Trecho do livro CONTANDO HISTÓRIAS

Buldogue Arthur Miller Ele viu aquele minúsculo anúncio no jornal: "Filhotes de black brindle bull, três dólares cada". Tinha aí uns dez dólares do trabalho de pintura que ainda não depositara, mas nunca haviam tido um cachorro em casa. O pai estava tirando uma longa soneca quando a idéia lhe veio à mente, e a mãe, no meio de uma partida de bridge quando ele perguntou a ela se podia, encolheu os ombros, distraída, e descartou uma carta. Ele ficou andando pela casa tentando resolver e foi sendo dominado pela sensação de que era melhor correr antes que alguém comprasse o cachorrinho primeiro. Em sua cabeça, um dos cachorrinhos já pertencia a ele - era o seu cachorro e o cachorro sabia disso. Não fazia idéia de que cara tinha um brindle bull, mas parecia forte e maravilhoso. E tinha os três dólares, embora se amargurasse de pensar em gastá-los quando estavam passando por problemas tão sérios de dinheiro com o pai na bancarrota de novo. O pequeno anúncio não falava quantos filhotes havia. Talvez houvesse apenas dois ou três, que podiam já ter sido comprados. O endereço era na rua Schermerhorn, de que nunca ouvira falar. Telefonou e uma mulher de voz rouca explicou como chegar lá, que linha tomar. Ele ia sair do bairro de Midwood pela linha elevada Culver, de forma que teria de fazer baldeação na avenida Church. Anotou tudo e repetiu para a mulher. Ela ainda estava com os cachorrinhos, graças a Deus. Levava mais de uma hora, mas, como era domingo, o trem estava quase vazio e com a brisa que entrava pelas molduras de madeira das janelas abertas era mais fresco dentro que na rua. Lá embaixo, em terrenos baldios, viu velhas italianas, cabeças cobertas com lenços vermelhos, curvadas recolhendo dentes-de-leão nos aventais. Seus colegas de escola italianos diziam que era para o vinho e para a salada. Ele se lembrava de ter experimentado um pouco uma vez, quando estava jogando beisebol no terreno perto de casa, mas era amargo e salgado como lágrimas. O velho trem de madeira, praticamente vazio, sacudia e estralejava ligeiramente na tarde quente. Passou por cima de um quarteirão onde havia homens parados na entrada de suas casas lavando os carros como se fossem elefantes com calor. Uma poeira agradável flutuava no ar. O bairro da rua Schermerhorn era uma surpresa, completamente diferente do dele, Midwood. As casas eram de pedra marrom e não tinham nada a ver com as casas de madeira de seu bairro, construídas apenas poucos anos antes ou, nos casos mais antigos, nos anos 20. Até as calçadas pareciam velhas, com grandes quadrados de pedra em lugar de cimento e tufos de grama crescendo no espaço entre elas. Dava para perceber que ali não viviam judeus, talvez porque fosse tão silencioso e sem vitalidade e não houvesse ninguém sentado ao ar livre, tomando sol. Muitas janelas estavam abertas, com gente sem expressão apoiada nos cotovelos olhando para fora e gatos deitados em alguns dos parapeitos; havia mulheres de sutiã e homens de cue- ca e camiseta tentando se refrescar na brisa. Sentia o suor escorrendo pelas costas, não só pelo calor, mas também porque agora se dava conta de que era o único a querer o cachorro, uma vez que seus pais não tinham realmente dado uma opinião e o irmão, que era mais velho, dissera: "O quê? Está maluco, gastar seus poucos dólares com um cachorro? Quem sabe se vai prestar? E onde vai arrumar comida para ele?". Tinha pensado em osso, mas o irmão, que sabia sempre o que estava certo ou errado, berrou: "Osso! Eles ainda não têm dentes!". Bem, talvez sopa, resmungara. "Sopa! Vai dar sopa para um cachorrinho?" De repente, viu que tinha chegado ao endereço. Parado ali, sentiu o chão fugir e entendeu que estava tudo errado, como se fosse um de seus sonhos ou uma mentira que