Trecho do livro A INVENÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

Introdução "Consideramos estas verdades autoevidentes" Às vezes grandes textos surgem da reescrita sob pressão. No seu primeiro rascunho da Declaração da Independência, preparado em meados de junho de 1776, Thomas Jefferson escreveu: "Consideramos que estas verdades são sagradas e inegáveis: que todos os homens são criados iguais & independantes [sic], que dessa criação igual derivam direitos inerentes & inalienáveis, entre os quais estão a preservação da vida, a liberdade & a busca da felicidade". Em grande parte graças às suas próprias revisões, a frase de Jefferson logo se livrou dos soluços para falar em tons mais claros,mais vibrantes: "Consideramos estas verdades autoevidentes: que todos os homens são criados iguais, dotados pelo seu Criador de certos Direitos inalienáveis, que entre estes estão a Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade". Com essa única frase, Jefferson transformou um típico documento do século XVIII sobre injustiças políticas numa proclamação duradoura dos direitos humanos. Treze anos mais tarde, Jefferson estava em Paris quando os franceses começaram a pensar em redigir uma declaração de seus direitos.Em janeiro de 1789 - vários meses antes da queda da Bastilha -, o marquês de Lafayette, amigo de Jefferson e veterano da Guerra da Independência americana, delineou uma declaração francesa, muito provavelmente com a ajuda de Jefferson. Quando a Bastilha caiu, em 14 de julho, e a Revolução Francesa começou para valer, a necessidade de uma declaração oficial ganhou impulso. Apesar dos melhores esforços de Lafayette, o documento não foi forjado por uma única mão, como Jefferson fizera para o Congresso americano. Em 20 de agosto, a nova Assembleia Nacional começou a discussão de 24 artigos rascunhados por um comitê desajeitado de quarenta deputados. Depois de seis dias de debate tumultuado e infindáveis emendas, os deputados franceses só tinham aprovado dezessete artigos. Exaustos pela disputa prolongada e precisando tratar de outras questões prementes, os deputados votaram, em 27 de agosto de 1789, por suspender a discussão do rascunho e adotar provisoriamente os artigos já aprovados como a sua Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. O documento tão freneticamente ajambrado era espantoso na sua impetuosidade e simplicidade. Sem mencionar nem uma única vez rei, nobreza ou igreja,declarava que "os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem"são a fundação de todo e qualquer governo. Atribuía a soberania à nação, e não ao rei, e declarava que todos são iguais perante a lei, abrindo posições para o talento e o mérito e eliminando implicitamente todo o privilégio baseado no nascimento.Mais extraordinária que qualquer garantia particular, entretanto, era a universalidade das afirmações feitas. As referências a "homens","homem","todo homem","todos os homens", "todos os cidadãos", "cada cidadão", "sociedade" e "toda sociedade" eclipsavam a única referência ao povo francês. Como resultado, a publicação da declaração galvanizou imediatamente a opinião pública mundial sobre o tema dos direitos, tanto contra como a favor.Num sermão proferido em Londres em 4 de novembro de 1789, Richard Price, amigo de Benjamin Franklin e crítico frequente do governo inglês, tornou-se lírico a respeito dos novos direitos do homem. "Vivi para ver os direitos dos homens mais bem compreendidos do que nunca, e nações ansiando por liberdade que pareciam ter perdido a ideia do que isso fosse." Indignado com o entusiasmo ingênuo de Price pelas "abstrações metafísicas" dos franceses, o famoso ensaísta Edmund Burke, membro do Parlamento britânico, rabiscou uma resposta furiosa. O seu panfleto, Reflexões sobre a revolução em França (1790), foi logo reconhecido como o texto fundador do conservadorismo. "Não somos os convertidos por Rousseau", trovejou Burke. "Sabemos que não fizemos nenhuma descoberta, e pensamos que nenhuma descoberta deve ser feita, no tocante à moralidade. [...] Não fomos estripados e amarrados para que pudéssemos ser preenchidos como pássaros empalhados num museu, com farelos, trapos e pedaços miseráveis de papel borrado sobre os direitos do homem." Price e Burke haviam concordado sobre a Revolução Americana: os dois a apoiaram.Mas a Revolução Francesa aumentou bastante o valor da aposta, e as linhas de batalha logo se formaram: era a aurora de uma