Trecho do livro VIRA E MEXE, NACIONALISMO

1. A cultura latino-americana, entre a globalização e o folclore A união política, econômica e cultural dos países latino-americanos é uma velha meta que as novas relações internacionais agora favorecem. Entretanto, quando se trata de cultura, alguns equívocos devem ser evitados. As semelhanças entre nossos problemas políticos e econômicos não devem levar a um projeto de união cultural que esqueça as grandes diferenças entre as diversas culturas do continente, ou a um fechamento com relação às culturas dos países hegemônicos. Na ânsia por uma "identidade latino-americana", o discurso da latino-americanidade pode levar a enganos prejudiciais à cultura propriamente dita. Refiro-me a enganos como o nacionalismo exacerbado, o populismo e o espontaneísmo. O nacionalismo exacerbado, herança de nossas guerras de independência, e resultado da permanente ameaça de dependência que pesa sobre nossas economias, consiste, no terreno da cultura, em buscar o "autenticamente nosso", rechaçando patrioticamente tudo o que vem de fora, por medo do "colonialismo cultural". Esse nacionalismo ressentido e desconfiado pode se transformar num supranacionalismo, com as mesmas características, quando se trata de latino-americanidade. A razão principal pela qual o nacionalismo (e o supranacionalismo) latino-americano corre o risco de se tornar nocivo ao desenvolvimento cultural de nossos países é que ele repousa sobre uma concepção inaceitável de cultura. Nenhuma cultura é auto-suficiente e estanque. Toda cultura é o resultado de intercâmbios e mesclas bem-sucedidas. Nenhuma das grandes culturas reconhecidas como tal se desenvolveu fechada ao estrangeiro: a cultura de Roma fortaleceu-se ao assimilar a Grécia, a inconfundível cultura japonesa foi criada a partir da chinesa etc. Nossas culturas latino-americanas, constituídas por mesclas mais evidentes, e mais ou menos recentes, não têm por que pretender uma especificidade autóctone, mítica e regressiva. As recentes teorias pós-coloniais praticadas nos países anglófonos só nos convêm em parte. Para compreender em que as culturas latino-americanas se distinguem de outras culturas pós-coloniais, certos fatores devem ser considerados. Nossa condição pós-colonial já tem quase dois séculos. A identidade cultural original dos países latino-americanos, que já era múltipla, foi, em muitos casos, apagada pela colonização e, em outros, transformada pela mestiçagem. Nos países em que se mantiveram traços das culturas autóctones, aos quais se acrescentaram mais tarde as marcas das culturas africanas e dos países de imigrantes, são as misturas efetuadas que constituem nossa originalidade com relação aos países colonizadores. Nos discursos universitários dos países hegemônicos, fala-se muito em "multiculturalismo". O multiculturalismo teorizado e praticado nesses países não corresponde, felizmente, à nossa vivência multicultural. Para eles, trata-se de tolerar a coexistência de várias culturas, porque o trabalho dos imigrantes é necessário às suas economias, e essa simples tolerância implica a formação de guetos. A recente desconfiança com relação aos estrangeiros, nos Estados Unidos, evidencia a fragilidade e a hipocrisia de seu propalado multiculturalismo. Nos países latino-americanos não há multiculturalismo, nesse sentido; há mestiçagem, recriação cultural permanente, transculturação. A transculturação se efetuou e se efetua em todos os países latino-americanos, mas em cada um deles ela produziu resultados originais. Essa originalidade precisa ser reconhecida, quando se fala de cultura latino-americana. O Brasil, por exemplo, é sem dúvida latino-americano, mas não é culturalmente uniforme nem mesmo em seu enorme território. E sua relação com os países de língua espanhola só recentemente tem sido levada em conta pelos pensadores hispano-americanos. O imperialismo lingüístico do espanhol é tal que, quando se fala em cultura ou literatura latino-americana nas universidades não brasileiras, quase sempre o Brasil é marginalizado. Existe, entretanto, uma identidade latino-americana