Trecho do livro O LIVRO NEGRO

PRIMEIRA PARTE 1. A primeira vez que Galip viu Rüya Nunca use epígrafes - elas matam o mistério da obra! Adli No entanto, se o mistério da obra precisar mesmo morrer, que seja você quem o mate; e depois ataque os falsos profetas que vivem de cultivar o mistério. Bahti Rüya estava deitada de bruços na cama, perdida na suave e quente penumbra, coberta pelas muitas dobras e ondulações da colcha quadriculada de um azul delicado. Do lado de fora, elevavam-se os primeiros sons da manhã de inverno: o ronco de um carro de passagem, o clangor de um velho ônibus, o estrépito das panelas de cobre que o fabricante de salep compartilhava com o doceiro na calçada, o apito do guarda encarregado do bom funcionamento do ponto dos dolmus¸ os táxis coletivos. Uma luz fria e plúmbea infiltrava se pelas cortinas de um azul escuro. Ainda zonzo de sono, Galip contemplava a cabeça de sua mulher, que emergia da colcha quadriculada: o queixo de Rüya se enterrava no travesseiro de plumas. A maneira como ela reclinava a fronte tinha algo de irreal, despertando em Galip uma grande curiosidade pelas visões maravilhosas que se desenrolariam na sua mente, ao mesmo tempo em que lhe inspirava medo. A memória, escrevera Celâl numa de suas crônicas, é um jardim. "Os jardins de Rüya, os jardins de Rüya...", pensara então Galip. "Não pense, não pense neles, vai ficar roído de desejo!" Contemplando a testa da mulher, porém, ele seguia pensando. Como gostaria de caminhar ao sol por entre os salgueiros, as acácias e as roseiras do jardim secreto protegido por muros altos em que Rüya, fechando cuidadosamente as portas atrás de si, mergulhava toda vez que adormecia serena. Mas sentia um medo constrangido dos rostos que lá poderia encontrar: Ora, quem vejo, como vai? Olá, você por aqui? O medo de deparar-se, desconcertado por sua curiosidade, com silhuetas masculinas inesperadas: Desculpe, caro amigo, mas quando mesmo você foi apresentado à minha mulher, ou vocês dois já se conheciam? "Três anos atrás, na sua casa, dentro de uma revista estrangeira de modas comprada na loja de Alâaddin", "nos corredores da escola secundária", "na porta do cinema onde vocês dois assistiam um filme de mãos dadas"... Não, talvez a memória de Rüya não se mostrasse tão freqüentada e impiedosa; naquele exato momento, ela talvez estivesse bem quieta, no único recanto ensolarado do jardim sombrio das suas memórias, embarcando com Galip num bote a remo... Seis meses depois que a família de Rüya se instalara em Istambul, Galip e Rüya pegaram caxumba ao mesmo tempo. Para apressar a cura das crianças, a mãe de Galip ou a mãe de Rüya, a linda Tia Suzan, e às vezes as duas juntas, costumavam levar as crianças em passeios ao Bósforo; qualquer que fosse o ônibus que tomassem, ele sempre sacolejava pelas ruas de paralelepípedos, e onde quer que ele fosse parar - em Bebek ou em Tarabya - o ponto alto da excursão era sempre um passeio pelas águas da enseada a bordo de um bote a remo. Naquele tempo, o que as pessoas temiam e respeitavam eram os micróbios, e não os remédios: todos concordavam que o ar puro do Bósforo era a melhor das curas para a caxumba das crianças. O mar estava sempre calmo pela manhã, o bote era sempre branco, e à sua espera encontravam sempre o mesmo barqueiro gentil. As duas mães se acomodavam no banco de trás do bote, Rüya e Galip se instalavam à proa, lado a lado, meio encobertos do olhar das mães pelas costas do barqueiro, que subiam e desciam num movimento constante. Logo abaixo dos seus pés e tornozelos delicados, tão parecidos, que se estendiam na direção do mar, as águas iam se abrindo lentamente, exibindo suas algas, suas manchas de óleo com as sete cores do arco-íris, as pedrinhas minúsculas e quase translúcidas, os pedaços de jornal que eles se esforçavam para ler do alto do barco, na esperança de talvez encontrarem um dos artigos de Celâl. A primeira vez que viu Rüya, seis meses antes da caxumba, Galip estava sentado num banquinho instalado em cima da mesa da sala de jantar, enquanto o barbeiro aparava seu cabelo. Naqueles dias, o barbeiro, um sujeito alto que usava um bigode igual ao de Douglas Fairbanks, vinha à sua casa cinco vezes por semana fazer a barba do Avô. Eram os tempos em que as filas para comprar café, do lado de fora da loja de Alâaddin e da torrefação do Árabe, ficavam cada dia mais compridas, em que meias de náilon só se compravam no