Trecho do livro TODA TERÇA

1. - Outro dia sonhei que atravessava o deserto do Atacama, horas e horas atravessando o Atacama, ao meu lado no carro, dirigindo, alguém que eu não conseguia reconhecer. Alguém que eu conhecia, eu tenho certeza, mas o rosto, por mais que eu tentasse, o rosto era apenas um esboço, um borrão. Lembro que eu não queria estar ali, eu queria qualquer outra coisa, sei lá, ir ao cabeleireiro, ao cinema, mas por algum motivo eu estava ali, atravessando o Atacama, e isso me desesperava. - Te desesperava, mas por quê? Otávio me olhava com interesse, aliás, nunca ninguém havia demonstrado tanto interesse pelas minhas palavras como Otávio, para ele tudo meu era importante, o que eu dizia, o que eu deixava de dizer, o que eu pensava, o que eu deixava de pensar, o que eu gostava, o que eu não gostava, cada gesto, cada detalhe. Tudo ele percebia, tudo ele ia guardando como se fossem informações essenciais, indispensáveis. Sorte a minha ter encontrado um homem assim, ainda por cima alto, bonito, jovem até, pelos meus cálculos não mais que quarenta, quarenta e cinco anos. Vestia-se com elegância, uma elegância blasé, eu diria, como se ser elegante fosse sua característica mais natural, como se ser elegante fosse algo assim, inevitável. Otávio era insuportavelmente elegante e parecia envolto numa aura de complacência e serenidade, essa aura que carregam as pessoas que, mesmo nas piores circunstâncias, permanecem impávidas, o mundo se desintegrando à sua volta, e elas ali, impecáveis, como se tudo não passasse de uma leve brisa, do vai-e-vem de um leque, algo que por um lado me atraía mas por outro me intimidava. A verdade era que ele me intimidava, apesar do interesse, da atenção ininterrupta que me dedicava, da sensação de que ele era a pessoa mais importante da face da Terra. Apesar disso, apesar de tudo, Otávio me intimidava. Talvez os seus cabelos bem penteados, suas roupas recém-passadas, aquela maneira de sentar-se, tão correta e ao mesmo tempo tão à vontade. Às vezes eu me pegava em estranhos exercícios mentais na intenção de rebaixá-lo, de torná-lo um pouco mais acessível, mais real, exercícios que consistiam basicamente em imaginá-lo em situações pouco favoráveis ou até mesmo embaraçosas. O problema era que, antes mesmo que essas imagens chegassem a se formar, vinham outras, muito mais poderosas, que se sobrepunham, no melhor momento, ou, talvez, no pior momento, intervalo, e novamente Otávio, perfeito, inabalável. Não tinha jeito, ao seu lado eu sempre me sentiria inadequada, insignificante, uma coitadinha, como se na presença de Otávio tudo aquilo que antes era bom se tornasse pouco: o meu cabelo, o meu vestido, o cruzar das minhas pernas, tudo tão pequeno, tão ridículo. Ah, Otávio era belo e inatingível. - No que você está pensando, Laura? - Em nada. Otávio tinha os lábios um pouco ressecados aquele dia, pensei com certa satisfação e ao mesmo tempo a expectativa do toque áspero dos lábios de Otávio. Eu sempre tivera uma inexplicável predileção por lábios ressecados, as pequenas rachaduras abertas na pele delicada, às vezes um gosto amargo que se insinuava. - Então, Laura, por que o desespero? O desespero, pensei, já nem me lembrava mais do que estávamos falando. O desespero. Peguei uma das almofadas espalhadas pelo sofá, coloquei-a no colo e a segurei com força, como se a abraçasse. No rosto de Otávio o sorriso, a certeza de ter me pego em flagrante. Devolvi a almofada ao seu lugar. - Ah, já nem sei mais, acho que a idéia de atravessar o deserto me assusta. Deve ser normal, não é? - Claro, é normal. - Mas não era só isso, o que mais me perturbava é que havia alguém ao meu lado, alguém que dirigia o carro... - Desviei o olhar para o teto e fiquei calada, como se estivesse ruminando alguma coisa. Não