Trecho do livro A SABINADA

Novo e breve prefácio A Sabinada foi escrito entre janeiro e julho de 1984.Vinte e cinco anos depois, ele permanece minha única incursão na historiografia.Quando de sua primeira publicação, em 1987, eu já me dedicava a estudar e traduzir alguns autores alemães, tendo publicado a primeira tradução (de Ecce homo, o ensaio autobiográfico de Nietzsche) no final de 85.Mas pode-se dizer que as inquietações de natureza mais ampla que influíram na escolha e no tratamento do tema - a preocupação com a justiça, a indignação com os crimes e desatinos humanos - também motivaram outros trabalhos meus, como a tradução de Poemas 1913-56, de Bertolt Brecht (1986), e alguns textos sobre o nazismo e o genocídio dos judeus, publicados na imprensa paulista e reunidos em Freud, Nietzsche e outros alemães (1995). O livro é agora republicado sem modificações. Atualizar ou suprimir as referências e alusões ao momento em que foi escrito, a menção ao número de habitantes de Salvador,por exemplo (p.12), implicaria também atualizar a bibliografia e talvez alterar alguns dados e considerações - ou seja, reescrever parcialmente o livro. Os leitores interessados numa abordagem mais recente da Sabinada devem recorrer aos estudos do brasilianista canadense Hendrik Kraay. Neles há uma maior contextualização da revolta na política do Império e uma discussão mais nuançada de uma questão essencial, que foi a participação do exército. Se evocarmos o período de preparação e redação deste trabalho,veremos que ele coincide com o da crise econômica no final do governo militar e da redemocratização do país.O índice de inflação chegou a ultrapassar os 200% no ano de 1983.A campanha por eleição direta para presidente ("Diretas Já!") tomava as cidades brasileiras no início de 84, já tendo havido eleições para governadores, prefeitos e parlamentares no final de 82. Assim se compreendem as alusões feitas na conclusão do prefácio original e em uma ou outra passagem do livro. Permitam-me finalizar com uma observação pessoal. Para um brasileiro nascido na década de 1950, era quase impossível, até o início da era FHC-Lula, imaginar que um dia viveria num país sem inflação e com democracia. Ao menos neste nosso canto do mundo (e nesses dois pontos específicos) as coisas estão melhores do que vinte e cinco anos atrás. Salvador,maio de 2009 Introdução No período regencial, segundo vimos, a ideia republicana andava efetivamente no ar, o que não é motivo para confundir uma verdadeira revolução republicana e separatista como a Guerra dos Farrapos (1835-45) com uma simples revolta de rua como a Sabinada (novembro 37-março 38) ou com uma simples desordem popular como a Cabanagem (janeiro 35-maio 36). Extraída de uma erudita História da inteligência brasileira, eis uma singela expressão de "desinteligência". Longe de simples desordem, a Cabanagem foi talvez a maior insurreição popular ocorrida no Brasil.Popular pelo apoio maciço da maioria miserável da população: foram índios, negros escravos e caboclos que dominaram a província do Pará durante anos. Para suprimi-la, as forças governamentais recorreram à tática da "terra arrasada", aprendida dos mercenários ingleses, dizimando de 30 a 40% dos 100 mil habitantes do Pará, até a pacificação completa em 1839. Quanto à Sabinada, a menção de alguns dados dará ideia de sua importância. Foi um movimento apoiado pelas camadas médias e baixas da população de Salvador, que tomou a cidade em 7 de novembro de 1837 e proclamou a separação da província da Bahia do então Império do Brasil. A capital ficou em poder dos revoltosos até os idos de março de 1838. Durante esse tempo, foi sitiada pelo exército organizado pelos senhores de engenho do Recôncavo. Durante o sítio houve emigração em massa devido à escassez de alimentos, e na reconquista houve destruição e morte. Entre mortos,prisioneiros e réus,uma estimativa de 5 mil pessoas seria moderada. Salvador possuía cerca de 65 mil habitantes. Transpondo esses números