Trecho do livro SEMENTES MÁGICAS

Mais tarde - na floresta de teca, no primeiro acampamento, quando ele, na primeira noite que passou montando guarda, se surpreendeu em certos momentos desejando apenas chorar, e quando, com o alívio da aurora, sobreveio também o impressionante grito de um pavão longínquo, o grito que os pavões proferem às primeiras horas da manhã, depois de terem tomado seu primeiro gole d'água em algum lago da floresta: um grito áspero, cortante, que devia falar de um mundo revigorado e refeito, mas que após a demorada noite ruim parecia falar apenas de tudo o que se havia perdido, homem, ave, floresta, mundo; e então, quando aquele acampamento se tornou uma lembrança romântica, nos entorpecentes anos da guerrilha, sempre em marcha, na floresta, nas aldeias, nas cidadezinhas, quando viajar disfarçado muitas vezes dava a impressão de ser um fim em si e durante a maior parte do dia era possível esquecer o propósito mesmo do disfarce, quando ele se sentia decaindo intelectualmente, quando notava a desintegração de partes de sua personalidade; e depois, na prisão, com aquela sua ordem abençoada, seus horários rígidos, suas normas mantenedoras, a renovação que aquilo lhe proporcionava -, mais tarde lhe foi possível determinar as etapas que ele percorrera ao passar do que teria chamado de mundo real a todas as subseqüentes áreas de irrealidade: passando, por assim dizer, de um compartimento estanque do espírito para outro. 1 OS VENDEDORES DE ROSAS Tinha começado muitos anos antes, em Berlim. Era outro mundo. Ele levava uma vida provisória, em suspenso, no apartamento de sua irmã Sarojini. Depois de seus anos de África, fora um conforto enorme a proteção oferecida por esse novo tipo de vida, fazendo dele quase um turista, livre de exigências e ansiedades. Aquilo tinha de acabar, claro; e começou a acabar no dia em que Sarojini disse: "Faz seis meses que você está aqui. Não sei se conseguirei renovar seu visto novamente. Você sabe o que isso significa. Talvez não possa continuar aqui. E não adianta reclamar. Precisa começar a pensar em se mudar. Tem idéia de um lugar para onde possa ir? Tem algo que queira fazer?". Disse Willie: "Estou a par desse problema do visto. Tenho pensado nisso". Disse Sarojini: "Sei o que você quer dizer quando fala que está pensando num assunto. É sinal de que o guardou a sete chaves em algum lugar da cabeça". Disse Willie: "Não sei o que fazer. Não sei para onde ir". "Você nunca achou que precisava fazer o que quer que fosse. Nunca se deu conta de que os homens precisam fazer o mundo para si próprios." "Tem razão." "Não fale assim comigo. É desse jeito que a classe opressora pensa. Só têm de ficar firmes no lugar para que o mundo continue do jeito que eles gostam." Disse Willie: "Você não me ajuda em nada quando distorce as coisas. Sabe muito bem o que eu quis dizer. Tenho a sensação de ter sido vítima do destino. O que eu poderia ter feito na Índia? O que poderia ter feito na Inglaterra em 1957 ou em 1958? E na África?". "Dezoito anos na África. Coitada da sua mulher. Ela achou que tivesse arrumado um homem. Devia ter falado comigo." Disse Willie: "Sempre fui um sujeito deslocado. Continuo sendo. O que vou fazer aqui em Berlim?". "Você é deslocado porque quer. Sempre preferiu se esconder. É a psicose do colonizado, a psicose do homem de casta. Puxou seu pai. Passou dezoito anos na África. Havia um movimento guerrilheiro formidável lá. Sabia disso?" "Era muito longe de onde eu estava. Foi uma guerra travada às escondidas, até os últimos momentos." "Foi uma guerra grandiosa. Pelos menos no princípio. Quando a gente pensa no que foi aquilo, fica com lágrimas nos olhos. Um povo pobre e desamparado, escravizado em sua própria terra, começando do nada em todos os sentidos. E o que você faz? Vai procurá-los? Junta-se a eles? Tenta ajudá-los? Era uma causa boa o bastante para qualquer um que estivesse atrás de uma causa. Mas não. Você continua na sua fazenda, ao lado da sua adorável mulherzinha mestiça, tampa os ouvidos com o travesseiro e torce para que nenhum guerrilheiro negro malvado entre à noite na casa e o amedronte com seu fuzil e suas botas pesadas." "Não foi assim, Sarojini. Lá no fundo, no meu íntimo, sempre estive