Trecho do livro O CASTELO NA FLORESTA

LIVRO I A BUSCA PELO AVÔ DE HITLER 1. Pode me chamar de D. T. É a forma abreviada de Dieter, um nome alemão, e D. T. servirá, agora que estou nos Estados Unidos da América, essa curiosa nação. Se tenho de recorrer a reservas de paciência, é porque o tempo aqui passa sem sentido para mim, e esse é um estado que nos predispõe à rebelião. Será que é por isso que estou escrevendo um livro? Entre meus antigos companheiros, tínhamos de jurar que jamais empreenderíamos esse tipo de ação. Eu era, afinal, membro de um grupo de inteligência sem rival. Sua classificação era ss, Seção Especial IV-2a, e estávamos diretamente sob a supervisão de Heinrich Himmler. Hoje, o homem é visto como um monstro, e eu não procuraria defendê-lo - ele se revelou um monstro infernal. Não obstante, Himmler tinha uma mente original, e uma de suas teses leva-me para minhas intenções literárias, que não são, prometo, rotineiras. 2. A sala que Himmler utilizava quando falava para nosso grupo de elite era um pequeno salão de leitura com painéis de nogueira escura, e estava limitada a vinte assentos organizados em quatro fileiras ascendentes de cinco. Minha ênfase, no entanto, não estará em tais descrições. Prefiro me preocupar com os conceitos heterodoxos de Himmler. Eles podem até ter me estimulado a começar um relato de memórias que está destinado a ser perturbador. Sei que navegarei em um mar de turbulências, pois devo desarraigar muita crença convencional. Uma cacofonia explode em meu espírito diante desse pensamento. Na qualidade de oficiais da inteligência, buscamos com freqüência deformar nossas descobertas. A falsidade, afinal, possui sua própria arte, mas esta é uma operação que me pedirá para renunciar a tais habilidades. Chega! Deixe-me apresentar-lhe Heinrich Himmler. Você, o leitor, deve estar preparado para um momento nada fácil. Esse homem, cujo apelido, pelas costas, era Heini, já se tornara, em 1938, um dos quatro líderes realmente importantes da Alemanha. Mas seu interesse mais querido e secreto era o estudo do incesto. Esse tema dominava nossas mais altas pesquisas e nossas descobertas eram reveladas em conferências fechadas. O incesto, propunha Heini, sempre fora corrente entre os pobres de todos os países. Até nosso campesinato havia sido muito afetado, sim, ainda no século XIX. "Normalmente, ninguém nos círculos cultos se ocupa de falar da questão", observava ele. "Afinal, não há nada a ser feito. Quem se daria ao trabalho de dizer que algum pobre infeliz é produto confirmado de um incesto? Não, todo establishment de toda nação civilizada procura varrer esse tipo de coisa para baixo do tapete." Quer dizer, todas as altas autoridades governamentais dos governos do mundo, exceto nosso Heinrich Himmler. Ele tinha, de fato, as idéias mais extraordinárias fermentando atrás de seus óculos infelizes. Devo repetir que, para um homem com uma cara sem queixo e suave, ele certamente exibia uma mistura frustrante de brilho e estupidez. Por exemplo, declarava-se pagão. Predizia que haveria um futuro saudável para a humanidade depois que o paganismo dominasse o mundo. As almas de todos se enriqueceriam nesse momento com prazeres até então inaceitáveis. Porém, nenhum de nós podia conceber uma orgia em que a carnalidade se elevasse a tal grau que fosse possível encontrar uma mulher disposta a se jogar num rolo selvagem com Himmler. Não, nem mesmo no espírito mais inovador! Pois sempre se podia ver seu rosto como ele deveria ter sido num baile escolar, aquele olhar desaprovador de óculos do tímido, alto, magro, um jovem cheio de inaptidão física. Já tinha então uma pequena pança. Lá estava ele, pronto para esperar encostado na parede, enquanto o baile prosseguia. Mas ele se tornou obcecado ao longo dos anos por questões que outros nem ousavam