mercado negro, em que o número de Chevrolets '56 não parava de crescer nas ruas de Istambul, em que Galip entrou na escola primária; já lia com extrema atenção as crônicas que Celâl publicava cinco dias por semana na página 2 do jornal Milliyet, com o pseudônimo de Selim Kaçmaz, e fora a Avó que lhe ensinara a ler e a escrever dois anos antes. Sentavam-se numa das pontas da mesa de jantar, e a Avó lhe desvendava com voz rouca o maior de todos os mistérios - como as letras se ligavam entre si para formar as palavras - antes de soltar densas baforadas do cigarro Bafra que nunca tirava do canto da boca; a fumaça do cigarro fazia lacrimejar os olhos do seu neto e, nas páginas da cartilha, o cavalo imenso tingia-se de azul e adquiria vida. A letra A era de at, "cavalo" em turco; e o cavalo da cartilha lhe parecia muito mais vigoroso que os pangarés de espinha arriada que via atrelados às carroças do aguadeiro manco e do vendedor e comprador de artigos usados, sempre chamado de ladrão. Naquele tempo, Galip sonhava com a possibilidade de animar aquele garboso corcel do alfabeto com uma poção mágica que lhe desse vida, fazendo-o saltar para fora da página. Mais tarde, quando foi obrigado a cursar o primeiro ano da escola primária e aprender novamente a ler e escrever com o mesmíssimo cavalo diante dos olhos, a idéia da poção mágica já lhe parecia totalmente absurda. Mas naquela ocasião, se o Avô tivesse cumprido a sua promessa e trazido para casa a tal poção que, segundo ele, era vendida em frascos da cor de romãs, Galip também teria usado a fórmula encantada nas páginas empoeiradas dos velhos números de L'Illustration, coalhados de zepelins, canhões e cadáveres enlameados da Primeira Guerra Mundial, para não falar dos cartões-postais que o Tio Melih lhes mandava de Paris ou do Marrocos; ou derramaria a poção sobre a foto da mãe orangotango amamentando o filhote que Vasif recortara da revista Dünya, ou sobre os estranhos rostos humanos que Celâl recortava dos jornais. Àquela altura, porém, o Avô não saía mais na rua, nem mesmo para ir ao barbeiro; passava os dias dentro de casa. Mesmo assim, ainda se vestia todo dia de manhã como nos tempos em que ia para a loja: calças vincadas que lhe caíam em cima dos sapatos, abotoaduras, um antigo paletó inglês de lapelas largas, do mesmo tom de cinza dos pêlos curtos de barba que despontavam no seu rosto aos domingos, além da gravata de algodão perolado que o Pai chamava de "gravata de funcionário". A Mãe se recusava a dizer guiravat, como todo mundo, e só dizia cravate, à francesa, porque vinha de uma família que já fora mais rica que a do meu pai. Mais tarde, ela e o Pai se acostumaram a conversar sobre o Avô como se ele nem estivesse ali ou fosse mais uma daquelas decrépitas casas de madeira sem pintura que viviam desabando à nossa volta; enquanto conversavam, acabavam esquecendo do Avô e suas vozes iam subindo de tom até finalmente se virarem para Galip: "Vá brincar lá em cima". "Posso tomar o elevador?" "Ele não pode andar de elevador sozinho!" "Não pegue o elevador sozinho!" "Então posso ir brincar com Vasif?" "Não, ele vai perder a paciência de novo!" Na verdade, porém, Vasif nunca se irritava. Era surdo-mudo. Não se aborrecia nunca, quando me via arrastar-me pelo chão para brincar de Passagem Secreta, enfiando-me debaixo das camas e explorando a caverna até o fundo do poço de ventilação do edifício - ágil como um gato, cauteloso como um soldado que avança pelo túnel que cavou até as trincheiras inimigas. Vasif sabia perfeitamente que eu jamais zombava dele; mas além de Rüya, que ainda não morava lá, ninguém mais na casa tinha essa certeza. Às vezes Vasif e eu passávamos séculos à janela, contemplando os trilhos do bonde. Uma das sacadas que se destacavam da fachada de concreto do nosso prédio dava de um lado para a mesquita, uma das extremidades do mundo e, do outro, para o liceu das moças, onde o mundo acabava na direção oposta; entre essas duas pontas havia uma delegacia de polícia, uma enorme castanheira, uma esquina e a loja de Alâaddin, sempre agitada como uma colméia. Às vezes, enquanto observávamos os fregueses que entravam e saíam da loja, chamando a atenção um do outro para os carros que passavam, eu sentia um medo incontrolável quando Vasif, tomado de repente por um surto de animação, emitia sons aterrorizantes, os berros de um homem adormecido que enfrentasse um demônio em seus pesadelos. "Vasif