sei por que eu gostava disso, de testar a paciência de Otávio, começava a dizer algo e parava na metade, ficava ali, distraída, sem dizer nada, como se de repente houvesse me lembrado de alguma coisa, de algo muito mais importante, e esse era sempre o melhor momento, longos minutos em silêncio, e Otávio ali, suspenso em minhas palavras. Eu olhava em volta, o relógio, os móveis, a decoração da sala, tentando ganhar tempo, tentando estender esse momento ao máximo, essa tensão que se instaurava, fazia de conta que ainda estava pensando, buscando em algum lugar da memória a melhor imagem, as palavras mais apropriadas. Enquanto isso, Otávio ali, os olhos fixos em mim, esperando que eu finalmente completasse o que começara. Ele era um homem paciente, mas de uma paciência bastante prática, e, como eu continuasse muda, em algum momento ele retomava: - E quem era esse alguém? Ainda esperei alguns segundos, como se sua voz houvesse me retirado dos mais profundos pensamentos, então respondi: - Não sei, eu não conseguia ver o rosto, o rosto aparecia como num filme que eu vi uma vez, no lugar dos olhos e da boca apenas a continuação da pele, sabe o que eu quero dizer? - Entendo, e essa pessoa era homem ou mulher? - Também não sei. - Faça um esforço, Laura, quem você acha que poderia ser? Otávio me observava em silêncio, aquele silêncio dele que sempre me obriga a dizer alguma coisa. - Ah, eu não faço a menor idéia. Mas sabe o que mais?, vamos deixar esse assunto pra lá, não quero mais falar nisso. - Tem certeza? - Absoluta. Otávio fez uma pequena pausa, anotou qualquer coisa num caderninho e continuou: - Está certo, Laura, me conte então como foi a sua semana. A minha semana tinha sido como eram todas as minhas semanas, ao menos nos últimos três anos, dormira até tarde, acordara de mau humor, tomara banho, bebera uma xícara de café, brincara com o gato. Dependendo do ânimo, arrumava um pouco a casa ou ia à academia, quase sempre ligava a televisão, às vezes só para ouvir o barulho indistinto da televisão, outras vezes eu ficava ali, sentada no sofá, mudando de canal de dois em dois minutos, a maioria dos programas eram para donas-de-casa e estudantes que não têm mais o que fazer. Raramente ia à faculdade. A verdade é que, além da visita que fazia a Otávio toda terça-feira, na maior parte das vezes não fazia nada. Quando Júlio aparecia, o que acontecia cada vez com menos freqüência, saíamos para jantar ou íamos ao cinema, dançar, eu nem sabia mais o que era. Parecíamos um casal de meia-idade, só que eu não estava na meia-idade, e nem sequer éramos um casal. Júlio era casado havia mais de vinte anos com a mesma mulher, casara jovem, recém começando a faculdade. A mulher vinha de uma família tradicional, muito dinheiro, casara grávida, logo depois viera o segundo filho, e Júlio começara sua carreira de executivo no escritório de advocacia do sogro. Júlio dizia que me amava, eu gostava dele, ou pelo menos assim gostava de imaginar. - A minha semana, sem novidades, o mesmo de sempre. - E o que significa para você o mesmo de sempre? - Que pergunta, Otávio, o mesmo de sempre é exatamente isso, o mesmo de sempre, dormir, acordar, ir à faculdade. - E você foi à faculdade? - À faculdade, não, não fui, fiquei com preguiça, não sei, acho que é essa chuva, quando chove eu fico sem vontade de sair de casa. O trânsito fica horrível, a cidade, esse caos que está hoje, e além do mais eu acabo sempre perdendo o guarda-chuva. Semana passada então, consegui perder quatro guarda-chuvas, dá pra imaginar?, quatro guarda-chuvas numa semana, ainda bem que eram daqueles de camelô, sabe? Otávio me olha com jeito de quem vai fazer algum comentário, eu não deixo, continuo falando. - Estudei um pouco, não muito, o problema é que não consigo me concentrar