mencionar em voz alta (o que, devo dizer, costuma ser o primeiro passo para uma idéia nova). De fato, dava muita atenção ao retardamento mental. Por quê? Porque Himmler era adepto da teoria de que as melhores possibilidades humanas jazem perto das piores. Então, estava propenso a pressupor que crianças promissoras, quando encontradas em famílias pobres, anódinas, poderiam ser "incestuárias". A palavra, em alemão, tal como ele a cunhou, era Inzestuarier. Não gostava do termo mais comum dessa desgraça, Blutschande (escândalo de sangue), ou, como é às vezes empregado em círculos polidos, Dramatik des Blutes (drama de sangue). Nenhum de nós se sentia suficientemente qualificado para dizer que sua teoria poderia ser descartada. Ainda nos primeiros anos da ss, Himmler havia reconhecido que uma de nossas principais necessidades era desenvolver grupos de pesquisa excepcionais. Tínhamos o dever de pesquisar até as últimas conseqüências. Como dizia Himmler, a saúde do nacional-socialismo dependia de nada menos do que essas letzte Fragen (últimas questões). Deveríamos explorar problemas dos quais outras nações não ousavam nem chegar perto. O incesto estava no topo da lista. O pensamento alemão tinha de voltar a ser a principal inspiração do mundo culto. Por sua vez - assim prosseguia sua conexão não declarada -, Heinrich Himmler deveria receber muito reconhecimento por seu profundo ataque aos problemas que se originam no meio agrícola. Ele enfatizaria a questão subjacente: a agricultura dificilmente poderia ser investigada sem que se compreendesse o camponês. E compreender esse homem da terra era falar de incesto. A essa altura, eu lhe garanto, ele erguia a mão e fazia exatamente aquele pequeno gesto que Hitler costumava empregar - uma virada afetada do pulso. Era o jeito de Heinrich dizer: "Agora chega a carne. E com ela... as batatas!". E partia para uma peroração: "Sim, incesto! Esta é uma razão muito boa para a devoção dos velhos camponeses. Um medo agudo do pecador está destinado a se revelar por um de dois extremos: devoção absoluta à prática religiosa, ou niilismo. Posso lembrar de meus dias de estudante que o marxista Friedrich Engels escreveu certa vez: 'Quando a Igreja Católica concluiu que era impossível evitar o adultério, tornou o divórcio impossível de ser obtido'. Uma observação brilhante, ainda que venha da boca errada. O mesmo se pode dizer do escândalo de sangue. Ele também é impossível de evitar. Então, o camponês procura se manter devoto". Fez um sinal afirmativo com a cabeça. E repetiu o gesto, como se duas boas bombeadas de sua cabeça pudessem ser o mínimo necessário para nos convencer de que estava falando de todo o coração. Com que freqüência, perguntou, o camponês médio do último século poderia evitar essas tentações do sangue? Afinal, isso não era tão fácil. Os camponeses, era preciso dizer, não costumavam ser pessoas atraentes. Suas feições eram gastas pelo trabalho duro. Ademais, exalavam o cheiro do campo e do celeiro. Os odores pessoais estavam à mercê dos verões quentes. Nessas circunstâncias, os impulsos básicos não desencadeariam inclinações proibidas? Tendo em vista a penúria de sua vida social, como eles poderiam adquirir a capacidade de ficar longe de se enredar com irmãos e irmãs, pais e filhas? Não chegou a falar da barafunda de membros e torsos formada por três ou quatro crianças numa mesma cama, nem da naturalidade tosca do trabalho mais agradável de todos - aquele gozo físico resfolegante, febril, carnoso, morro acima -, mas declarou, sim, que "mais do que uns poucos no setor agrícola chegam a ver, quer queiram quer não, o incesto como uma opção aceitável. Quem, afinal, tem maior probabilidade de achar as honradas feições endurecidas pelo trabalho do pai ou do irmão particularmente atraentes? As irmãs, é claro! Ou as filhas. Com