nova era de liberdade baseada na razão ou o início de uma queda implacável rumo à anarquia e à violência? Por quase dois séculos, apesar da controvérsia provocada pela Revolução Francesa, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão encarnou a promessa de direitos humanos universais. Em 1948, quando as Nações Unidas adotaram a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o artigo 1o. dizia: "Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos". Em 1789, o artigo 1o. da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão já havia proclamado: "Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos". Embora as modificações na linguagem fossem significativas, o eco entre os dois documentos é inequívoco. As origens dos documentos não nos dizem necessariamente nada de significativo sobre as suas consequências. Importa realmente que o esboço tosco de Jefferson tenha passado por 86 alterações feitas por ele mesmo,pelo Comitê dos Cinco ou pelo Congresso? Jefferson e Adams claramente pensavam que sim, pois ainda estavam discutindo sobre quem contribuiu com o quê na década de 1820,a última de suas longas e memoráveis vidas. Entretanto, a Declaração da Independência não tinha natureza constitucional. Declarava simplesmente intenções, e passaram-se quinze anos antes que os estados finalmente ratificassem uma Bill of Rights muito diferente em 1791. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão afirmava salvaguardar as liberdades individuais,mas não impediu o surgimento de um governo francês que reprimiu os direitos (conhecido como o Terror), e futuras constituições francesas - houve muitas delas - formularam declarações diferentes ou passaram sem nenhuma declaração. Ainda mais perturbador é que aqueles que com tanta confiança declaravam no final do século XVIII que os direitos são universais vieram a demonstrar que tinham algo muito menos inclusivo em mente. Não ficamos surpresos por eles considerarem que as crianças, os insanos, os prisioneiros ou os estrangeiros eram incapazes ou indignos de plena participação no processo político, pois pensamos da mesma maneira. Mas eles também excluíam aqueles sem propriedade, os escravos, os negros livres, em alguns casos as minorias religiosas e, sempre e por toda parte, as mulheres. Em anos recentes, essas limitações a "todos os homens" provocaram muitos comentários, e alguns estudiosos até questionaram se as declarações tinham um verdadeiro significado de emancipação. Os fundadores, os que estruturaram e os que redigiram as declarações têm sido julgados elitistas, racistas e misóginos por sua incapacidade de considerar todos verdadeiramente iguais em direitos. Não devemos esquecer as restrições impostas aos direitos pelos homens do século XVIII, mas parar por aí, dando palmadinhas nas costas pelo nosso próprio "avanço" comparativo, é não compreender o principal. Como é que esses homens, vivendo em sociedades construídas sobre a escravidão,a subordinação e a subserviência aparentemente natural, chegaram a imaginar homens nada parecidos com eles, e em alguns casos também mulheres, como iguais? Como é que a igualdade de direitos se tornou uma verdade "autoevidente" em lugares tão improváveis? É espantoso que homens como Jefferson, um senhor de escravos, e Lafayette, um aristocrata, pudessem falar dessa forma dos direitos autoevidentes e inalienáveis de todos os homens. Se pudéssemos compreender como isso veio a acontecer, compreenderíamos melhor o que os direitos humanos significam para nós hoje em dia. O PARADOXO DA AUTOEVIDÊNCIA Apesar de suas diferenças de linguagem, as duas declarações do século XVIII se baseavam numa afirmação de autoevidência. Jefferson deixou isso explícito quando escreveu: "Consideramos estas verdades autoevidentes". A declaração francesa afirmava categoricamente que "a ignorância, a negligência ou o menosprezo dos direitos do homem são as únicas causas dos males públicos e da corrupção governamental". Pouca coisa tinha mudado a esse respeito em 1948. Verdade, a Declaração das Nações Unidas assumia um tom mais legalista: "Visto que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo". Mas isso também constituía uma afirmação de autoevidência, porque "visto que" significa literalmente "sendo fato que". Em outras palavras, "visto que" é simplesmente um modo legalista de afirmar algo determinado, autoevidente. Essa afirmação de autoevidência, crucial para os direitos humanos mesmo nos