Trecho do livro A ZONA DO DESCONFORTO

1. Casa à venda Tinha havido uma tempestade naquela noite em St. Louis. A água se acumulara em fumegantes poças escuras na calçada do aeroporto, e do banco traseiro do táxi eu via os ramos agitados dos carvalhos contra nuvens urbanas que pairavam em baixa altitude. As ruas da noite de sábado estavam saturadas de uma sensação de posterioridade, de atraso - a chuva não caía, já tinha caído. A casa de minha mãe, em Webster Groves, estava toda escura, com exceção de um abajur ligado a um timer na sala de estar. Assim que entrei, fui diretamente para a prateleira de bebidas e me servi de uma boa dose que vinha me prometendo desde o primeiro de meus dois vôos. Como um viking, eu me sentia com direito a todas as provisões que conseguisse pilhar. Estava à beira de completar quarenta anos, e meus irmãos mais velhos tinham me confiado a tarefa de viajar até o Missouri e escolher um corretor para vender a casa. Pelo tempo que eu fosse ficar em Webster Groves, trabalhando em prol do espólio, a prateleira de bebidas era minha. Toda minha! Assim como o ar-condicionado, que regulei imediatamente numa temperatura gélida. Assim como o freezer da cozinha, que julguei necessário abrir na mesma hora e vasculhar até o fundo, na esperança de encontrar alguma coisa gostosa e rica em ácidos graxos que eu pudesse aquecer e comer antes de ir para a cama.Minha mãe era muito ciosa em matéria de rotular os alimentos com a data em que os congelava. Por baixo de incontáveis sacos de cranberries, encontrei uma perca que um vizinho pescador fisgara três anos antes. Por baixo da perca, uma peça de carne assada com nove anos de idade. Percorri a casa inteira recolhendo as fotos de família de todos os aposentos. O desejo acumulado de me dedicar a essa tarefa era quase tão grande quanto o de tomar aquela primeira bebida. Minha mãe era apegada demais à arrumação formal de suas salas de estar e de jantar para enchê-las de fotografias, mas, por todo o resto da casa, cada peitoril de janela e cada mesinha transformara-se num torvelinho de porta-retratos do tipo mais barato. Enchi uma sacola de compras com o butim recolhido no alto do armário da tevê, mais uma sacola com tudo o que tirei das paredes da sala de estar, como se colhesse as fotografias nos ramos de árvores frutíferas plantadas em filas regulares num pomar. Muitas das fotos eram dos netos, mas eu também aparecia nelas - exibindo um sorriso ortodôntico de brilho metálico numa praia da Flórida, ou com um ar de ressaca em minha formatura da faculdade, ou com os ombros caídos no dia do meu malfadado casamento, ou a um metro de distância do resto da família durante uma viagem de férias ao Alaska em que minha mãe, já perto do fim da vida, decidira gastar boa parte da sua poupança de toda a vida para nos reunir. A foto do Alaska era tão lisonjeira para nove de nós que ela aplicara uma caneta esferográfica azul aos olhos da décima personagem, uma das noras, que tinha piscado no flagrante e agora, com seus olhos disformes de pontos de tinta, exibia um ar monstruoso ou insano. Pensei comigo que estava fazendo um trabalho importante, despersonalizando a casa antes da chegada do primeiro corretor. Mas, se alguém me perguntasse por que também foi necessário, na mesma noite, empilhar as mais de cem fotos numa mesa do porão e rasgar, cortar, arrancar ou tirar cada foto do seu porta-retrato e depois jogar todos os porta-retratos em sacos de compra que enfiei nos armários e guardar todas as fotos em envelopes, para que ninguém pudesse vê-las, se alguém tivesse apontado o quanto eu lembrava um conquistador que se dedica a queimar as igrejas do inimigo e a destruir seus ícones - eu teria de admitir que estava saboreando a propriedade exclusiva da casa. Eu era a única pessoa da família que passara a infância inteira aqui. Na adolescência, quando meus pais iam sair, eu contava os segundos até poder tomar, provisoriamente, posse plena da casa, e enquanto eles ficavam fora eu sofria muito porque sabia que iam acabar voltando. Nas décadas que se passaram desde então, era com ressentimento que eu vinha acompanhando aquele acúmulo de fotos de família, e sofrendo com a usurpação das minhas gavetas e armários pela minha mãe. Quando ela me pedira para remover da casa meus caixotes de livros e papéis, eu reagira como um gato doméstico em quem ela tivesse tentado instilar algum espírito comunitário. Até parece que a casa era dela... E era, claro.Aquela era a casa para a qual, cinco dias por mês ao longo de dez meses, enquanto meus irmãos e eu levávamos adiante nossas vidas costeiras, ela voltava sozinha de sua quimioterapia e caía na cama. Foi daquela casa que, um ano depois disso, no início de junho, ela ligou para mim em Nova York e disse que precisava se internar de novo para mais uma cirurgia exploratória, e então rompeu em lágrimas e pediu desculpas por decepcionar a todos e só ser capaz de nos dar más notícias. Foi naquela casa que, uma semana depois de o cirurgião balançar a cabeça desalentado e tornar a costurar seu abdome, ela atormentou a nora na qual mais confiava com perguntas sobre uma vida após a morte, e depois que minha cunhada confessara que a idéia lhe parecia totalmente despropositada por motivos de pura logística, minha mãe, concordando com ela, tinha como que feito uma marca ao lado do item "vida após a morte" e passado para o ponto seguinte na sua lista de coisas a fazer, obedecendo ao seu pragmatismo habitual, abordando as outras tarefas que sua decisão tornara