freqüência, são as únicas. O pai, depois de criá-las, continua a ser o foco de sua atenção". Mérito de Himmler. Ele vinha armazenando teorias na cabeça havia duas décadas. Grande crente em Schopenhauer, também daria proeminência a uma palavra relativamente nova em 1938: genes. Esses genes, dizia, eram a encarnação biológica do conceito schopenhaueriano da Vontade. Eram o elemento básico dessa misteriosa Vontade: "Sabemos que esses instintos podem ser transmitidos de uma geração para a próxima. Por quê? Eu diria que é da natureza da Vontade permanecer fiel a suas origens. Eu até falo dela como uma Visão, sim, cavalheiros, uma força que vive no âmago de nossa existência humana. É a Visão que nos separa dos animais. Desde o início de nosso tempo na terra, nós, humanos, buscamos nos elevar às alturas não vistas que se encontram adiante. "Evidentemente, há impedimentos a essa grande meta. O mais excepcional de nossos genes precisa ainda ser capaz de superar as privações, humilhações e tragédias da vida à medida que os genes são transmitidos de pai para filho, geração após geração. Os grandes líderes, vou lhes dizer, são raramente produto de um pai e uma mãe. É mais provável que o raro líder seja alguém que conseguiu romper os laços que seguraram dez gerações frustradas que não conseguiram expressar a Visão em suas vidas, mas a transmitiram através de seus genes. "Não preciso dizer que cheguei a esses conceitos meditando sobre a vida de Adolf Hitler. Sua ascensão heróica ressoa em nossos corações. Uma vez que ele advém, como sabemos, de uma longa linhagem de modestos camponeses, sua vida demonstra uma realização super-humana. A admiração reverente e absoluta deve nos inundar." Como agentes da inteligência, sorríamos por dentro. Aquela fora a peroração. Agora nosso Heinrich estava pronto para entrar no miolo da coisa: "A verdadeira questão a ser perguntada é como o brilho da Visão se protege de ser embaçado pela mistura? Isso está implícito no processo da assim chamada reprodução normal. Contemplem a multidão de milhões de espermatozóides. Um deles tem de viajar até o óvulo da fêmea. Para cada espermatozóide solitário nadando no mar uterino, aquele óvulo avulta como um cruzador de guerra". Fez uma pausa antes do sinal afirmativo com a cabeça. "A mesma disposição para o auto-sacrifício que leva os homens em guerra a um ataque morro acima contra uma crista ameaçadora deve existir no espermatozóide saudável. A essência da semente masculina é que ela está pronta a se entregar a uma imolação como essa a fim de que uma delas, pelo menos, atinja o óvulo!" Olhou-nos fixamente. Éramos capazes de compartilhar sua excitação? "A próxima questão", disse ele, "logo surge. Os genes da mulher serão compatíveis com a célula de esperma que conseguiu alcançá-la? Ou esses elementos separados encontrarão seus respectivos genes em disputa? Estarão em vias de agir como maridos e esposas infelizes? Sim, eu responderia, a disputa é com freqüência o caso prevalecente. O encontro pode se revelar compatível o suficiente para que a procriação ocorra, mas dificilmente há garantias de que a combinação de seus genes esteja em harmonia. "Portanto, quando falamos do desejo humano de criar aquele homem que encarnará a Visão - o Super-Homem -, temos de considerar as chances. Nem mesmo uma em um milhão de famílias pode nos oferecer um marido e uma esposa que sejam suficientemente próximos na inclinação de seus genes para produzir um filho milagroso. Talvez nem mesmo uma em cem milhões. Não!" - de novo a mão erguida - "digamos, perto de um milhão de milhões. No caso de Adolf Hitler, os números podem se aproximar das distâncias espantosas que encontramos na astronomia. "Assim, senhores, a lógica proporia que qualquer Super-Homem que encarne a Visão está destinado a surgir da união de ingredientes genéticos