dias de hoje, dá origem a um paradoxo: se a igualdade dos direitos é tão autoevidente, por que essa afirmação tinha de ser feita e por que só era feita em tempos e lugares específicos? Como podem os direitos humanos ser universais se não são universalmente reconhecidos? Vamos nos contentar com a explicação, dada pelos redatores de 1948, de que "concordamos sobre os direitos, desde que ninguém nos pergunte por quê"? Os direitos podem ser "autoevidentes"quando estudiosos discutem há mais de dois séculos sobre o que Jefferson queria dizer com a sua expressão? O debate continuará para sempre, porque Jefferson nunca sentiu a necessidade de se explicar. Ninguém do Comitê dos Cinco ou do Congresso quis revisar a sua afirmação, mesmo modificando extensamente outras seções de sua versão preliminar. Aparentemente concordavam com ele.Mais ainda, se Jefferson tivesse se explicado, a autoevidência da afirmação teria se evaporado. Uma afirmação que requer discussão não é evidente por si mesma. Acredito que a afirmação de autoevidência é crucial para a história dos direitos humanos, e este livro busca explicar como ela veio a ser tão convincente no século XVIII. Felizmente, ela também propicia um ponto focal no que tende a ser uma história muito difusa. Os direitos humanos tornaram-se tão ubíquos na atualidade que parecem requerer uma história igualmente vasta. As ideias gregas sobre a pessoa individual, as noções romanas de lei e direito, as doutrinas cristãs da alma...O risco é que a história dos direitos humanos se torne a história da civilização ocidental ou agora, às vezes, até a história do mundo inteiro. A antiga Babilônia, o hinduísmo, o budismo e o islã também não deram as suas contribuições? Como, então, explicamos a repentina cristalização das afirmações dos direitos humanos no final do século XVIII? Os direitos humanos requerem três qualidades encadeadas: devem ser naturais (inerentes nos seres humanos), iguais (os mesmos para todo mundo) e universais (aplicáveis por toda parte). Para que os direitos sejam direitos humanos, todos os humanos em todas as regiões do mundo devem possuí-los igualmente e apenas por causa de seu status como seres humanos. Acabou sendo mais fácil aceitar a qualidade natural dos direitos do que a sua igualdade ou universalidade. De muitas maneiras, ainda estamos aprendendo a lidar com as implicações da demanda por igualdade e universalidade de direitos. Com que idade alguém tem direito a uma plena participação política? Os imigrantes - não-cidadãos - participam dos direitos ou não, e de quais? Entretanto, nem o caráter natural, a igualdade e a universalidade são suficientes. Os direitos humanos só se tornam significativos quando ganham conteúdo político. Não são os direitos de humanos num estado de natureza: são os direitos de humanos em sociedade. Não são apenas direitos humanos em oposição aos direitos divinos, ou direitos humanos em oposição aos direitos animais: são os direitos de humanos vis-à-vis uns aos outros. São, portanto, direitos garantidos no mundo político secular (mesmo que sejam chamados "sagrados"), e são direitos que requerem uma participação ativa daqueles que os detêm. A igualdade, a universalidade e o caráter natural dos direitos ganharam uma expressão política direta pela primeira vez na Declaração da Independência americana de 1776 e na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.Embora se referisse aos "antigos direitos e liberdades" estabelecidos pela lei inglesa e derivados da história inglesa, a Bill of Rights inglesa de 1689 não declarava a igualdade, a universalidade ou o caráter natural dos direitos. Em contraste, a Declaração da Independência insistia que "todos os homens são criados iguais" e que todos possuem "direitos inalienáveis". Da mesma forma, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão proclamava que "Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos". Não os homens franceses, não os homens brancos, não os católicos, mas "os homens", o que tanto naquela época como agora não significa apenas machos, mas pessoas, isto é, membros da raça humana. Em outras palavras, em algum momento entre 1689 e 1776 direitos que tinham sido considerados muito frequentemente como sendo de determinado povo - os ingleses nascidos livres, por exemplo - foram transformados em direitos humanos, direitos naturais universais, o que os franceses chamavam les droits de l'homme, ou "os direitos do homem". [...]