Trecho do livro NA SALA COM DANUZA

1 COLUNA SOCIAL Os bastidores ou as ilusões perdidas MINHA CARREIRA NAS COLUNAS COMEÇOU (como protagonista) muito cedo, quando aos catorze anos fui debutante da revista Sombra; nas várias vezes em que virei minha vida pelo avesso, achei que ela (a carreira) tivesse chegado ao fim. Lembro bem de duas vezes em que essa trajetória foi interrompida. Quando casei com Samuel, passei uma bela temporada sem aparecer na imprensa: no jornal dele não podia, e a concorrência não tomava conhecimento da minha existência. A outra foi quando assumi minha própria coluna, razão de sobra para não sair nas demais. Ah, como é bom quando seu nome aparece na coluna social a primeira vez - e a segunda, e a terceira. E sua foto, você linda e deslumbrante? E uma menção a seu trabalho, a alguma coisa bacana que você fez? Mas tem a fase de querer ir a todas as festas e a hora de preferir tomar formicida sem gelo a ir a alguma - fase que estou vivendo agora. Afinal, tem hora para tudo, e, se ser reconhecida na rua é bom, não ser reconhecida é ótimo, mas só sabe disso quem apareceu a vida toda. Passei quase nove anos escrevendo uma coluna diária, chovesse ou fizesse sol, sábados, domingos, feriados, Natal, Ano-Novo, Carnaval e Semana Santa. Todo santo dia. Como fui casada com Samuel Wainer, dono do jornal Última Hora, muito cedo conheci gente importante. Convivi com presidentes, ministros, senadores, deputados, empresários - com o poder, enfim - desde os meus vinte anos (até 1964, que fique bem entendido). Por obra e graça do acaso, e com alguma sorte, fui amiga das turmas do cinema novo, da bossa nova, do Pasquim, dos jornalistas em geral, até entrei na peruagem (nunca com os dois pés, só com um). Quando comecei a trabalhar no JB, conhecia praticamente todas as pessoas do Rio de Janeiro, e já tinha viajado quase o mundo todo. Ainda houve o tempo do exílio (de Samuel) em Paris, quando convivi com a esquerda exilada, a boemia, intelectuais e alguns aristocratas. O resultado dessa salada geral foi que, quando assumi a coluna, nada mais podia me deslumbrar. Essa foi minha sorte. O COMEÇO No dia em que o Jornal do Brasil anunciou que eu passaria a escrever no espaço brilhantemente assinado durante mais de vinte anos por Zózimo Barroso do Amaral, minha casa se encheu de flores, numa tal quantidade que parecia até o velório de alguém muito importante. Chegaram cartas, telegramas, mensagens, e recebi telefonemas de todos os cantos do país. E lá fui eu, sem ter uma idéia exata do que me esperava. É difícil ser colunista. Você chega cheia de boas intenções, pretende só publicar notas de pessoas que estão fazendo coisas legais (até consegue), evita poluir sua coluna com nomes ligados à corrupção, ao banditismo, à vadiagem (até consegue), tenta fazer um trabalho correto, ético (até consegue), o tempo vai passando, você muitas vezes erra mas só descobre depois, e um dia percebe que o buraco é mais embaixo e que na vida nem tudo são flores. AS FONTES Você chega na sua sala de manhã, abre o computador e dá de cara com uma tela vazia que tem de ser preenchida até as quatro da tarde. Aí, começa a telefonar para os amigos, para as fontes (são os que passam informações para os colunistas), e vai percebendo que as notas que pintam são, na maioria das vezes, ou para favorecer ou para prejudicar alguém. Como saber a quem está servindo a notícia da possível fusão da empresa A com a empresa B? Não dá tempo de checar - e checar com quem? -, e, quando a notícia diz respeito a business, pode ajudar a concluir ou a melar negócios geralmente escusos. Diante disso, uma das primeiras providências que tomei foi ficar fora do vespeiro e cair no social nu e cru. Eram tantos os convites, mas tantos, que, apesar de ter dois assistentes prontos para qualquer sacrifício, não dava para estar presente a todos os acontecimentos. Mas sempre havia alguém - vários alguéns - que telefonava no dia seguinte para contar como tinha sido o jantar, o show, whatever. E claro que quem ligava puxava a brasa para suas sardinhas, isto é, seus amigos, as pessoas a quem lhe interessava agradar, e assim íamos nós, filtrando, procurando descobrir a intenção real da nota, para tentar fazer, na medida do possível, uma coluna informativa, divertida, correta, decente. É claro que quem te passa uma boa nota um dia vai cobrar, pedindo que você publique uma péssima, do seu (dele) interesse. Para isso foi inventada aquela