do lado dos africanos, mas eu não tinha uma guerra para travar." "Se todo mundo dissesse isso, nunca haveria revolução em lugar nenhum. Todos nós temos guerras para travar." Estavam num café na Knesebeckstrasse. No inverno, Willie achara o lugar quente, vaporoso, civilizado - estudantes trabalhavam como garçons e garçonetes - e acolhedor. Agora que o verão chegava ao fim, achava-o rançoso e opressivo, seus rituais já muito batidos, uma advertência a Willie - a despeito do que Sarojini dizia - do tempo que passava improdutivamente, evocando o misterioso soneto que eles haviam sido obrigados a decorar na escola missionária. E esse tempo arredado no entanto era verão... Um jovem tâmil entrou, vendendo rosas vermelhas. Sarojini fez um pequeno gesto com a mão e pôs-se a vasculhar a bolsa. O tâmil se aproximou e estendeu-lhes as rosas, porém evitando olhá-los nos olhos. Repelia qualquer parentesco com eles. Era cheio de si, o vendedor de rosas, perfeitamente convencido de seu valor. Sem encarar o homem, concentrando-se em suas calças marrons (feitas por um alfaiate de uma terra distante) e na pulseira e no relógio, ambos enormes e folheados a ouro (talvez não fosse efetivamente ouro), que ele tinha no braço peludo, Willie percebeu que, em seu próprio meio, o vendedor de rosas seria alguém insignificante, invisível. Ali, num meio que talvez ele compreendesse tão mal quanto Willie, um meio que ainda não aprendera a ver, era como um homem desgarrado de si mesmo. Tornara-se alguém diferente. Willie conhecera um sujeito assim algumas semanas antes, num dia em que saíra à rua sozinho. Estava parado diante de um restaurante sul-indiano vazio, com algumas moscas rastejando na vitrine, em cima dos vasos de plantas e dos pratos artificiais de arroz e dosas, com garçons baixotes, de aspecto amador (talvez não fossem de fato garçons, talvez fossem outra coisa, quem sabe eletricistas ou contadores, imigrantes ilegais recém-chegados), à espreita, na penumbra que havia lá dentro, a qual contrastava com o brilho barato da idéia que alguém fizera de como seria uma decoração oriental. Um indiano ou tâmil aproximara-se de Willie. Era rechonchudo, embora não fosse gordo, tinha um rosto redondo e um boné cinza, com uma estampa de linhas azuis finas, espaçadas umas das outras, como os bonés de golfe Kangol que Willie se lembrava de ver anunciados nas páginas finais dos primeiros livros da editora Penguin: talvez ele houvesse se inspirado naqueles velhos anúncios. O sujeito pôs-se a falar sobre o formidável movimento guerrilheiro em vias de eclodir. Willie mostrou-se interessado, até afável. Gostou daquele rosto rechonchudo, sorridente. O boné o cativava. E também a conversa conspiratória e a idéia que ela comunicava, de um mundo prestes a ser surpreendido. Mas quando o homem mencionou a enorme necessidade de dinheiro, quando insistiu nisso, Willie ficou incomodado, depois assustado, e começou a se afastar da vitrine com as moscas enclausuradas e sonolentas. E, apesar de o sujeito continuar dando a impressão de sorrir, de seus lábios macios saiu uma longa, cruel e profunda praga religiosa, proferida em tâmil, que Willie entendeu parcialmente, e assim que essa praga foi proferida, o sorriso do sujeito se desfez e, sob o boné de golfe com o xadrez azul, seu rosto estampou uma careta de ódio feroz. O súbito emprego do tâmil sobressaltou Willie, a velha praga religiosa em que o sujeito depositara toda sua fé religiosa, aquele ódio profundo e abrupto, qual a estocada de uma navalha. Não contou a Sarojini sobre o encontro com o homem. O hábito de guardar as coisas para si mesmo o acompanhava desde a infância, em casa e na escola; entranhara-se ainda mais nos anos que ele passara em Londres, e tornara-se parte intrínseca de sua natureza nos dezoito anos que vivera na África, quando Willie precisara ocultar tantas obviedades de si mesmo. Consentia que as pessoas lhe falassem coisas que ele estava cansado de saber, e fazia-o não por maldade, não devido a nenhum plano estabelecido, mas em virtude do desejo de não ofender, de deixar que tudo se desenrolasse sem percalços. Sarojini deixou a rosa ao lado do prato. Seguiu com os olhos o vendedor de rosas enquanto ele caminhava por entre as