para a atualidade - de modo a imaginar mais vivamente o impacto sobre a sociedade baiana da época -, teríamos aproximadamente 145mil adultos implicados, em uma população total de um milhão e oitocentos mil habitantes. Nada mau para uma "simples revolta de rua". Os dados talvez impressionem,mas não dizem tudo. Na história local - provincial, provinciana - a Sabinada foi um episódio ímpar.Na história do país, foi uma das rebeliões do período da Regência (1834-40),mais uma na cadeia de revoltas que ameaçou romper a integridade do Império.As outras foram a Farroupilha, a Cabanagem e a Balaiada. Por que a separação de Portugal não trouxe a formação de vários Estados, a vitória das tendências regionalistas sobre uma força centralizadora, como se verificou nas ex-possessões espanholas? Eis uma pergunta que sempre instigou os que investigam o nosso passado.Habituados à imagem do "Brasil grande", tendemos a esquecer que ele permaneceu uno graças a certos desenvolvimentos históricos e que essa unidade esteve seriamente em jogo durante a Regência,quando era um Estado-nação recém-nascido. Os contemporâneos tinham inteira consciência do que significava a derrota ou o triunfo de cada rebelião separatista. No caso da Sabinada,o oficial enviado pelo governo central para comandar o exército da reação escreveu: "sabia-se que muitos focos havia em diferentes pontos da mesma província,que também existiam na de Pernambuco, e em muitas outras apareciam; sabia-se que o Rio Grande seria perdido,que,enfim,o Brasil receberia um golpe mortal com o progresso da revolução da Bahia". Em Ouro Preto, cidadãos parabenizaram-se nas ruas ao receber a notícia da restauração da Bahia.Uma banda de música percorreu a cidade e acenderam-se fogos de artifício. Comemorações semelhantes aconteceram no Rio de Janeiro, onde os ministros, o imperador menino e as princesas assistiram a uma missa em ação de graças pela vitória imperial. Portanto, um estudo sobre a Sabinada traz alguma contribuição para melhor se compreender um período crucial da História do Brasil.Há ainda outras considerações. Embora a maior revolta na Bahia, ela foi, entre as rebeliões da Regência, a de menor vulto. As demais mobilizaram populações maiores, sobre áreas mais extensas, por períodos mais longos. Mas os revolucionários da Sabinada, se fizeram pouco, falaram muito (baianamente, talvez). Isto é, foram pouco eficazes na concretização de seus planos,mas tiveram a preocupação de expor, convencer e justificar. Para isso valeram-se sobretudo de jornais,dos quais o mais importante foi o Novo Diário da Bahia, do médico e publicista Francisco Sabino Álvares da Rocha Vieira, o líder que veio a dar nome ao movimento. Por isso, creio, certas questões comuns a outras revoltas - certas motivações e contradições - encontraram expressão mais nítida na Sabinada.Nos artigos de imprensa,nas exortações aos soldados, nos decretos e portarias do governo revolucionário, a Sabinada revelou-se em sua dupla natureza de rebelião contra a corte do Rio de Janeiro e revolta popular contra os poderosos locais. Surpreende que uma tal irrupção revolucionária não tenha sido ainda estudada pela moderna historiografia brasileira.Se excetuarmos o trabalho pioneiro de Francisco Vicente Vianna - pouco mais que uma compilação de documentos em ordem cronológica -, temos apenas dois volumes sobre a Sabinada: o de Braz do Amaral e o de Luiz Viana Filho.Aquele de 1909, este de 1938... Braz do Amaral nos oferece uma história factual da revolta. Quando se aventura a interpretar e discernir, pisa em terreno incerto. Para ele, as rebeliões que rebentaram nas províncias ("como pragas que infestassem nossos campos") relacionavam-se à luta partidária da Regência, à oposição entre políticos liberais separatistas e conservadores a favor da centralização. Afirma, então, que a Sabinada foi tramada na corte, por adversários de Diogo Feijó.Mas é incapaz de produzir documentos em apoio a essa hipótese fantasiosa. As agitações políticas, o