tornou a assustar Galip", dizia atrás de mim o Avô, que escutava o rádio na sua poltrona baixa diante da Avó e tentava em vão atrair sua atenção, toda concentrada, como a dele próprio, em tragar a fumaça dos seus cigarros. E em seguida, mais por hábito que por curiosidade, virava-se para nós e perguntava, "Então vamos ver, quantos carros vocês contaram até agora?". Mas nenhum dos dois demonstrava o menor interesse pelas minuciosas informações que eu cuidava de lhes transmitir em resposta sobre o número de Dodges, Packards, DeSotos, além dos Chevrolets novos que eu tinha contado. Embora o rádio ficasse ligado desde a hora em que o primeiro deles acordava pela manhã até o momento em que o último se recolhia para dormir à noite, o peludo e sereno cachorro de louça de aparência nada turca que dormia enrodilhado em cima do aparelho jamais despertava do seu sono. Enquanto a música alla turca sucedia a música alla franga -ocidental -e as novelas e notícias se alternavam com comerciais de bancos, águas-de-colônia e da loteria nacional, a Avó e o Avô falavam o tempo todo, obedecendo sempre à mesma pauta. Queixavam-se dos cigarros que tinham nas mãos, mas no tom de quem reclama de uma dor de dente com que precisa se acostumar, posto que ela não tem cura e nunca lhe dá quartel; acusavam-se mutuamente por não terem conseguido parar de fumar e, toda vez que um dos dois quase sufocava de tosse, o outro proclamava triunfalmente suas rabugices, primeiro em tom zombeteiro mas depois com nervosismo e raiva. Não levava muito tempo para que um dos dois se aborrecesse de verdade. "Me deixe em paz, pelo amor de Deus! É o único prazer que ainda me resta!" E acrescentava: "Outro dia mesmo, li no jornal que o cigarro acalma os nervos". Em seguida os dois podiam mergulhar algum tempo num silêncio em que dava para ouvir o tiquetaque do relógio na parede do corredor, mas que nunca durava muito. Pegavam cada um o seu jornal, que folheavam sempre com muito barulho, e imediatamente recomeçavam a falar; assim como falavam sem parar ao longo dos jogos de besigue de toda a tarde ou assim que os demais membros da família chegavam para a refeição da noite ou então se reuniam para ouvir o rádio; e, depois de terem lido a crônica de Celâl no jornal daquele dia: "Deviam deixar que ele assinasse com o nome verdadeiro", dizia o Avô, "aí talvez ele tomasse algum juízo!". "E na idade dele, ainda por cima!", suspirava a Avó - e então, com uma expressão genuinamente intrigada, como se a pergunta lhe ocorresse pela primeira vez quando na verdade a repetia diariamente: "Será que ele escreve mal assim porque não deixam que assine os seus artigos, ou que não deixam que assine os artigos porque escreve assim tão mal?". E o Avô, recorrendo ao argumento que os dois empregavam alternadamente e sempre lhes trazia algum consolo: "Pelo menos", dizia ele, "como não assina os artigos, muito pouca gente tem como saber que é de nós que ele debocha!". "Não, ninguém vai saber", replicava a Avó, mas num tom que Galip percebia ser irônico. "Ninguém tem como dizer que é sobre nós que ele escreve no jornal." Em seguida, o Avô, com a afetação vaga e cansada de um ator secundário que repete a mesma fala pela centésima vez, aludia a uma das crônicas que Celâl tornaria a publicar mais tarde - na época em que começou a receber semanalmente centenas de cartas dos seus leitores -quase sem modificá-las e assinando-as com seu nome verdadeiro, que se tornara famoso; alguns diziam que o fazia porque sua imaginação tinha se esgotado, outros afirmavam que a política e as mulheres não lhe deixavam mais tempo para trabalhar, enquanto outros ainda asseveravam tratar-se de pura preguiça. E o Avô repetia: "Será que pode haver alguém nesta cidade que não saiba que o edifício de que ele fala nesse artigo é o edifício onde nós moramos, caramba?". Depois disso, a Avó se calava. Nessa época, o Avô já começara a falar do sonho que o visitaria a partir de então com uma freqüência cada vez maior. Como em todas as histórias que repetiam um para o outro ao longo do dia inteiro, a Avó e ele, havia muito azul no sonho que o Avô descrevia de tempos em tempos, com os olhos cintilando de emoção. No seu sonho, contava ele, seus cabelos e sua barba cresciam a toda a velocidade, enquanto uma chuva de um azul muito escuro jamais parava de cair. Depois de escutar os detalhes do sonho com toda a paciência, a Avó dizia, "O barbeiro