mesas. Quando ele saiu do café, ela disse para Willie: "Não sei o que você sente em relação àquele homem. Mas ele vale bem mais que você". Disse Willie: "Claro". "Não me provoque. Esse jeito dissimulado de falar pode dar certo com estranhos. Não comigo. Sabe por que aquele homem vale mais que você? Porque descobriu que tem uma guerra para travar. Poderia ter dito que tinha outras coisas para fazer. Poderia ter dito que tinha uma vida para viver. Poderia ter dito: 'Estou em Berlim. Custou muito chegar até aqui. Aquelas falsificações todas, os vistos, tanto tempo vivendo às escondidas. Mas agora acabou. Consegui fugir do lugar onde nasci e de tudo o que eu fui. Agora vou fingir que pertenço a este lugar novo e rico. Vou assistir à televisão, vou me familiarizar com os programas estrangeiros e vou colocar na cabeça que isso é algo realmente meu. Irei à kdw e freqüentarei os restaurantes. Aprenderei a beber uísque e vinho e logo estarei contando meu dinheiro, dirigindo meu carro, sentindo que sou como todas aquelas pessoas das propagandas. Chegarei à conclusão de que, no fundo, não é tão difícil assim fazer a transição de um mundo para o outro e terei a sensação de que é assim que deve ser para todos nós'. Ele podia ter chegado a essas conclusões falsas e obscenas. Porém viu que tinha uma guerra para travar. Não reparou, Willie? Ele não olhou para nós. É claro que sabe de onde somos. Sabe da proximidade que há entre nós e ele, mas nos tratou com desprezo. Colocou-nos na categoria dos enganadores." Disse Willie: "Talvez ele tenha ficado com vergonha por ser tâmil e estar vendendo rosas a essas pessoas na nossa presença". "Não parecia envergonhado. Aquele rapaz tinha o ar de alguém que tem uma causa, o ar de quem está à parte. É algo que você poderia ter observado na África, se soubesse ver. Esse homem está vendendo rosas em Berlim, mas em algum lugar muito longe daqui essas rosas estão se transformando em armas. É assim que são feitas as revoluções. Estive em alguns acampamentos. Eu e Wolf estamos fazendo um filme sobre eles. Em breve ouviremos muitas notícias a respeito deles. Não há no mundo um exército guerrilheiro tão disciplinado. São ferozes, dão medo. E, se você conhecesse melhor sua própria história, compreenderia o milagre que é isso." Outro dia, no zoológico, em meio ao cheiro horrível dos animais selvagens mantidos ociosamente em cativeiro, ela disse: "Tenho de falar a você sobre a nossa história. De outro modo, vai achar que eu sou louca como o tio de nossa mãe. Toda a história que você e pessoas como você conhecem sobre nosso país vem de um livro britânico, escrito no século xix por um sujeito chamado Roper Lethbridge, um inglês que foi inspetor escolar na Índia. Sabia disso? Foi o primeiro grande livro didático de história da Índia e foi publicado na década de 1880, pela editora britânica Macmillan. Ou seja, somente vinte e poucos anos após o Motim, e é claro que era uma obra imperialista, além de ser um livro para vender e dar dinheiro. Mas também era um trabalho de relativa erudição, à maneira britânica, e fez muito sucesso. Nunca houvera nada parecido na Índia, nenhum método de ensino como aquele, nenhum adestramento naquele tipo de história. O livro de Lethbridge teve várias reedições e forneceu muitas das idéias que ainda temos sobre nós mesmos. Dentre elas, uma das mais importantes era a de que, na Índia, havia raças servis, pessoas que nasciam para ser escravas, e raças marciais. As marciais eram boas, as servis não. Eu e você pertencemos, por parte de mãe, à raça servil. Aposto que sabe disso. E aposto que aceita parcialmente isso. É o motivo de ter levado a vida que levou. Os tâmiles que vendem rosas em Berlim pertencem integralmente às raças servis. Essa idéia foi gravada neles das mais variadas formas. E essa idéia britânica sobre a divisão da Índia em raças servis e marciais é completamente equivocada. O exército que a Companhia Britânica das Índias Orientais mantinha no Norte da Índia era composto de hindus de castas superiores. Foi esse o exército que levou as fronteiras do Império Britânico quase até o Afeganistão. Contudo, após o Grande Motim de 1857, esse exército hindu teve seu status rebaixado. Seus integrantes não encontravam mais