direito. Começo a ler cheia de ânimo, leio às vezes uma página inteira, duas páginas, mas, quando vou ver, nem sei do que se trata, não sei mais o que li. Sabe?, eu leio mas não leio, é como se as palavras não entrassem na minha cabeça, como se eu estivesse lendo em japonês, sabe aqueles desenhinhos? - A falta de concentração não é um obstáculo intransponível, Laura, existem técnicas simples capazes de atenuar esse problema. Claro, técnicas, eu devia ter imaginado. Otávio adorava técnicas, fazia parte da sua filosofia de vida. Técnicas para dormir, técnicas para acordar, técnicas para lembrar, técnicas para esquecer, técnicas para ser feliz. Enquanto ele me explicava a tal da técnica para se concentrar, eu pensava que tinham se passado quase quarenta minutos e eu ainda não havia sequer mencionado o assunto principal. Eram sempre assim, esses meus encontros com Otávio, eu já saía de casa pensando em tudo aquilo que eu queria falar, naquilo que eu tinha que dizer de qualquer jeito, às vezes até anotava num pedaço de papel, e, ao chegar no prédio, já na portaria, a expectativa, talvez um certo nervosismo, como se cada vez fosse a primeira vez, e, quando ele abria a porta, um entusiasmo inexplicável e a folha de papel que ficava esquecida na bolsa. Naquele dia, a mesma coisa, aquele pensamento o dia inteiro, eu imaginando a melhor forma de contar para Otávio. É, porque a questão nunca é o que a gente conta, mas a forma de contar, às vezes, qualquer deslize, e pronto, botamos tudo a perder. Enquanto eu procurava a melhor forma de começar, Otávio acabava de expor a sua técnica: - Então é isso, Laura, tente fazer esses exercícios antes de começar a estudar e depois me diga como foi. - Tá certo - respondi, distraída. Fiz uma pequena pausa, respirei fundo quase como se suspirasse, disse: - Otávio, tem uma coisa importante que eu quero te dizer, já há algum tempo que eu quero te contar, mas sei lá, a gente sempre acaba falando de outra coisa. - Claro, Laura, diga. - Outro dia, acho que foi semana passada, foi, foi semana passada, segunda-feira. Era de tarde, e eu pra variar estava em casa sem fazer nada. Eu tinha tentado estudar, mas logo desisti, na televisão um programa sobre origami, impossível, onde eu arranjaria paciência para dobrinhas de origami? Bom, saí de casa sem saber muito bem para onde, fui até Ipanema, fiquei dando voltas por Ipanema, depois peguei um táxi até Botafogo. No início eu não sabia muito bem o que iria fazer em Botafogo, o motorista perguntou para onde, e, como eu não sabia, disse qualquer coisa, Botafogo, muitas vezes isso me acontece, alguém me faz uma pergunta e eu não sei o que responder, mas, como é uma pergunta e tem alguém ali, esperando uma resposta, eu, por educação, digo qualquer coisa. Talvez nem por educação, mas alguma coisa no cérebro, alguma coisa que te obriga a responder qualquer coisa, você deve saber. Otávio fez que sim com a cabeça. - Mas então, onde eu estava? - Indo para Botafogo. - Ah, pois é, acabou que eu saltei do táxi em plena Voluntários, naquele tumulto da Voluntários, sabe?, eu tenho uma espécie de amor e ódio por Botafogo, já te disse que morei lá?, toda a minha infância e adolescência. É um bairro horrível, bairro de passagem como dizem, mas eu gosto, tenho um carinho especial. Às vezes, passando por algumas ruas, é como se eu voltasse no tempo, a Real Grandeza, você conhece a Real Grandeza? Passando por lá, o prédio, a banca de jornal, é tão fácil lembrar como eu era, o que eu pensava há dez, quinze anos. Bom, mas não era isso que eu queria te contar, o que eu queria dizer é que, chegando lá, eu decidi ir ao cinema. Eu nem sabia o que estava passando, mas qualquer filme estava bom. Otávio, você já foi ao cinema sozinho alguma vez? - Já, algumas vezes. - Eu não, eu nunca