em sua escolha de temas. Mesmo uma lista parcial dos clientes de Goya, antes da derrota de Napoleão na Espanha, mostra uma distribuição bastante equilibrada de opiniões políticas entre os conservadores espanhóis, os liberais patriotas espanhóis e os simpatizantes franceses. Na primeira categoria, aqueles que ele pintou incluem a duquesa d'Abrantès, Juan Agustín Ceán Bermúdez, o conde de Fernán Núnez, Ignácio Omulryan e, naturalmente, Fernando VII. Na segunda, havia Jovellanos, o ator Isidoro Máiquez e aquele vigoroso defensor de Zaragoza, José Palafox. Na terceira, o padre Juan Antonio Llorente e o conde de Cabarrús - para não mencionar o feroz ultrabonapartista, embaixador da França na Espanha, o jovem Ferdinand Guillemardet. Mas, fazendo um balanço, vê-se que ele certamente pertencia ao grupo ilustrado, e, se pudesse existir qualquer dúvida, ela seria dispersada por suas obras gráficas, especialmente os Caprichos. A maioria dos artistas espanhóis que foram contemporâneos de Goya - Agustín Esteve, Joaquín Inza, Antonio Carnicero, entre outros - não deixou nenhum traço de opinião sobre a sociedade e a política em suas obras. Eles foram artesãos; retrataram seus semelhantes, fizeram o trabalho que se esperava que fizessem, e nada mais. Goya foi uma criatura diferente; ele não podia ver e vivenciar nada sem formar alguma opinião a respeito, e essa opinião era mostrada em seu trabalho, freqüentemente com extrema paixão. Isso também fez parte de sua modernidade, e é uma das razões pelas quais ele ainda parece tão próximo de nós, embora estejamos separados por um tempo tão longo.