tripa com notinhas curtas que, na intimidade das redações, é chamada de "lixão": é lá que são pagas essas contas. O mais difícil era quando chegava aos meus ouvidos uma boa história envolvendo a vida pessoal de um amigo. Eu ficava na dúvida: publico ou não publico, isto é, sou jornalista acima de tudo ou não sou? Quer saber? Honestamente, acho que não sou, porque sempre evitei entrar na intimidade das pessoas, mesmo das que não eram minhas amigas. E, nas poucas vezes em que entrei, me arrependi. OS PRESENTES A quantidade de livros, cds, lembrancinhas, caixas de chocolate, camisetas, garrafas de vinho e que tais que se recebe numa coluna social é impressionante. Como lidar com isso? Meu bom senso me ensinou que presentes de pouco valor podem ser apenas gentilezas, não caracterizando jabá (jabá é um suborno disfarçado e light - ou não); as caixas de chocolate eram abertas na hora e compartilhadas com os colegas, as outras bobagens, distribuídas pelos amigos da redação, e arranjamos um armário na sala para onde ia tudo o que ninguém queria. Era o estoque, para ser desovado no Natal - e à disposição de todos os que estivessem interessados. Aprendi uma coisa preciosa com o então dono do JB, dr. Nascimento Brito: quando se recebe um presente com segundas (e terceiras) intenções, desde que não seja tão agressivo quanto uma jóia (respeito é bom, e eu gosto), não se devolve mas também não se agradece, e, se for além de uma camiseta, o nome do presenteador vai para a geladeira por uns tempos. O agradecimento é sempre um estímulo para que mais presentes cheguem, e uma nota no dia seguinte ao recebimento significa claramente: continue mandando, e seu espaço na coluna está garantido. O NATAL No Natal, então, era demais. Do começo de dezembro em diante não se podia nem trabalhar em paz, tanta coisa chegava. A secretária ia desembrulhando os pacotes, abríamos as cestas e fazíamos uma distribuição geral - muitos vidros de azeitona, geléia e picles; das agendas e calendários é melhor nem falar. O pior era quando eu chegava em casa. Sabe o que é overdose? Pois eu sei: quando voltava do trabalho e entrava no meu quarto, mais um monte de embrulhos e flores, numa tal quantidade que eu estressava. E detalhe: ninguém nunca me mandou um abridor de latas normal, aquele que eu precisava tanto mas não tinha tempo de comprar. Um dia meu neto André, que tinha nove ou dez anos, veio me visitar nas vésperas do Natal e viu a cena. Papo vai, papo vem, alguém perguntou o que ele queria ser quando crescesse, e ele respondeu de bate-pronto: "Colunista social". AS VIAGENS Mal você entra na coluna, começam os convites: para ir ao Pantanal, a Londres, Nova York, Paris, ao Festival de Gramado, ao Círio de Nazaré, a pousadas em Petrópolis e Mauá, enfim, a todos os lugares do mundo. Tudo de graça, patrocinado por alguma empresa interessada em divulgar seu produto. De deslumbrados todos temos um pouco, e aceitei os primeiros, claro - logo eu, que comprava meus dólares aos pouquinhos, para poder pegar um avião. Mas já na terceira vez deu para ver que era a maior roubada. Os convites eram sempre para viagens em grupo, com - por exemplo - um colunista (ou dois ou três) do Rio, mais dois de São Paulo, outro de uma cidade do Nordeste, do Sul, do Centro-Oeste, um amigo do organizador do grupo, uma desfrutável que pudesse gerar notícias, essas coisas. E haja programação: café-da-manhã no hotel, com o grupo, às nove, seguido de uma visita a algum lugar, almoço à uma num restaurante agradável com o menu já estabelecido pelos organizadores, tarde livre (até as cinco), coquetel não sei onde, jantar às nove, e no dia seguinte a mesma coisa. O fim de semana parecia aquele filme de Buñuel, O anjo exterminador, em que as pessoas não conseguem sair da festa: o inferno seria mais ameno. Você descobre que viajar assim não tem nada a ver, e nunca mais aceita convite nenhum. OS RESTAURANTES Quando você é colunista social, certos restaurantes começam a não cobrar mais sua conta - mesmo que você esteja numa mesa de dez -, e, se você for uma pessoa correta, passa a não poder mais freqüentá-los. Pode até elogiar, mas não pode freqüentar, a não ser com alguém que te convide e, conseqüentemente, pague - e aí você avisa ao maître antes, por telefone, que está indo convidada por A ou B. Se um colunista quiser, tirando a faxineira, o gás, a luz, o telefone e o condomínio, não vai precisar gastar um só centavo para viver. As