deve estar chegando logo", mas o Avô fechava a cara toda vez que lembravam o barbeiro. "Ele fala demais, passa o tempo todo fazendo perguntas!" Depois de falar do sonho azul e do barbeiro, houve uma ou duas ocasiões em que Galip ouviu o Avô murmurar, com uma voz que perdia o vigor: "Devíamos ter construído outro edifício, num lugar bem distante. Este edifício aqui só nos trouxe má sorte". Anos mais tarde, depois que a família vendeu todos os apartamentos e deixou o edifício Cidade dos Corações, depois que o prédio, como tantos outros da área, foi sendo colonizado por pequenas confecções de roupas, corretoras de seguros e obstetras praticantes de abortos clandestinos, Galip sempre parava, toda vez que passava diante da loja de Alâaddin, para contemplar a fachada feia e escura do edifício em que tinha morado e perguntar-se o que poderia levar o Avô a referir-se àquela má sorte num tom tão sombrio. E, já na época em que ouviu primeiro essas palavras, adivinhava que devia ser por causa do assunto em que o Avô - a quem, mais por hábito que por curiosidade, o barbeiro perguntava toda vez, "E então, quando é que o seu filho mais velho volta da África?" - detestava tocar: a volta do seu Tio Melih, que partira para a Europa mas acabara indo viver na África e que, depois, ainda levara muitos anos até voltar para a Turquia, instalando-se primeiro em Esmirna antes de voltar para Istambul. Aquele tinha sido o começo da "má sorte" para o velho: o dia em que o seu filho mais velho e mais difícil partira para o estrangeiro, abandonando a mulher e o filho, para voltar anos mais tarde com uma nova mulher e uma nova filha (Rüya, cujo nome em turco significa sonho). O Tio Melih ainda vivia em Istambul - e tinha menos de trinta anos - quando haviam decidido mandar construir aquele edifício. Foi Celâl quem contou a Galip, muitos anos mais tarde, que toda tarde o tio deixava o escritório de advocacia (onde fazia pouco mais que discutir com os clientes ou desenhar navios e ilhas desertas nas contracapas das pastas de antigos casos) para ir ao encontro do pai e dos irmãos na obra, em Nisantasi. Os operários, que já começavam a afrouxar o ritmo ao aproximar-se o fim do dia de trabalho, reagiam sempre muito contrariados ao momento em que o Tio Melih chegava, tirava o paletó, arregaçava as mangas e se punha a trabalhar na obra para tentar transmitir-lhes novo ânimo. A família, na época, tinha dois negócios: a Farmácia Branca em Karaköy e uma loja de doces em Sirkeci que, mais tarde, transformaram em confeitaria e depois em restaurante. Sabendo que não tinham como competir com as muitas filiais da casa Haci Bekir, cujos lokums eram tidos como os melhores da cidade, eram movidos pela esperança de conseguirem melhorar as vendas dos potes de geléia de marmelo, figo e cereja que a Avó preparava e alinhava com capricho nas prateleiras. Foi por essa época que o Tio Melih começou a falar que um dos membros da família deveria ir para a França ou a Alemanha aprender o estilo europeu de fabricar geléias; era importante descobrir onde se podia comprar o melhor papel laminado para embalar marrons-glacês, estudar uma associação com os franceses para montar uma fábrica de sais de banho de várias cores -podia ser uma boa idéia visitar as indústrias que vinham falindo uma atrás da outra, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, como que atingidas por uma estranha epidemia, para comprar algumas de suas máquinas - e talvez ainda para comprar a bom preço um piano de cauda para a Tia Hâle e, além de tudo, levar o pobre Vasif para ser examinado por um bom especialista em cérebro e em ouvido, um neurologista competente da França ou da Alemanha. Quando, dois anos mais tarde, o Tio Melih e Vasif partiram para Marselha a bordo de um navio romeno (o Tristana), cuja foto cheirando a água-de-rosas Galip encontrou numa das muitas caixas vazias de perfume da Avó e que Celâl viria a descobrir, oito anos mais tarde e num dos recortes de jornal de Vasif, ter naufragado ao se chocar com uma mina flutuante no mar Negro, o edifício já estava pronto, mas a família ainda não se instalara. Ao cabo de um ano, quando desembarcou sozinho do trem na estação de Sirkeci, Vasif ainda era surdo e mudo ("evidentemente", como diria a Tia Hâle toda vez que o assunto voltava à baila, mas num tom cujo motivo e cujo mistério Galip só iria elucidar muitos anos mais tarde); segurava contra o peito um aquário