Trecho do livro UM ROMANCE DE GERAÇÃO

PERSONAGENS: Ele (O escritor) Ela (A jornalista) CENÁRIO: Apartamento de quarto e sala, pequenos e conjugados, as portas do banheiro e cozinha também visíveis no corredor junto à entrada. Dentro do apartamento, a maior desordem: cama desarrumada, roupas e sapatos pelo chão, onde também se veem garrafas, copos, jornais, cinzeiros cheios etc. Perto de uma das paredes há várias almofadas e, mais ao centro, uma mesa com máquina de escrever e uma lâmpada de foco dirigido. Mas a maior parte do espaço é ocupada por uma estante cheia de livros. O homem, aparentando uns trinta e cinco anos, está sentado numa velha poltrona, com um copo de bebida numa das mãos e a Revista do Jockey na outra. Sobre o braço da poltrona, um cinzeiro com um cigarro aceso, que de vez em quando o homem pega para fumar. Durante toda a peça, tanto o homem quanto a mulher fumarão nervosamente, em momentos que poderão ficar espontaneamente a critério dos atores. A aparência do homem é desleixada, com a barba por fazer e usando camiseta, jeans, sandálias. No chão, ao lado da poltrona, está um rádio que transmite os preparativos para a largada de um páreo no Hipódromo da Gávea. O homem está atento ao rádio, quando a campainha toca. Ele deixa o copo e a revista no chão e, pegando o rádio e levando-o junto ao ouvido (o páreo está sendo realizado), vai atender à porta. É uma mulher de uns trinta anos, vestida esportivamente, mas com cuidado: calça comprida, blusa, colar, uma bolsa de artesanato de bom acabamento, o rosto discretamente pintado etc. Cara a cara, eles hesitam entre o gesto de apenas se apertarem as mãos - pois nunca se encontraram - ou beijarem-se no rosto. Quando ela estende a mão para ele, ele já se aproximara do rosto dela para beijá-lo. Ele então recua o rosto e estende-lhe, por sua vez, a mão. Mas ela já retirara a sua, aproximando o rosto para também beijá-lo. Eles riem, aflitos e desajeitados, mas percebe-se que isso serviu para quebrar o formalismo do encontro. O que explicará a descontração, embora um pouco forçada, de ambos, logo a seguir. Desistindo de beijarem-se ou se darem as mãos, eles apenas levantam a palma da mão direita como cumprimento e dizem: "Oi". ELE: (agora quase distraidamente, porque se concentra na narração do páreo) -Então é você? ELA: (rindo) - Eu sou eu, é claro. ELE: - É você a figura do telefone, quero dizer. Sempre que vou encontrar uma pessoa que eu não conheço - principalmente mulher - fico imaginando como é que ela é. E o engraçado é que a gente nunca acerta... Em cima do disco, porra! ELA: - Não acerta em cima do quê? ELE: - Era minha dupla exata, porra. Mataram ela em cima do disco. Era nisso que eu prestava atenção quando você entrou. (Ele, desligando o rádio, olha e percebe que ela ainda está na soleira da porta.) Ou melhor, quando você ia entrar. (Ele dá passagem para ela entrar e fecha a porta.) O que a gente nunca acerta é o jeito da pessoa. O jeito que a gente imaginava pelo telefone. Nos cavalos às vezes a gente acerta. ELA: (com um gesto "coquette", rindo, se mostrando) - E que tal? ELE: - É um vício como qualquer outro. Pode preencher a vida de um cara. Tem corrida no sábado, domingo, segunda e quinta. Nos outros três dias a gente estuda o programa. E há um universo inteiro dentro do hipódromo. Um dia, se você topar... ELA: (já no meio da sala, de pé diante dele e interrompendo-o com um ar de desafio, fazendo pose) - Que tal eu? Era isso que eu perguntei. Ficou decepcionado? Eu não sou como você imaginava? ELE: (confuso) - Não. Quer dizer, sim. Você é legal. Mas não é isso. É que se eu imaginasse você loura, bonita, de óculos, você nunca seria assim. ELA: (segura de si, porque sabe que não é feia) - Ah, você me acha feia, então? ELE: (sem jeito) - Não é isso. Quer dizer, você é bonita, porém mais magra do que eu pensei, uns detalhes assim. Fico imaginando esses caras que se casam por correspondência. Podem até mandar fotografa. Mas uma coisa é ver a pessoa de