excepcionalmente similares. Somente então essas encarnações separadas da Visão estarão propensas a reforçar-se mutuamente." Quem não perceberia para onde se dirigia Heinrich? O incesto oferecia a possibilidade mais próxima para essa unidade de propósito. "No entanto", disse Himmler, "para ser razoável, devemos concordar também que a vida nem sempre está inclinada a garantir um tal evento. Machos e fêmeas degradados são os que usualmente vêm ao mundo dessas intimidades familiares. Temos de reconhecer que os produtos do incesto costumam sofrer de doenças infantis e mortes prematuras. As anomalias abundam, até mesmo exibições de monstruosidades físicas." Ele estava diante de nós, triste e severo. "Este é o preço. Não somente é provável que muitas tendências boas reforçadas estejam presentes em um incestuário, mas inclinações infelizes também podem ser magnificadas. Portanto, a instabilidade é um produto comum do incesto. A idiotia fica à espreita. E, quando existe uma possibilidade vital para o desenvolvimento de um grande espírito, esse ser humano raro deve ainda superar uma grande quantidade de frustrações, suficientemente profundas para desarticular o cérebro ou provocar uma morte prematura." Assim falou Heinrich Himmler. Acho que todos nós ali presentes sabíamos qual era o subtexto dessas observações. Lá em 1938, procurávamos (no maior segredo, pode ter certeza) determinar se nosso führer era um incestuário de primeiro ou de segundo grau. Ou nenhum dos dois. Se não fosse nenhum deles, a teoria de Himmler permaneceria sem fundamento. Mas, se nosso führer fosse um verdadeiro produto de incesto, então ele seria mais do que um exemplo fulgurante da probabilidade de sua tese, seria a prova em pessoa. 3. Estou disposto a falar da obsessão que girava em torno de Adolf Hitler. Contudo, o que traz mais uma nuvem escura para o nosso ânimo do que uma pergunta que não traz uma resposta? Ainda hoje, a primeira obsessão continua a ser Hitler. Onde está o alemão que não tenta entendê-lo? No entanto, onde se pode achar um que esteja contente com a resposta? Devo surpreendê-lo. Não sofro desse mal específico. Vivo com a confiança de que estou em condições de compreender Adolf. Pois o fato é que eu o conheço. Devo repetir. Eu o conheço de alto a baixo. Para tomar emprestada uma expressão dos americanos, tendo em vista que são capazes de captar a vulgaridade, estou preparado para dizer: "Sim, eu o conheço do cu à garganta". Não obstante, ainda estou obcecado. Mas é por um problema completamente diferente. Quando penso em contar como o conheço tanto, surge uma ansiedade que pode ser comparada a mergulhar à noite de um penhasco a prumo em águas escuras. Que fique entendido, portanto, que no começo avançarei com cautela e não direi mais do que era acessível então à SS. Por enquanto, isso deve ser suficiente. Há detalhes a oferecer relativos às suas raízes familiares. Na Seção Especial IV-2a - como já expliquei -, cercávamos nossos sentimentos com sigilo imaculado. Tínhamos de fazer isso. Éramos os mais dispostos a penetrar nas questões mais indigestas. Tínhamos de viver com o medo de desentranhar respostas venenosas o bastante para pôr em perigo o Terceiro Reich. Por outro lado, tínhamos uma confiança especial. Depois que obtínhamos nossos fatos, mesmo que se revelassem prejudiciais, ainda poderíamos escolher as inverdades que estimulariam os sentimentos patrióticos do populacho. Evidentemente, não era possível garantir de antemão que cada descoberta seria administrável. Talvez revelássemos um fato explosivo. Um exemplo: o avô paterno de Adolf teria sido judeu? 