onde já nadavam em boa quantidade os peixes japoneses cujos tátara-tátara-netos ainda lhe trariam muitas alegrias cinqüenta anos mais tarde. Nos primeiros dias, ele se recusava a separar-se dos peixes um momento sequer; passava horas infindáveis contemplando o aquário, o fôlego curto de emoção, às vezes tomado pela melancolia e com os olhos cheios de lágrimas. Na época da volta de Vasif, Celâl e sua mãe moravam no apartamento do terceiro andar, que mais tarde seria vendido a um armênio, mas como era preciso mandar dinheiro para o Tio Melih poder continuar suas pesquisas comerciais pelas ruas de Paris, alugaram o apartamento e se mudaram para o pequeno sótão de teto inclinado na cobertura do edifício, que antes servia como depósito; metade da área foi transformada num pequeno apartamento. O Tio Melih continuava a mandar cartas de Paris, contendo receitas de bolos e geléias, fórmulas para sopas e águas-de-colônia, além de fotos dos atores e das bailarinas que consumiam e usavam esses produtos. Recebiam também caixas repletas de amostras de pasta de dente sabor hortelã, marrons-glacês, bombons recheados de licor, capacetes de bombeiro e gorros de marinheiro para crianças. À medida que as cartas e os pacotes ficaram mais escassos, a mãe de Celâl começou a se perguntar se não deveria voltar para a casa dos seus pais. No entanto, para que finalmente se decidisse a deixar o prédio, levando consigo seu filho e indo instalar-se na casa de madeira em Aksaray onde viviam sua mãe e seu pai - pequeno funcionário de uma fundação de caridade -, foi preciso que a Segunda Guerra começasse e, logo em seguida, recebessem um cartão-postal muito estranho, todo em marrom e branco, mostrando uma mesquita diferente e um avião em pleno vôo, que o Tio Melih lhes enviara de Binghazi para anunciar que todos os caminhos de volta à Turquia estavam minados. E foi só com a chegada de um novo cartão-postal, dessa vez colorido à mão e exibindo a imagem de um hotel em estilo colonial -o mesmo que serviria mais tarde de cenário a um filme americano em que espiões e traficantes de armas se apaixonavam num bar pela mesma mulher -, que a Avó e o Avô ficaram sabendo que o Tio Melih se casara pela segunda vez com uma jovem turca que conhecera em Marrakesh e que sua nova nora pertencia a uma linhagem que remontava ao Profeta Maomé, sendo portanto uma seyyide, uma princesa -além de lindíssima. (Anos mais tarde, muito depois de ter passado longas horas distraído decifrando as nacionalidades de cada uma das bandeiras hasteadas no segundo piso do hotel, Galip um dia contemplava por acaso esse mesmo cartão quando, recorrendo ao estilo usado por Celâl nas suas histórias sobre os "gângsteres de Beyoglu", concluiu que devia ter sido num dos quartos daquele edifício que lembrava um bolo de creme que "Rüya tinha sido concebida".) Seis meses depois, um novo postal lhes chegou de Esmirna, mas ninguém acreditou que tivesse sido de fato enviado pelo Tio Melih, pois a essa altura todos já estavam convencidos de que ele nunca mais iria voltar para a Turquia; circulavam até rumores de que ele e a nova mulher tinham se convertido ao cristianismo, juntando-se a um grupo de missionários que partira rumo ao Quênia disposto a construir, num vale onde os leões caçavam antílopes de três chifres, uma igreja para abrigar a seita em que tanto o Crescente quanto a Cruz eram adorados. Em seguida, de acordo com as informações de uma pessoa que afirmava conhecer os parentes da nova nora em Esmirna, o Tio Melih esteve a ponto de ficar milionário, graças a negócios um tanto nebulosos (como o contrabando de armas, o suborno de um rei etc.) que mantivera no Norte da África no decorrer da guerra; no entanto, incapaz de contrariar os caprichos da nova esposa - já célebre pela grande beleza -, aceitara acompanhá-la até Hollywood, onde ela estava certamente destinada a tornar-se uma estrela de fama internacional: sua fotografia já vinha aparecendo em revistas árabes e francesas. No entanto, no cartão-postal que a família fez circular ao longo de muitas semanas pelos vários andares que ocupava -e cuja superfície chegaram a arranhar com desconfiança em alguns pontos, como se suspeitas- sem de sua autenticidade -, o Tio Melih limitava-se a dizer que adoecera de tantas saudades da terra natal, e que por isso ele e a mulher tinham resolvido voltar. "Agora estamos bem", dizia ele; assumira a direção, "com uma concepção