burramente tentasse defender como verdade. Sentiu o coração bater mais rápido e o rosto ficar vermelho e seguiu em frente mais meio quarteirão. Era o único na rua vazia e de algumas janelas pessoas olhavam para ele. Mas como voltar para casa depois de ter ido tão longe? Parecia estar viajando há semanas, um ano. E agora voltar para o metrô sem nada? Talvez devesse ao menos dar uma olhada no cachorrinho, se a mulher deixasse. Tinha procurado no Livro do conhecimento, onde havia duas páginas inteiras com imagens de cachorros, e lá havia um buldogue inglês branco com as pernas da frente tortas e dentes saindo do maxilar inferior, e um pequeno bull boston branco e preto, e um pit bull de focinho comprido, mas nenhuma imagem de um brindle bull. No fim das contas, a única coisa que sabia de verdade sobre brindle bulls é que custavam três dólares. Mas tinha de, ao menos, dar uma olhada nele, no seu cachorrinho, de forma que voltou pelo quarteirão e tocou a campainha do subsolo, como a mulher havia orientado. O toque era tão alto que ele se assustou, mas sentiu que se saísse correndo e ela aparecesse a tempo de vê-lo seria ainda mais embaraçoso, de forma que ali ficou, com o suor escorrendo pelo lábio. Uma porta interna debaixo da escada se abriu e apareceu uma mulher que olhou para ele por entre as barras de ferro empoeiradas do portão. Usava uma espécie de penhoar, de seda rosa claro, que segurava fechado com uma mão, e tinha cabelo preto e comprido até os ombros. Não ousou olhar direto para o rosto dela, então não sabia que cara tinha exatamente, mas dava para sentir como estava tensa ali atrás do portão fechado. Sentiu que ela não fazia idéia do porquê de ele tocar a campainha e depressa perguntou se ela era a pessoa que havia colocado o anúncio. Ah! Ela mudou na mesma hora, destrancou o portão e abriu. Era mais baixa que ele e tinha um cheiro peculiar, como uma mistura de leite e ar viciado. Entrou atrás dela no apartamento, tão escuro que ele mal conseguia enxergar em torno, mas dava para ouvir o ganido alto dos filhotinhos. Ela teve de gritar para perguntar onde ele morava e quantos anos tinha, e quando ele contou que tinha treze ela bateu a mão na boca e disse que era muito alto para a idade, só que não entendia por que isso parecia embaraçá-la, a não ser talvez que ela tivesse pensado que tinha quinze, como pensavam às vezes. Mas mesmo assim. Foi atrás dela até a cozinha, nos fundos do apartamento, onde finalmente conseguiu enxergar em torno, agora que estava longe do sol há alguns minutos. Dentro de uma caixa de papelão recortada de qualquer jeito para ficar mais rasa, viu três filhotinhos e a mãe, que olhava para ele, sentada com a cauda mexendo devagar para um lado e outro. Pensou que ela não parecia um buldogue, mas não teve coragem de dizer isso. Era só uma cadela marrom com umas manchas pretas e umas listas aqui e ali, e os cachorrinhos eram iguais. Ele gostou muito do jeito que as orelhinhas deles ficavam penduradas, mas disse à mulher que queria ver os filhotes e que ainda não tinha se decidido. Realmente não sabia o que fazer em seguida, então, para não parecer que não havia gostado dos cachorros, perguntou se ela deixava que carregasse um deles. Ela disse que tudo bem, pegou dois filhotes de dentro da caixa e colocou-os no chão de linóleo azul. Não pareciam com nenhum buldogue que ele já tivesse visto, mas ficou com vergonha de dizer a ela que não queria um de fato. Ela levantou um filhote e disse: "Pegue", e colocou no colo dele. Nunca havia carregado um cachorro antes e ficou com medo de que fosse escorregar, de forma que aninhou-o entre os braços. Era quente ao toque, muito macio e meio nojento de um jeito estranho. Tinha olhos cinzentos como dois botõezinhos. Estava incomodado de o Livro do conhecimento