4. Essa era uma possibilidade. Outras eram quase tão calamitosas quanto. Durante um período, fizemos uma investigação sobre um rumor semicômico, mas delicado. Monorquidismo. Nosso führer pertenceria àquele grupo de homens infelizes e hiperativos que possuem apenas um testículo? É verdade que ele invariavelmente cobria a virilha com uma das mãos sempre que uma foto estava prestes a ser batida, um gesto clássico, compreensivelmente, se você está pronto para proteger o testículo remanescente. Mas uma coisa é notar essa vulnerabilidade, outra é comprová-la. Embora fosse possível obter resultados com facilidade mediante entrevistas com as poucas mulheres que haviam tido relações íntimas com o führer e ainda estavam vivas, como controlaríamos as repercussões? E se Hitler ficasse sabendo que alguns oficiais da ss estavam, por assim dizer, manuseando seu(s) genital(ais)? Tivemos de desistir do projeto. Foi uma decisão de Himmler: "Se nosso Estimado Líder se revelar um incestuário de primeiro grau, então todas as questões sobre monorquidismo estarão subordinadas a isso. Afinal, o monorquidismo é um provável subproduto do incesto de primeiro grau". Era óbvio. Deveríamos voltar à melhor explicação para a lendária Vontade do führer - Drama de Sangue! Ademais, todos nós detestávamos a possibilidade de que o avô paterno de Adolf Hitler pudesse ter sido judeu. Isso não só destruiria a tese de Himmler, mas nos obrigaria a enterrar um grande escândalo. Nossa inquietação derivava, em parte, de um rumor que começara a circular entre nós oito anos antes, em 1930, quando uma carta chegou à escrivaninha de Hitler. O jovem que a escreveu se chamava William Patrick Hitler, ninguém menos que o filho de Alois Hitler Jr., o meio-irmão mais velho de Adolf. A carta do sobrinho tinha uma ponta de chantagem. Referia-se a "circunstâncias compartilhadas na história de nossa família". (O sujeito chegara ao ponto de sublinhar estas palavras.) Era uma carta perigosa de enviar se o sobrinho vivesse na Alemanha, mas na época ele morava na Inglaterra. Quais eram, então, essas "circunstâncias compartilhadas"? William Patrick Hitler estava falando da avó do führer, Maria Anna Schicklgruber. Em 1837, ela dera à luz um filho que batizou de Alois. Maria Anna vivia em um lugar miserável chamado Strones, um povoado desgraçado da província austríaca do Waldviertel, e costumava receber quantias de dinheiro pequenas, mas regulares. Os que estavam próximos a ela supunham que vinham do pai anônimo de seu filho. Não obstante, aquele mesmo menino viria a ser o pai de Hitler. Embora Adolf só viesse a nascer em 1889 e chegasse ao poder apenas em 1933, uma história conseguira permanecer viva entre os camponeses de Strones. Era que o dinheiro vinha de um judeu abastado que morava na cidade provincial de Graz. De acordo com a lenda, Maria Anna Schicklgruber trabalhara de criada na casa desse judeu, engravidara e tivera de retornar a sua aldeota. Ao levar a criança para ser batizada, o padre da paróquia havia anotado o nascimento como "ilegítimo", uma declaração comum naquela zona. Afinal, o Waldviertel era conhecido como o asilo de pobres da Áustria. Cem anos depois, após o Anschluss em 1938, fui enviado à região e minhas descobertas se revelaram, com efeito, fascinantes. Embora seja prematuro explicar como fiquei sabendo de certas coisas, posso, no entanto, apresentar minhas conclusões. Por enquanto, isso deve ser suficiente. No momento oportuno, espero ter a coragem de contar mais. 5. O Waldviertel, situado ao norte do Danúbio, é uma terra de altos e belos pinheiros. Com efeito, Waldviertel pode ser traduzido por "bairro da mata", e os silêncios das florestas são escuros, em contraste com o verde de um campo ocasional. O solo, porém, não é receptivo à agricultura. Uma aldeota austríaca nessa região remota carregava todo o sentido da palavra "miserável". Naquele tempo, a família Hiedler (que depois se transformou em Hitler) vivia em Spital, uma espécie de vila, e os Schicklgruber, seus primos, moravam perto, na acima mencionada