nova, bem mais moderna", dos negócios do sogro, que comerciava com figos e tabaco em Esmirna. O cartão-postal que lhes enviou pouco depois, todavia, vinha redigido num estilo tortuoso, "mais enrolado que os cabelos de um africano", diziam. Suscitou comentários que variavam muito de andar para andar do prédio, tendo em vista os problemas de partilha de bens que, mais adiante, poderiam provocar uma guerra surda na família. Quando Galip leu o postal, muitos anos mais tarde, não achou sua linguagem tão obscura assim. Tudo que o Tio Melih lhes comunicava era seu desejo de regressar logo e se instalar em Istambul, aproveitando para anunciar-lhes o nascimento da filha, cujo nome, acrescentava, ainda não tinha escolhido. O nome de Rüya, aliás, Galip descobriu pela primeira vez num desses cartões-postais que a Avó prendia na moldura do grande espelho que ficava em cima do bufê onde guardava o serviço de licor. Entre essas imagens de igrejas, pontes, paisagens marinhas, torres, navios, mesquitas, desertos, pirâmides, hotéis, parques e animais, tantas que pareciam formar uma segunda moldura em torno do espelho e que, de tempos em tempos, despertavam acessos de cólera no Avô, havia flagrantes de Rüya ainda bebê e na primeira infância. Naquele tempo, contudo, Galip se interessou bem menos pela filha do seu tio (ou sua cousine, como as pessoas começavam a dizer nessa época, empregando a palavra francesa), que sabia ter a mesma idade que ele, do que pela caverna sombria, e propícia aos sonhos, do mosquiteiro sob o qual dormia Rüya, à entrada da qual Tia Suzan, a descendente do Profeta, contemplava a câmera com ar tão triste enquanto entreabria o mosquiteiro para apontar a filha, aninhada bem ao fundo dessa gruta em preto-e-branco. Todos - tanto as mulheres quanto os homens - só foram compreender muito mais tarde que, quando as fotos de Rüya bebê começaram a circular de mão em mão pelos apartamentos, era a beleza daquela mulher que os mergulhava num silêncio sonhador. Naquela época, a pergunta que não saía de todas as bocas era quando o Tio Melih e sua nova família iriam chegar em Istambul, e em qual andar do edifício se instalariam. A essa altura, a mãe de Celâl, que se casara com um advogado, morrera ainda jovem de uma doença para a qual cada médico tinha um nome diferente. E Celâl, que não suportava mais a casa infestada de teias de aranha em Aksaray, aceitara finalmente o insistente convite da Avó e voltara para o edifício, instalando-se no pequeno apartamento do sótão. Começou sua carreira de jornalista: num primeiro momento, cobria os jogos de futebol - mas logo percebeu que os resultados de alguns deles eram arranjados; em seguida, o jornal publicou os primeiros artigos, assinados com pseudônimo, nos quais ele relatava com grandes exageros de estilo crimes misteriosos e indecifráveis cometidos por maus elementos que freqüentavam os bares, os cabarés e os bordéis das ruelas de Beyoglu; inventava problemas de palavras cruzadas em que o número de quadrados negros era sempre superior ao dos brancos, substituiu o autor de um folhetim envolvendo praticantes de luta livre (que não conseguira ir ao jornal naquele dia devido à embriaguez causada pelo ópio que misturara a seu vinho); escrevia de tempos em tempos pequenas crônicas com títulos como SEU CARÁTER REVELADO PELA CALIGRAFIA, A CHAVE DOS SONHOS, SEU ROSTO E SUA PERSONALIDADE ou SEU HORÓSCOPO DE HOJE. Segundo dizem, foi nessas pequenas crônicas que começou a enviar mensagens secretas para os membros da família, os amigos e as amantes. Era encarregado ainda de uma coluna de ACREDITE SE QUISER, e dedicava o tempo que ainda lhe restava a assistir de graça os novos filmes americanos, sobre os quais escrevia críticas em seguida. Impressionados com sua produtividade, muitos começaram mesmo a dizer que a renda de todas essas atividades logo lhe permitiria casar-se e constituir família. Muito depois, quando constatou um belo dia que os antigos paralelepípedos ao longo dos trilhos dos bondes tinham sido recobertos de uma camada de asfalto para a qual não via uma razão de ser, Galip perguntou-se se a má sorte de que o Avô falava em relação ao edifício não estaria ligada à estranha promiscuidade e falta de espaço que reinavam no prédio que construíra para a família, a algum segredo vago e terrível. Na noite de primavera em que o Tio Melih desembarcou em Istambul com sua linda mulher, sua filha encantadora e