oportunidades de avanço na carreira militar. Assim, na propaganda britânica, os soldados que haviam expandido o império tornaram-se servis e os povos da fronteira, que eles próprios haviam vencido pouco antes do Motim, tornaram-se marciais. É desta forma que os imperialismos funcionam. É isso que acontece aos povos cativos. E como na Índia não temos noção de história, rapidamente esquecemos nosso passado e sempre acreditamos no que nos dizem. Quanto aos tâmiles do Sul, a nova ordenação britânica dizia que eram sujos. Eram escuros e não tinham inclinação para a guerra; só serviam para trabalhar. Eram enviados como servos para as plantações da Malásia, do Ceilão e de outros lugares. Esses tâmiles que vendem rosas em Berlim a fim de comprar armas tiveram de tirar das costas todo um peso de história e propaganda. Transformaram-se num povo verdadeiramente marcial, e fizeram-no contra todas as probabilidades. Você devia sentir admiração por eles, Willie". E à sua maneira imperturbável, Willie escutava; em meio ao cheiro desagradável daqueles animais infelizes, escutava e não dizia nada. Sarojini era sua irmã. Ninguém no mundo o compreendia tão bem. Ela compreendia cada recanto de suas fantasias; compreendia tudo o que acontecera em sua vida na Inglaterra e na África, ainda que no decorrer daqueles vinte anos só tivessem se encontrado uma vez. Willie tinha a sensação de que, mesmo que não trocassem nem uma palavra, ela, que se desenvolvera em tantos sentidos, seria capaz de compreender até os detalhes físicos de uma vida sexual como a que ele tivera. Nada permanecia oculto a ela; e mesmo quando se encontrava em seu ânimo mais revolucionário, vulgar e prepotente, dizendo coisas que já dissera inúmeras vezes, mesmo então ela era capaz de, acrescentando uma frase aqui, outra ali, evocar certos aspectos do passado singular que os dois haviam compartilhado e tocar em coisas dentro de Willie que ele teria preferido esquecer. Ele não dizia nada quando ela falava, mas prestava atenção em tudo o que ela dizia. Em Berlim, aos poucos se deu conta de algo nela que nunca notara. Embora não se cansasse de falar em injustiças e crueldades e na necessidade de uma revolução, apesar de brincar com quadros vivos de sangue e carnificina em cinco continentes, Sarojini parecia estranhamente serena. Perdera o azedume e a agressividade que a caracterizava no início da vida. Sarojini passara anos definhando no ashram da família, sem ter o que almejar além de piedade e subserviência; e muitos anos depois de ter partido de lá, aquela vida funesta no ashram - a oferta de curas falsas aos humildes e necessitados - continuava a rondá-la, como se fosse algo a que talvez tivesse de voltar caso as coisas com Wolf dessem errado. Ela já não experimentava aquela ansiedade. Assim como aprendera a vestir-se para enfrentar o clima frio e se fizera atraente (os dias de malhas e meias de lã com um sári tinham ficado muito para trás), também as viagens, os estudos, a política da revolução e sua tranqüila vida partida ao meio com o fotógrafo pouco exigente pareciam ter lhe proporcionado um sistema intelectual completo. Nada mais a surpreendia ou a magoava. Sua visão do mundo era capaz de absorver tudo: assassinatos políticos na Guatemala, revolução islâmica no Irã, tumultos e conflitos entre castas na Índia e mesmo os roubos triviais praticados por uma questão de hábito ou princípio de comerciante pelo dono do depósito de bebidas em Berlim, quando entregava suas encomendas no apartamento, sempre com duas ou três garrafas de vinho a menos ou trocadas, os preços adulterados por meio de estratagemas complexos, desconcertantes. Dizia ela: "É isso que acontece em Berlim Ocidental. Estão no fim de um corredor aéreo e tudo aqui é subsidiado. Por isso gastam energia com esse tipo de ratonice. É o grande fiasco do Ocidente. Ainda vão se dar conta disso". A própria Sarojini, por intermédio de seu fotógrafo, vivia de um subsídio oferecido por algum órgão do governo alemão-ocidental. De modo que sabia do que estava falando; e não estava nem aí. Ao receber mais uma caixa de vinho e cerveja, dizia: "Vejamos o que o patife aprontou dessa vez". A Sarojini que ele deixara para trás na Índia, fazia vinte anos ou mais, nunca