Strones, que afundava na lama de sua única estrada, com não mais de uma dúzia de cabanas com telhados de palha. Enquanto Strones tinha uma profusão de pocilgas ao redor de cada moradia, a bosta de vaca era mais proeminente nos campos e a fragrância do esterco de cavalo era valorizada. Tratava-se, afinal, de uma área em que muito camponês tinha de puxar seu arado através de vários graus de lama. Havia solo pegajoso como lava, regatos de lodo, brejos com cascalho, estrume e poças, torrões de terra, pedras, barro comum. Strones não tinha nem igreja. Para rezar, seus moradores tinham de caminhar até outra aldeia, Döllersheim. Lá, no registro da paróquia, o nome do filho de Maria Anna foi registrado como "Alois Schicklgruber, católico, sexo masculino" - e, como sabemos -, "ilegítimo". Maria Anna, nascida em 1795, tinha quarenta e dois anos quando Alois nasceu, em 1837. Vinda de uma família de onze filhos, dos quais cinco já estavam mortos, ela certamente poderia ter coabitado com algum de seus vários irmãos. (Himmler, é claro, não fazia nenhuma objeção a isso, pois Alois, o bastardo dela, era, repito, o pai de Adolf.) De qualquer modo, apesar da pobreza extrema dos pais de Maria Anna, ela morou com seu filho nos cinco anos seguintes em um dos dois quartos pequenos da casa paterna. O misterioso dinheiro que vinha em pequenas mas pontuais prestações ajudou a sustentar essa família. Embora estivéssemos obviamente ansiosos por achar um tesouro de cópulas intrafamiliares, esse desejo não nos permitia descartar o judeu de Graz. Com efeito, oito anos antes, em 1930, já haviam sido feitas investigações. Como relatou Himmler, Hitler, ao ler a carta de seu sobrinho, mandou-a imediatamente para Hans Frank, um advogado nazista. O führer, como muitos talvez não se lembrem mais, só se tornou chanceler em 1933, mas em 1930 Hans Frank já procurava insinuar-se no círculo íntimo do Líder. Frank tinha notícias desagradáveis para dar em relação à gravidez de Maria Anna. A probabilidade, declarou, era de que o pai tivesse sido um garoto de dezenove anos, filho de um próspero comerciante chamado Frankenberger, que era, sim, judeu. Fazia sentido. Naquele tempo, muitos herdeiros de famílias ricas tinham suas primeiras aventuras carnais com uma criada. E ela nem precisava ter idade próxima à dele. Esse tipo de iniciação era considerado pelos costumes burgueses de uma cidade provinciana como Graz uma prática razoável e indiscutível. Era visto como muito melhor do que permitir que um rapaz de boa família tivesse relações com prostitutas ou se casasse cedo demais com uma namorada de família menos próspera. Frank afirmou ter visto algumas provas conclusivas. Contou a Hitler que lhe haviam mostrado uma carta escrita por herr Frankenberger, o pai do jovem que havia deitado com Maria Anna. Essa carta prometia pagamentos periódicos para cuidar de Alois até que ele completasse catorze anos. Nosso Adolf, no entanto, discordou dessas descobertas. Disse a Hans Frank que a verdadeira história, que lhe fora transmitida por seu próprio pai, Alois, era que o verdadeiro avô havia sido Johann Georg Hiedler, um primo de Maria Anna que finalmente se casara com ela cinco anos depois do nascimento de Alois. "De qualquer modo", disse Hitler a Hans Frank, "eu gostaria de examinar essa carta do judeu para minha avó." Frank contou a Hitler que ainda não estava de posse dela. O homem que a guardava estava pedindo um preço alto demais. Além disso, a carta devia certamente ter sido fotografada. "Você viu o original?", perguntou Hitler. "Pude vê-lo no escritório dele. Havia dois sujeitos grandalhões ao seu lado. Ele tinha também uma pistola sobre a mesa. O que ele podia estar esperando?" Hitler assentiu com a cabeça. "Não se pode nem esperar um fim súbito para um homem desse tipo. A carta, no fim das contas, estará