uma frota de malas e baús, instalou-se de imediato, com toda a naturalidade, no apartamento do sótão até então ocupado por Celâl. Talvez só tenha agido assim para manifestar sua desfeita à família, que fizera pouco do que escrevia em seus postais. Na manhã seguinte, Galip dormiu além da hora. No seu sonho, estava sentado ao lado de uma misteriosa garota de cabelos azuis num ônibus da cidade que parecia levá-los para longe da escola onde ele deveria ler finalmente a última página da cartilha. Acordou e descobriu que na verdade estava atrasado para o colégio e que seu pai também estava atrasado para o trabalho. Sentados à mesa do café-da-manhã, que os raios do sol só atingiam uma hora por dia, a Mãe e o Pai conversavam com indiferença sobre os novos ocupantes do apartamento do sótão, no mesmo tom que empregariam para falar dos ratos que infestavam o poço de ventilação do edifício ou que sua empregada, Esma Hanim, reservava para referir-se a espectros e gênios maus; o que Galip guardou melhor na memória foi a toalha da mesa, quadriculada de azul e branco, que lhe lembrava um tabuleiro de xadrez. Não queria pensar no motivo de ter acordado tão tarde, e nem no motivo pelo qual a idéia de chegar à escola atrasado o enchia de pavor: praticamente pela mesma razão, não queria especular sobre as pessoas que tinham se mudado para o apartamento do sótão. Assim, preferiu subir para o andar dos avós, onde nada mudava nunca e tudo se repetia, mas encontrou o barbeiro fazendo a pergunta de sempre ao Avô, que não exibia uma expressão muito satisfeita. Os cartões-postais do espelho do bufê tinham sido espalhados, e por toda parte viam-se novos objetos desconhecidos; e reinava também no aposento um cheiro novo e misterioso no qual Galip mais tarde ficaria viciado. Subitamente tomado de um vago enjôo, sentiu medo e curiosidade: como seriam, como seriam na verdade, aqueles países de poucas cores que ele só vira naqueles postais? E a tia, tão linda naquelas fotos? Teve uma vontade repentina de crescer, de tornar-se logo um homem! Quando anunciou que queria cortar o cabelo, a Avó ficou muito satisfeita. Como tantas outras pessoas que falam demais, porém, o barbeiro não ia perder seu tempo levando em conta os sentimentos do menino. Em vez de deixá-lo instalar-se na poltrona do Avô, fê-lo sentar-se num banquinho que pôs em cima da mesa da sala de jantar. Além disso, a toalha azul e branca que ele usara para envolver o pescoço do Avô era bem grande, mas nem por isso o barbeiro deixou de amarrá-la com tanta força no pescoço de Galip que quase estrangulou o garoto e, como se ainda não bastasse, arrumou a toalha de modo a descer-lhe até abaixo dos joelhos, como se fosse uma saia de menina. Muitos anos mais tarde, e muito depois que se casaram (o que, pelos cálculos de Galip, ocorreu exatamente dezenove anos, dezenove meses e dezenove dias a contar desse primeiro encontro), havia manhãs em que Galip despertava e via a mulher dormindo ao seu lado, a cabeça enterrada no travesseiro, e se perguntava se o azul da coberta não o incomodava por lembrar-lhe o azul da toalha que o barbeiro tirara do pescoço do Avô e prendera ao redor do seu; mas nunca falou daquilo com sua mulher, talvez por saber que ela jamais concordaria em trocar a capa da coberta só em respeito a um capricho tão vago. Galip tinha certeza de que, a essa altura, já teriam enfiado o jornal por baixo da porta; levantou-se da cama com seu cuidado habitual, sem fazer mais barulho que uma pluma. Mas seus pés não o levaram direto até a porta; primeiro passou pelo banheiro, e depois seguiu para a cozinha. A chaleira não estava no fogão, mas ele encontrou o bule de chá na sala de visitas. A julgar pela quantidade de pontas de cigarro que transbordava do cinzeiro de cobre, Rüya devia ter ficado ali até as primeiras horas da manhã, talvez lendo um novo livro policial - ou talvez não. A chaleira estava no banheiro. Aquele aparelho assustador, o chauffe-bain, não funcionava mais -a pressão da água era insuficiente -, mas em vez de comprarem um novo aquecedor adquiriram o costume de esquentar a água do banho na chaleira. Às vezes punham a água para ferver logo antes de fazer amor, discretos e impacientes, como antigamente tinham feito o Avô com a Avó, e o Pai com a Mãe. No decorrer de uma das suas eternas discussões, que sempre começavam com as mesmas palavras, "Você devia parar de fumar!", a Avó acusara o Avô de