mais urgentes do que nunca, como "convidar as melhores amigas uma a uma e despedir-se delas para sempre". Foi daquela casa que, numa manhã de sábado de julho, meu irmão Bob a levou de carro até sua cabeleireira, que era vietnamita, cobrava barato e a recebeu com as palavras "Oh, sra. Fran, sra. Fran, a senhora está com uma cara péssima", e foi para ela que retornou uma hora mais tarde a fim de acabar de se arrumar, porque decidira investir suas milhas longamente guardadas em duas passagens de primeira classe, e uma viagem dessas era uma ocasião em que precisava estar com a melhor aparência possível; desceu do seu quarto adequadamente vestida para a primeira classe, despediu-se da irmã, que tinha vindo de Nova York para que a casa não ficasse vazia depois da saída de minha mãe - para deixar alguém à sua espera - e então seguiu rumo ao aeroporto com meu irmão e voou para o Noroeste, à costa do Pacífico, para o resto de sua vida. A casa dela, por ser uma casa, foi suficientemente mais lenta na morte para funcionar como uma zona de conforto para minha mãe, que precisava se aferrar a alguma coisa maior do que ela mesma, mas não acreditava em entidades sobrenaturais. Sua casa era o Deus pesado (mas não infinitamente pesado) e resistente (mas não eterno) que ela tinha amado e servido e que a amparava, e minha tia tomara a atitude certa ao vir ficar ali naquela hora. Mas agora precisávamos pôr logo o imóvel à venda. Já estávamos na segunda semana de agosto, e o melhor momento para vender a casa, cujos muitos defeitos (a cozinha minúscula, o quintal desprezível, o banheiro pequeno demais do andar de cima) eram contrabalançados por sua localização na área da escola católica ligada à igreja de Maria, Rainha da Paz. Dada a qualidade das escolas públicas de Webster Groves, eu não entendia por que uma família se dispunha a pagar mais para poder morar naquela área e então poder pagar mais para mandar os filhos a um colégio de freiras, mas havia muitas coisas na condição católica que desafiavam por completo meu entendimento. De acordo com minha mãe, os pais católicos de toda St. Louis viviam formando ansiosas listas de espera naquela área, e sabia-se de famílias de Webster Groves que tinham saído de casa e mudado para outro imóvel dois quarteirões além só para se instalarem dentro de suas fronteiras. Infelizmente, depois que começava o ano letivo, o que ocorreria daqui a três semanas, os jovens pais já não se mostravam tão ansiosos. Eu sentia alguma pressão adicional para ajudar meu irmão Tom, o inventariante do espólio, a acabar depressa com aquilo. E uma pressão de tipo diferente de meu outro irmão, Bob, que insistira para eu me lembrar que o que estava em jogo ali era dinheiro de verdade. ("Muita gente reduz 782 mil dólares a 770 mil quando negocia, e acha que é basicamente o mesmo número", disse ele. "Mas não, na verdade são 12 mil dólares a menos. Você eu não sei, mas, quanto a mim, consigo imaginar muitas coisas que prefiro fazer com 12 mil dólares do que dá-los de presente a algum desconhecido que esteja comprando minha casa.") Mas a pressão mais séria vinha mesmo de minha mãe, que, antes de morrer, deixara bem claro que não havia melhor maneira de honrar sua memória e validar as últimas décadas de sua vida do que vender a casa por uma bela quantia. Contar sempre fora reconfortante para ela. Não colecionava nada além de bibelôs de Natal de porcelana dinamarquesa e blocos de lançamento de selos americanos, mas guardava listas de todas as viagens que tinha feito, de todo país onde pusera os pés, de cada um dos "Maravilhosos (Excepcionais) Restaurantes Europeus" em que tinha comido, de cada cirurgia a que fora submetida, de cada objeto de sua casa incluído nas apólices de seguro e guardado em seu cofre particular do banco. Era sócia fundadora de um clube de investimento de pequenas quantias chamado Girl Tycoons, algo como "Garotas Magnatas", cujo desempenho do fundo de ações acompanhava minuciosamente. Nos últimos dois anos de vida, à medida que seu prognóstico piorava, dedicava uma atenção especial ao preço de venda de outras casas nas redondezas, anotando sua localização e a área construída. Numa folha de papel com o título de Guia para a apresentação ao mercado do imóvel da 83 Webster Woods, ela compusera um esboço de anúncio da mesma forma que outra pessoa poderia ter composto o rascunho de seu próprio obituário: Sólida casa de tijolo em dois pisos três quartos vestíbulo central casa colonial em terreno arborizado perto do final de rua particular sem saída. Tem três quartos, sala de estar, sala de jantar com jardim-de-inverno, sala de estar no piso térreo, copa-cozinha com máquina de lavar louça GE nova etc. Duas varandas cercadas de tela, duas lareiras em funcionamento, garagem anexa para dois carros, sistema de segurança contra arrombamentos e incêndio, pisos de madeira em todos os aposentos e porão subdividido. No pé da página, depois de uma lista de eletrodomésticos e pequenas reformas recentes, vinha seu palpite final sobre o valor da propriedade: "1999 - valor estim. 350 mil dólares +." Essa cifra era dez vezes maior do que ela e meu pai tinham pagado pelo imóvel em 1965. A casa não só constituía o grosso de seu patrimônio, como era ainda o investimento mais bem-sucedido que jamais fizera. Eu não era uma pessoa dez vezes mais feliz do que meu pai, e os netos dela não tiveram uma formação dez vezes melhor do que a dela. Em que outro aspecto sua vida tivera um resultado comparável ao da valorização daquele imóvel? [...]