em um lugar e a cópia fotográfica em outro." Mais uma preocupação para Hitler carregar. Mas em 1938 nossa busca havia revelado alternativas. Não parecia mais indiscutível que Maria Anna ainda recebesse dinheiro pontualmente cinco anos depois do nascimento de Alois. Após seu casamento em 1842, ela e o marido, Johann Georg Hiedler, eram pobres demais para ter um lar próprio. Durante um tempo, tiveram de dormir num velho e gasto cocho usado outrora para alimentar o gado num estábulo das vizinhanças. Claro, isso não provava que ela não recebia mais o dinheiro. Johann Georg podia certamente ter bebido os fundos. Em Strones, ele se tornara uma lenda graças a suas enormes bebedeiras. Na verdade, sua grande ingestão de álcool não combinava com a suposição de que fossem tão pobres: como poderia um beberrão de cinqüenta anos como Johann Georg se casar com uma mulher de quarenta e sete, mãe de um pirralho de cinco anos, se ela não tivesse renda suficiente para permitir que ele bebesse? Além disso, o grau de suas bebedeiras dificilmente sugeriria que ele tivesse sido o pai de Alois. Com efeito, esse Johann Georg Hiedler não fizera objeções quando Maria Anna pediu ao irmão mais moço dele, também chamado Johann (mas, neste caso, Johann Nepomuk Hiedler), que ficasse com o menino e o criasse. Esse irmão mais moço era, ao contrário, um lavrador sóbrio, trabalhador, com uma esposa e três filhas, mas não tinha um filho homem. Assim, Johann Nepomuk aparecia agora como uma possibilidade provável. Não poderia ser ele o pai? Isso era certamente possível. Contudo, ainda não havíamos encontrado provas suficientes para descartar o judeu. Himmler mandou-me a Graz e me esmerei em examinar os registros antigos. Não encontrei ninguém chamado Frankenberger nos livros-razões da cidade. Estudei o Israelitische Kultusgemeinde do Registro de Judeus de Graz e obtive o mesmo resultado. Em 1496, os judeus haviam sido expulsos da região. Mesmo trezentos e quarenta e um anos depois, em 1837, na época em que Alois nasceu, eles ainda não haviam obtido permissão para voltar. Hans Frank teria mentido? Depois de olhar esses resultados, Himmler declarou: "Frank é um sujeito atrevido!". Como Heini me explicou, era preciso voltar de 1938 para 1930. Naquele momento, quando a missiva de William Patrick Hitler chegara, Hans Frank era apenas mais um advogado disposto a andar com nossa gente em Munique, mas estava claro agora o que ele havia feito. Havia inventado a carta comprometedora a fim de estimular uma relação mais estreita com seu líder. Tendo em vista a ausência do documento, Hitler não podia saber se Frank o estava inventando, dizendo a verdade ou, o que era pior ainda, estava realmente de posse daquele papel. Poderia ter sido o fim de Hans Frank se Hitler tivesse mandado um pesquisador a Graz, mas o advogado deve ter apostado que Hitler não queria saber a verdade. Uma vez que estava me preparando para ser seu assistente próximo, Himmler também me confidenciou que não usaria minha pesquisa de 1938 para contar a Hitler que não havia judeus em Graz em 1837. Em vez disso, contou a Hans Frank. Rimos em uníssono, pois compreendi imediatamente. Poderia haver alguém em nosso grupo dirigente que não estivesse procurando ter o controle sobre algum ou todos os outros? Frank estava agora nas mãos de Himmler. Obtido esse entendimento mútuo, ele serviu bem a Himmler. Em 1942 (quando Frank já era conhecido como o "açougueiro da Polônia"), Hitler ficou nervoso novamente em relação ao avô judeu e nos pediu para mandar um bom homem a Graz. Himmler, procurando proteger Hans Frank, contou ao führer que havia enviado um agente e que nenhuma prova tangível fora encontrada. Tendo em vista a preocupação de todos com a guerra, o assunto podia ser deixado mais ou menos de lado. Este foi o conselho de Himmler a Hitler.