não ter a imagem desse tipo de cachorro. Um buldogue de verdade era sólido e perigoso, mas esses eram apenas cachorros marrons. Ficou ali sentado no braço da cadeira estofada de verde com o cachorrinho no colo, sem saber o que fazer em seguida. A mulher, enquanto isso, havia se sentado ao lado dele e ele teve a sensação de que ela fez um carinho em seu cabelo, mas não tinha certeza porque tinha cabelo muito grosso. Quanto mais passavam os segundos menos seguro do que fazer ele ficava. Ela então perguntou se queria água, ele disse que sim e ela foi abrir a torneira, o que lhe deu a chance de se levantar e colocar o cachorrinho outra vez na caixa. Ela voltou com o copo na mão e quando ele pegou o copo ela deixou a camisola se abrir, mostrando os seios como balões meio vazios, e disse que não podia acreditar que tivesse só treze anos. Ele engoliu a água e ia devolver o copo quando ela de repente puxou a cabeça dele para ela e deu-lhe um beijo. Durante esse tempo todo, por alguma razão, ele não conseguira olhar para a cara dela e, agora, quando tentou, não conseguiu ver nada além de um borrão de cabelos. Ela o tocou e a parte de trás de suas pernas começou a tremer. Aquilo foi se tornando mais forte, até ficar quase igual àquela vez em que tocara a borda energizada de um soquete quando estava tentando remover uma lâmpada queimada. Jamais se lembraria de como foi parar no tapete - sentia que uma cachoeira estava caindo em cima de sua cabeça. Lembrava-se de ter penetrado na quentura dela e da cabeça batendo, batendo na perna do sofá. Já estava quase na avenida Church, onde ia ter de fazer baldeação para a linha elevada Culver, quando se deu conta de que ela não havia pegado seus três dólares e de que não se lembrava de ter concordado com nada, mas que estava com aquela caixinha de papelão no colo, com o filhotinho ganindo dentro. O raspar das unhas no papelão lhe dava arrepios nas costas. A mulher, lembrava agora, havia cortado dois buracos na tampa da caixa e o cachorrinho ficava enfiando o focinho por eles. Sua mãe deu um pulo para trás quando desamarrou o cordão, o cachorrinho empurrou a tampa e se espremeu para fora, latindo. "O que ele está fazendo?", ela perguntou, as mãos levantadas no ar como se fosse ser atacada. Ele, então, já havia perdido o medo do cachorrinho, segurava-o no colo, deixava que lambesse seu rosto, e vendo isso a mãe se acalmou um pouco. "Ele está com fome?", ela perguntou e ficou ali parada com a boca meio aberta, pronta para qualquer coisa, enquanto ele colocava o cachorrinho no chão de novo. Respondeu que talvez estivesse com fome, sim, mas que achava que ele só podia comer coisas moles, embora seus dentes fossem afiados como alfinetes. Ela pegou um pouco de queijo cremoso e colocou um pedacinho no chão, mas o cachorrinho só farejou e fez xixi em cima. "Meu Deus do céu!", gritou ela, e foi depressa pegar um pedaço de jornal para enxugar. Quando ela se abaixou daquele jeito, ele pensou na quentura da mulher, sentiu vergonha e sacudiu a cabeça. De repente, o nome dela voltou-lhe à memória - Lucille -, ela lhe contara quando estavam no chão. No momento em que ele estava entrando nela, ela abrira os olhos e dissera: "Meu nome é Lucille". A mãe trouxe uma tigela de sopa de macarrão da noite anterior e colocou no chão. O filhote levantou a patinha, desequilibrou a tigela e derramou um pouco do caldo de galinha no chão. Isso ele começou a lamber vorazmente no linóleo. "Ele gosta de caldo de galinha!", a mãe gritou, alegre, e imediatamente resolveu que muito provavelmente ia gostar de um ovo e colocou água para ferver. De alguma forma, o cachorrinho entendeu que ela era a pessoa a seguir e ia atrás dela para cá e para lá, do fogão para a geladeira. "Ele me segue!", a mãe disse, rindo, alegre. [...]