em sentido amplo, em virtude da semelhança de nossas histórias políticas e sociais. Culturalmente, a identidade latino-americana se constitui como a afirmação de uma diferença no seio de uma identidade: uma relação filial, edipiana, com a Europa. Por mais rancores que cultivemos, por mais violento que tenha sido nosso desejo de independência, temos uma ligação indissolúvel com as culturas metropolitanas, a começar pelas línguas que falamos. Como disse numerosas vezes Octavio Paz (que ninguém pode acusar de menosprezar suas raízes mexicanas), a cultura européia já é parte de nossa tradição, e renunciar a ela seria renunciar a uma parte de nós mesmos. Segundo Jorge Luis Borges, a vocação da América é ser internacional: "Devemos pensar que nosso patrimônio é o universo". A América Latina é, ao mesmo tempo, memória e projeto, nostalgia de um passado perdido e prefiguração de um futuro possível. É com esses verbos bifrontes, "ter saudades" e "prefigurar", que Lezama Lima conclui seu ensaio La expresión americana, no qual propõe o conceito de América como "protoplasma incorporativo". Num mundo globalizado, essa capacidade de incorporação, e sobretudo de prefiguração, é um modelo que podemos oferecer às outras culturas. Esquecer nossas origens é perder nossa identidade. Manter o que resta das culturas originais e garantir os direitos das populações que as conservam é não apenas uma obrigação ética, mas também uma maneira de cuidar de uma riqueza cultural que nos pertence. Agora, querer reduzir nossa identidade ao que nos restou dos índios ou ao que nos trouxeram os africanos é uma regressão, que pode nos levar a um racismo às avessas. Nos países do hemisfério norte, ou hemisfério rico, a preocupação com o "especificamente nacional" só existe entre os conservadores ou entre os francamente fascistas, com o objetivo de recusar a imigração e a mistura de raças. As tendências xenófobas e belicosas dos nacionalismos têm-se manifestado, mais do que nunca, em nosso tempo de globalização, como uma reação a esta. Evidentemente, a recepção dos aportes estrangeiros deve ser levada a cabo através de uma seleção crítica, efetuando-se uma incorporação transformadora. O que prova a força particular de uma cultura é exatamente essa capacidade de assimilar sem se perder. Um tipo de receptividade crítica e criadora era o que defendia o modernista brasileiro Oswald de Andrade, em sua proposta de antropofagia cultural: devorar (metaforicamente) os aportes estrangeiros para nos fortalecermos, como faziam (literalmente) os índios tupinambás com os primeiros colonizadores do Brasil. No mesmo ano de 1928, num registro diferente, José Carlos Mariátegui propunha um americanismo não essencialista mas virtual, um pensamento hispano-americano que devia ser "elaborado", sem rechaçar os elementos europeus constitutivos. Outro engano em que já incorreram os discursos culturais latino-americanos, e que se deveria evitar, é conceber a cultura em geral e a arte em particular como meros testemunhos das condições socioeconômicas. Essa ilação, que a história e a antropologia contemporâneas desmentem, tem efeitos lamentáveis sobre a cultura e a arte. Considerar que um país pobre deve ter cultura para pobres, e arte que tenha por única temática a miséria, é defender um tipo de populismo paternalista, politicamente inaceitável. Os intelectuais populistas têm uma concepção muito pejorativa do "povo". Pretendendo oferecer-lhe uma cultura que esteja "ao seu alcance", impedem esse mesmo povo de receber informações mais complexas, mantendo-o numa condição de minoridade intelectual e impedindo-o de vislumbrar caminhos alternativos. Ligado ao nacionalismo populista, vem o culto do folclore. É óbvio que o folclore é uma riqueza cultural que deve ser preservada. Mas querer restringir as culturas latino-americanas a seus aspectos folclóricos significa impedi-las de evoluir, de inovar. Significa também oferecer aos outros - aos países de economia desenvolvida e de cultura sedimentada - exatamente a imagem que eles desejam ter de nós: exóticos, vestidos de poncho e chapéu de