perto, "sentir" a pessoa... No final da frase o tom dele é levemente ambíguo, como uma pequena introdução para uma cantada posterior. Ela, procurando desconversar, examina o apartamento. ELA: - Pô, que zona, hein? ELE: (tirando umas coisas de cima das almofadas, para ela sentar) - A vantagem desses apartamentos é que a gente nem precisa mostrar para as visitas. Eles já estão inteiramente à mostra. (Apontando, e num tom ambíguo outra vez.) Minha cama é logo ali. (E acrescentando rápido, para disfarçar.) Quer beber alguma coisa? ELA: (já sentada nas almofadas, mas agora não muito à vontade) - O que que você tá tomando? ELE: - Vodca com gelo, quer? ELA: - Só um pouquinho. Se não, atrapalha. (E rindo.) Afinal eu estou aqui para trabalhar. Ele deixa o rádio já desligado em cima da mesa e entra na cozinha. Ouve-se o barulho do gelo sendo retirado, enquanto ela se levanta e chega até a estante, examinando os livros. Ele começa a falar lá de dentro, bem alto para que ela o escute. ELE: - Tem um amigo meu que mora num apartamento igual a este. É até aqui no Leme. Só que ele é casado. O amigo, quer dizer. E não o Leme. Quando ele - o amigo - está de sa co cheio da mulher ou ela dele, a única coisa que os dois podem fazer é ficar de costas um para o outro. Às vezes ficam um tempão assim de costas. Ele sai da cozinha trazendo um balde de gelo. Vai até uma pequena estante de tijolos, improvisada como bar, e prepara duas doses até a borda do copo. E continua a falar no mesmo tom gritado, com uma empostação teatral, como se ainda estivesse longe dela. ELE: (entregando um copo para ela) - Tem um outro amigo meu lá de Minas que é teatrólogo. Falou que vai escrever uma peça sobre eles, o casal aqui do Leme. Ele se vira de costas para arrumar qualquer coisa sobre a mesa. ELE: - E vai haver um monte de diálogos assim, um de costas para o outro. Ele se volta outra vez para ela, que permanece junto à estante, agora com um livro nas mãos (um livro onde se veja a palavra "Teatro"), mas sempre olhando para o homem. ELE: (sempre falando alto e empostado) - Ou então um deles se tranca no banheiro. Vai haver também uns diálogos assim, com uma porta entre os dois. A simbologia é evidente. A comunicação com um obstáculo no meio: a porta, a parede. Apesar da extrema proximidade física (ele se aproxima dela, ainda falando alto) que se tem num apartamento desses. Ou melhor: a proximidade física é inversamente proporcional à comunicação. É uma espécie de teorema. Você já reparou como a gente se entende bem com as pessoas por carta? Quer dizer, há a distância, o papel, as palavras que se escolhem com mais cuidado. Esse amigo meu até escreve umas matérias lá no banheiro. O cara é coleguinha seu, é jornalista... E ela também. ELA: (também quase gritando, adequando-se ao tom dele) - Como é que ela chama? ELE: (no mesmo tom) - Sandra, por quê? Você não deve conhecer. ELA: (ainda gritando) - Você não falou que ela também é jornalista? Então é possível que eu conheça. ELE: (impaciente, mas falando agora mais baixo, num tom de raiva controlada, revelando sintomas de neurastenia) - Não foi isso. Eu não falei que ela também é jornalista. Eu só falei que ela "também". Ela "também" se tranca no banheiro. E por que você tá gritando? Calma, porra, ninguém aqui é surdo. Tá nervosa por quê? ELA: (ficando mesmo nervosa e gritando, como se eles já fossem um casal antigo, numa relação deteriorada) - Eu não estou nervosa. Foi você quem começou. Você saiu da cozinha gritando como um desesperado. Então eu gritei também. Achei que aqui era assim. Todo mundo gritando como no teatro. E olha o tamanho dessa dose. Está transbordando do copo. Se tá pensando que vai me botar bêbada pra me comer mais fácil, está enganado. Eu vim aqui fazer uma entrevista. Vim trabalhar. Quer saber duma coisa, vou jogar metade desse negócio na privada. Ela entra no banheiro com o copo na mão, depois de deixar o livro em qualquer parte. E bate a porta com estrondo. Logo depois, ouve-se o ruído da tranca. [...]