tinha ido ao cinema sozinha antes, aliás, jamais uma idéia dessas havia me passado pela cabeça, coisa mais sem graça ir ao cinema sozinha, tem algo de triste, de deprimente, me lembra aqueles velhos que morrem isolados em casa, em frente à televisão, morrem e ninguém percebe, só cinco, dez anos depois, é que vão achar o esqueleto comido pelas traças, a televisão ainda ligada, horrível. Bom, mas não era isso que eu queria dizer, o que eu queria dizer era outra coisa. Logo que entrei na sala do cinema, percebi que a maioria das pessoas estavam desacompanhadas, assim como eu, estranho, não? Talvez estudantes, aposentados, donas-de-casa, não sei, me deu uma aflição tão grande, não sei te explicar. Então, no cinema, quando apagaram as luzes e começou o filme, aconteceu algo inesperado, eu e aquelas pessoas sozinhas, era como se se estabelecesse entre nós uma espécie de acordo silencioso, como se de repente soubéssemos algo de muito secreto um do outro, algo totalmente íntimo, que ninguém deveria saber mas que naquele momento não havia como disfarçar. Dá pra entender o que eu quero dizer? - Acho que sim. - O que eu quero dizer é que dois lugares à sua esquerda tem alguém sentado, está escuro, você não tem como ver o rosto, nem sabe se é velho ou se é jovem, mas há entre vocês um elo, e você sabe que ele sabe que você sabe. É uma espécie de segredo, de tristeza compartilhada, é, acho que é isso que eu queria dizer. Há muito tempo, eu li em algum lugar, num livro de auto-ajuda eu acho, uma frase que dizia que amar é compartilhar a própria solidão, é bonito, não é?! - É, Laura, é bonito, mas talvez você estivesse apenas... Otávio pretendia continuar a frase, mas eu o interrompi: - E então eu ficava pensando que talvez aquilo fosse uma espécie de amor. Você acha que eu poderia amar aquela pessoa desconhecida ao meu lado? Otávio me olhou impaciente, irritado. - É possível, porém seria uma idealização. Uma idealização. Pronto, era sempre assim, sempre que eu queria dizer algo importante, algo que realmente importava, Otávio vinha com teorias, Otávio não queria ouvir a verdade, ele queria apenas o que ele queria. - Por que uma idealização, que amor não é idealizado? - É, o amor é muitas vezes uma idealização, mas existem formas de amor. O amor por uma pessoa de carne e osso, que existe com seus defeitos e qualidades, e o amor que você pode sentir pela humanidade, ou por um desconhecido no cinema. - Só que é bem mais fácil amar um desconhecido no cinema do que amar a humanidade. - Ah, com certeza. - E Otávio riu. Eu gostava quando Otávio ria, não aquele sorriso de gesso que ele costumava esboçar, como se tivesse acabado de sair de uma cirurgia plástica, mas um riso de verdade, quase desprevenido. Eu comemorava internamente, tinha vencido mais uma de nossas pequenas batalhas, pensava. Talvez Otávio, no fundo, gostasse de mim, talvez até me achasse interessante, talvez, quem sabe, houvesse uma chance, eu me entusiasmava com a possibilidade. - Otávio? - Sim. No entanto, acabei dizendo qualquer coisa, o que primeiro me veio à cabeça. - Otávio, você já idealizou alguém? - Já. - A voz tentava parecer tranqüila, mas soava algo insegura, possivelmente ele se arrependera da resposta. Tentou consertar: - É provável, Laura, é provável. Mas voltemos ao que você estava falando, você estava falando sobre o que aconteceu quando foi ao cinema semana passada, continue. Otávio mudara de assunto, claro, ele sempre mudava de assunto quando o assunto era ele. Eu não consegui continuar, não depois daquela reação, era tão fácil perder de um momento para outro tudo o que havíamos conseguido. - Foi isso que eu acabei de te dizer, fui ao cinema sozinha, só isso. - Tem certeza? Eu tive a impressão que você queria me dizer algo mais. - Não, era só isso mesmo.