ingratidão por nunca, em momento algum, ter se levantado da cama antes dela. Vasif observava os dois; Galip acompanhava a disputa, perguntando-se o que ela teria querido dizer. Mais tarde, Celâl tocou nesse assunto numa de suas crônicas, mas não no mesmo sentido que a Avó. Levantar-se antes que o sol surja no céu, escreveu ele, como aconselha o ditado, sair da cama ainda na escuridão completa - faz parte de uma antiga tradição camponesa; assim como o princípio segundo o qual as mulheres devem sempre se levantar antes dos maridos. Era a última frase de uma crônica em que Celâl também descrevia para seus leitores o ritual do começo do dia dos seus avós (contando como deixavam cair cinza de cigarro nas cobertas e guardavam suas dentaduras no mesmo copo das escovas de dente; a maneira como os olhos de ambos sempre corriam primeiro para os obituários do jornal); e tudo sem qualquer disfarce. Depois de ter lido o final dessa crônica, a Avó dissera, "Eu não sabia que parecíamos camponeses!". Ao que o Avô acrescentou, "Só me arrependo de não ter obrigado Celâl a tomar sopa de lentilha todo café-da-manhã, para ele ver como é a verdadeira vida no campo!". Enquanto Galip cumpria sua rotina habitual - lavar as xícaras de chá, procurar pratos e talheres limpos, tirar da geladeira, que recendia a pastirma, as azeitonas e o queijo branco que parecia um pedaço de plástico, ao mesmo tempo em que esquentava água na chaleira para fazer a barba -sentiu o impulso de fazer algum barulho que pudesse acordar Rüya, mas não lhe ocorreu nada. Quando se sentou à mesa para tomar o chá que não teve tempo de deixar infundir direito e comer umas azeitonas sem caroço com o pão de ontem, voltou sua atenção para o jornal ainda cheirando a tinta fresca que recolhera no capacho e abrira ao lado do prato, e enquanto seus olhos sonolentos percorriam algumas palavras, seu espírito enveredava por outros caminhos. Pensava que aquela noite eles dois podiam fazer uma visita a Celâl, ou então ir ao cinema, se houvesse algum filme bom passando no Palácio. Viu a crônica de Celâl e resolveu deixá-la para mais tarde, quando voltassem do cinema, mas seus olhos recusaram-se a obedecer e focalizaram a primeira frase do texto; levantou-se, deixando o jornal aberto na mesa, vestiu seu sobretudo e já se preparava para sair quando voltou para dentro de casa. Enfiando as mãos nos bolsos, em meio ao farelo de tabaco solto, ao troco miúdo e aos bilhetes usados que os forravam, dedicou alguns momentos a um tributo silencioso à beleza da sua mulher. Em seguida, virou-se, fechou a porta atrás de si sem fazer barulho, e saiu de casa. As escadas, cuja passadeira acabara de ser trocada, cheiravam a sujeira e poeira úmida. O ar do lado de fora estava frio, e a fuligem negra que a queima de carvão e óleo fazia elevar-se das chaminés de Nisantasi escurecia mais ainda a atmosfera. Lançando adiante de si o jato do seu hálito congelado, abrindo caminho em meio às pilhas de lixo espalhadas na calçada, ele entrou na fila já longa do ponto dos dolmus¸ do qual os táxis coletivos partiam para os mais variados destinos da cidade. Na calçada oposta, um velho tinha levantado o colarinho do paletó para tentar fazê-lo valer como um sobretudo; passava em revista as mercadorias do vendedor de salgados, que separava os recheados de queijo daqueles que continham carne. Num rompante, Galip deixou a fila e correu de volta até a esquina onde o jornaleiro armava sua banquinha num umbral bem protegido de porta; depois de pagar por mais um exemplar do Milliyet, ele o dobrou e enfiou debaixo do braço. Lembrou-se de Celâl imitando alguma das suas leitoras mais idosas: "Oh, Celâl Bey, Muharrem e eu gostamos tanto dos seus artigos que às vezes não conseguimos esperar e compramos dois exemplares do Milliyet no mesmo dia!". O que sempre fazia os três - Galip, Rüya e Celâl - caírem na gargalhada. Mais tarde, depois que uma simples garoa se transformou num autêntico aguaceiro e ele finalmente se instalou num dolmus, dominado pelo mau cheiro de cigarros e roupas molhadas, depois de ficar claro que nenhum dos passageiros estava disposto a travar conversa e ele passou algum tempo se distraindo da maneira como só são capazes os viciados em jornal, dobrando seu exemplar em segmentos cada vez menores, até só exibir um canto da página 2, e depois ainda de lançar um último olhar distraído pela janela, Galip começou a ler a nova crônica de Celâl.