teria sido capaz de nada parecido com isso. E era a essa sua nova serenidade, a esse seu linguajar novo e elegante que ele cada vez mais se via reagindo em Berlim. Willie olhava a irmã com admiração. Assombrava-o e excitava-o que fosse sua irmã. Após seis meses com ela - os dois nunca haviam passado tanto tempo juntos depois de adultos -, o mundo começou a mudar para ele. Assim como sentia que ela era capaz de penetrar todas as suas emoções, inclusive suas necessidades sexuais, assim também ele começou a penetrar a maneira que ela tinha de ver as coisas. Havia lógica e ordem em tudo o que ela dizia. E Willie viu, coisa que em seu íntimo ele agora tinha a impressão de sempre ter sabido, embora jamais o houvesse aceitado, Willie viu que havia os dois mundos de que Sarojini falava. Um deles era ordenado, firmemente estabelecido, suas guerras travadas. Nesse mundo sem guerras nem perigos de verdade as pessoas haviam se simplificado. Assistiam à televisão e encontravam as comunidades a que queriam pertencer; comiam e bebiam coisas certificadas; e contavam seu dinheiro. No outro mundo, as pessoas eram mais frenéticas. Estavam desesperadas por entrar no mundo mais simples e ordenado. Contudo, embora permanecessem à margem de uma centena de lealdades, os resíduos da velha história as agrilhoavam; centenas de pequenas guerras as enchiam de ódio e dissipavam suas energias. No ambiente livre e agitado da Berlim Ocidental, tudo parecia fácil. Mas não muito longe dali havia uma fronteira artificial, e para lá dessa fronteira havia constrições e outro tipo de gente. Nas antigas ruínas de grandes edifícios, cresciam ervas e por vezes árvores; em toda parte, estilhaços e bombas haviam penetrado as pedras e o estuque. Os dois mundos coexistiam. Era idiotice fingir que não. E agora Willie sabia com clareza a qual deles pertencia. Parecera-lhe natural, vinte anos antes, na Índia, querer esconder-se. Tudo o que adviera desse desejo agora lhe parecia vergonhoso. Sua meia vida em Londres; e depois, toda sua vida na África, aquela vida em que ele se esmerava por permanecer parcialmente oculto, aferindo seu sucesso pelo fato de que em seu grupo de segunda classe, formado por portugueses mestiços, não se sobressaía muito, era "passável"; toda aquela vida parecia vergonhosa. Um dia Sarojini trouxe para o apartamento um exemplar do Herald Tribune. O jornal estava dobrado de maneira a exibir uma reportagem em particular. Mostrou-a para ele e disse: "É sobre o lugar em que você vivia". Disse Willie: "Por favor, não me interessa. Já lhe disse". "Precisa começar a se interessar." Ele pegou o jornal e disse com seus botões, pronunciando o nome da mulher: "Ana, me perdoe". Mal chegou a ler o que estava escrito na reportagem. Não precisava. Reviveu tudo mentalmente. A guerra civil tornara-se verdadeiramente sangrenta. Não havia movimento de tropas; apenas ataques súbitos, homens que atravessavam a fronteira para queimar, matar, aterrorizar e depois voltar. Havia uma foto de prédios de concreto branco com os telhados incendiados e marcas de fumaça delineando as janelas vazias: a arquitetura simples das colônias rurais já transformada em ruína. Pensou nas estradas que conhecia, nos cones de rocha azul, na cidadezinha litorânea. Todos por lá fingiam que o mundo se tornara um lugar seguro; mas em seu íntimo sabiam que a guerra estava se aproximando e que um dia as estradas desapareceriam. Certa feita, quando o conflito estava no princípio, eles tinham feito essa brincadeira no almoço de domingo. Vamos supor, haviam dito, que estivéssemos isolados do resto do mundo. Imaginemos como seria viver aqui sem que nos chegasse nada de fora. A primeira perda, claro, seriam os carros. Depois não haveria mais remédios. Ficaríamos sem roupas. Sem eletricidade. E assim, durante o almoço, com os meninos uniformizados e os carros com tração nas quatro rodas estacionados no pátio de areia, eles tinham feito essa brincadeira, imaginando uma situação de privação. E tudo aquilo acabara acontecendo. Willie, muito envergonhado em Berlim ao refletir sobre seu comportamento na África, pensou: "Não posso mais me esconder. Sarojini tem razão". Todavia, como era seu costume, não contou a ela o que estava pensando. [...]