palha, pitorescos com nossas danças e nossas crenças, em suma, desafortunados e divertidos ao mesmo tempo. Ora bem: a América Latina não é apenas folclore. Temos grandes metrópoles com acesso à informação e à tecnologia avançada. Temos artistas e intelectuais capazes de dialogar de igual para igual com os dos países ditos desenvolvidos. O que devemos recusar da Europa e dos Estados Unidos não são suas culturas, mas a imagem que eles querem ter da nossa: aquela imagem folclórica, o espetáculo de uma pobreza pitoresca para ser visitada por turistas, ou de um "real maravilhoso" que só é maravilhoso para quem não vive sempre nele. Infelizmente são freqüentes, na América Latina, manifestações antiintelectuais, em nome de uma "espontaneidade", de uma "alegria", de uma "afetividade" ou de uma "magia" consideradas como nossa preciosa contribuição ao mundo. Em nome dessa espontaneidade, recusa-se todo experimentalismo ou rigor artístico, tarjando-os de "formalismo" e "elitismo" e considerando-os como incompatíveis com nossa "índole" e nossa "realidade". Deprecia-se também o pensamento abstrato, o discurso teórico e argumentativo, a pesquisa universitária, todos qualificados de "intelectualismo estéril". Que os latino-americanos sejam intuitivos, criativos, improvisadores e telúricos, que nossas manifestações artísticas sejam freqüentemente mais vitais do que as manifestações dos europeus, extenuados depois de terem lido todos os livros e terem chegado à conclusão de que a carne é triste - tudo isso é, para nós, uma vantagem. Mas transformar essas qualidades espontâneas ou circunstanciais em elementos suficientes para a consolidação de uma cultura ou de uma arte, é daninho tanto do ponto de vista cultural como do político. A criatividade destituída de uma base de informação vasta e sólida desemboca numa produção sem autocrítica e sem parâmetros, que será recebida pelos compatriotas sem nenhuma elevação do nível cultural e, pelos estrangeiros, como diversão inócua, demonstração tranqüilizadora (para eles) de nossa ingenuidade. Por outro lado, a difusão de uma cultura de massa uniformizadora terá seu objetivo facilitado num meio cultural esquecido de sua tradição intelectual e carente de discurso crítico. O mais lamentável é que a América Latina tem uma longa e respeitável tradição ensaística de reflexão sobre suas culturas, que foi substituída pelos discursos populistas e politicamente estereotipados dos anos 60, para ser em seguida sufocada pelas tolices internacionais difundidas pela mídia, encontrando-se agora ameaçada de esquecimento e substituída pela imitação passiva. O grande destino da América Latina não é encerrar-se em Macondos reais, nem morrer de sede corporal e cultural num Grande Sertão geograficamente circunscrito. Também não deveria ser imitar servilmente as nações hegemônicas. O Velho Mundo, ao olhar o Novo, deveria encontrar não o seu próprio rosto espelhado e degradado, nem um rosto totalmente exótico destinado a diverti-lo ou comovê-lo a distância, mas um rosto que devolvesse o seu olhar e que lhe demonstrasse que há outras maneiras de olhar a si mesmo e ao outro. Nosso objetivo deveria deixar de ser "abafar na Europa", e simplesmente mostrar a ela o que fizemos de diferente com o que ela nos trouxe. Além disso, num mundo atualmente colonizado pelos Estados Unidos, a América Latina pode converter-se numa opção cultural diversa dentro da globalização. Isso não se conseguirá com o isolamento cultural, nem com o cultivo de sua imagem folclorizada, mas com sua entrada efetiva no conjunto de discursos culturais de nosso tempo. Para se impor no discurso internacional, os latino-americanos precisam dispor de informações tão atualizadas, de armas conceituais tão afiadas e de formas artísticas tão apuradas como aquelas de que dispõem as culturas que ainda são hegemônicas. Tratar nosso patrimônio cultural com informações internacionais atualizadas é a melhor maneira de o manter vivo e ativo. Lutar contra a pobreza material e conservar nossa riqueza cultural é o desafio que nós, latino-americanos, deveremos enfrentar no século XXI.