lojas vão ficar honradíssimas de te ver desfilando seus modelitos, sapatos e bolsas, jóias serão emprestadas, e, se você resolver pintar sua casa, é só escolher em que hotel passar a semana, tudo free - com uma ou várias notinhas depois, claro. Já ouviu a frase "Não existe almoço de graça"? Pois é. O ASSÉDIO SOCIAL As socialites se matam para ter você nos seus jantares; como a coluna é social, você vai e conta. Conta como era a toalha, a louça, as flores, o menu, o vestido da anfitriã, das convidadas, fala do som, da decoração (tem gente que troca quando dá um jantar, o que costuma ser um bom pretexto para que o jantar aconteça: a nova decoração). Às vezes o texto pode sair com algumas tintas irônicas, mas ninguém percebe, tal a felicidade de ver o nome impresso no jornal. Você recebe convites para jantar de pessoas a quem nunca foi apresentada, para casamentos em que não conhece os noivos, nem a família do noivo nem a da noiva, tudo porque as pessoas a-do-ram sair na coluna. J á me aconteceu de ir a um jantar, três dias depois ir a outro e comer exatamente a mesma coisa: a entrada, o prato principal - ainda me lembro, pato com purê de castanhas - e a sobremesa, tudo clonado (assim como os convidados). Claro: o bufê era o mesmo. AS FEIRAS DE DECORAÇÃO E tinha as grandes feiras de decoração, quando eu quase enlouquecia. Eram duzentas divulgadoras, cada uma querendo vender seu peixe, isto é, emplacar o nome dos decoradores, do fornecedor do tecido das cortinas, da pia do banheiro, das torneiras, do ralo da cozinha, do tapete, do fogão, do triturador, da televisão, dos cabides, das plantas, das dobradiças, do pintor que pintou a parede, da tinta que foi usada para pintar a parede, de tudo, enfim - e vou parar por aqui porque já estou exausta, mas antes vou explicar o que é ser divulgador, para quem não sabe. Um divulgador existe para divulgar, como diz o nome, o produto para quem ele trabalha, ou seja, conseguir notas nos jornais, matérias em revistas etc. etc. Por produto leia-se qualquer coisa vendável, inclusive artistas, em início (ou não) de carreira. O leitor desavisado entra em todas, sem perceber que se trata apenas de um grande comercial, com a mesma finalidade da página dos classificados: vender - e, melhor ainda, sem pagar pelo anúncio. No quesito decoração, existem coisas curiosas: os que querem ascender socialmente mas não sabem como, escolhem nas colunas um decorador da moda. Aí ele faz a casa inteira, e, quando está tudo pronto, o cliente oferece um jantar a ele, decorador, que fornece a lista dos convidados, encomenda as flores, contrata o bufê, os manobristas e o som, se encarrega dos cartões para os convites etc. (tudo incluído no preço). Vão todos os chiques e famosos, e assim os anfitriões, que não conheciam ninguém do society, começam a entrar na Disneylândia social e aparecem, pela primeira vez, numa coluna. Nunca me esqueço de uma frase do filme O poderoso chefão, dita como desculpa por um mafioso que mata o filho de Don Corleone: "Mas eu sempre gostei muito de você; foi apenas business". AS FAMOSAS FESTAS E as festas? Essas são um caso de hospício. Festas, verdadeiramente, hoje em dia só existem para lançar um produto, seja ele cerveja, novela, celular ou alguém considerado um produto. Os organizadores se matam para ter como convidados pessoas famosas, que podem gerar notícia nas colunas e, se possível, matérias nas revistas especializadas. Para alcançar essa façanha, são contratados os divulgadores, cuja eficiência é medida pelos famosos que conseguem levar e pelo número de notas que conseguem emplacar. O que faz uma pessoa ser famosa, se ela não é atriz, cantora, artista? O fato de ela ser conhecida. E o que faz uma pessoa ser conhecida? O fato de ela ser famosa. Você entendeu? Nem eu, mas uma coisa é certa: é preciso sair em jornais, revistas ou na televisão para ser alguém, pois, nesse universo, quem não aparece não é nin-guém. Detalhe: agora, quando se dá uma festa, é possível alugar desde pratos, talheres, travessas, castiçais até convidados. E isso não é novidade, todos sabem que existem artistas de televisão que cobram cachê para dar um brilho à noite, mas atenção: no contrato (com nota fiscal e tudo) fica estabelecido quanto tempo elas/eles vão permanecer no recinto. Em geral são duas horas, e, quando acaba o tempo regulamentar, elas/eles desaparecem - com o cheque nominal, entregue antecipadamente ao agente (que leva 20%), no bolso.