despreparo do povo para um regime constitucional e a ambição dos governantes seriam, segundo ele, as "causas gerais"da revolução.Como "causas particulares"vê, curiosamente, algo mais genérico e fundamental: a organização social baseada na escravidão, de onde se derivava naturalmente um sistema aristocrático e de castas que era incompatível com as nossas instituições liberais, do que devia resultar,como resultou,o ciúme dos homens de cor aspirando os lugares altos. Em relação a Braz do Amaral, a obra de Luiz Viana Filho representa um passo adiante. Ele não se contenta em desfiar os fatos: procura comentá-los, descobrir nexos e sentidos. Coloca a Sabinada na perspectiva da história recente da província, ao fazer um retrospecto da inquietação reinante desde a Inconfidência dos Alfaiates (1798). De acordo com ele, a Revolução Francesa teria dado um sentido novo e vigoroso à crise,ao mal-estar dos habitantes. As novas doutrinas eram divulgadas em sociedades políticas, lojas maçônicas e periódicos. Achando ambiente propício, induziam à revolta, criando um "círculo vicioso" de revoluções que desarranjavam o país e agravavam os problemas. Os ideais de liberdade e igualdade atraíam diferentes grupos,dizendo-lhes coisas diversas: A Revolução, na época, foi uma espécie de salsaparrilha política, servindo para todos os males. Tanto servia ao mulato revoltado contra o preconceito de cor, como ao branco nativista,que odiava o português. Ele atribui demasiado peso às ideias e à influência externa na determinação dos acontecimentos, em detrimento das condições internas (embora mencione a depressão econômica da província). Não convém desprezar o efeito do que as autoridades da época denominavam "as abomináveis ideias francesas",mas a visão que Viana Filho nos transmite é a de um movimento mundial difundindo-se em ondas concêntricas a partir de Paris e vindo bater em nossas praias. Isto por transplantar para o século passado a confrontação ideológica do século XX (influenciado, suponho, pelo clima político do Estado Novo, pela "Intentona Comunista" de 1935; seu livro é de 1938): O Brasil passou a ser o campo onde se esboçavam as atividades de duas forças internacionais: a internacional absolutista representada por Portugal [...] e a internacional liberal apoiada na França. Por serem os autores que mais extensamente se ocuparam do assunto, retornarei com frequência a Braz do Amaral e Luiz Viana Filho, para apoio ou contestação. Este livro deve ser visto como continuação de seus esforços.No trabalho intelectual, a crítica aos predecessores é sempre um reconhecimento de dívida. O autor que melhor se ocupou da Sabinada foi o canadense F. W.O.Morton, em sua magistralmente abrangente tese de doutorado, "The conservative revolution of Independence: economy, society and politics in Bahia, 1790-1840" (Oxford, 1974). Infelizmente ainda inédito,esse trabalho analisa as transformações ocorridas na Bahia, na passagem de capitania da Colônia portuguesa a província do Império do Brasil - o período entre os Alfaiates e a Sabinada, tendo a Guerra da Independência como eixo. A Independência, na Bahia, não sucedeu da mesma forma incruenta como no resto do país (à exceção do Norte). Em setembro de 1822, a tropa portuguesa concentrada em Salvador se recusou a reconhecer a separação, precipitando o conflito que se vinha desenhando desde fevereiro. Durante quase um ano,a capital controlada pelos portugueses - de onde fugia grande parte da população brasileira - foi sitiada pelo "Exército Pacificador" mantido pelo Recôncavo dos engenhos de açúcar. Esse exército, composto principalmente pelas milícias de cidadãos, contava 9 mil combatentes ao fim da luta. Em 2 de julho de 1823 ele entrou na cidade, logo após a partida da tropa portuguesa. (Ainda hoje,o 2 de Julho é a maior data cívica do calendário baiano, mais festejada que o 7 de Setembro.) Segundo Morton, a Independência resultante foi a "revolução conservadora", a revolução limitada dos proprietários de terras e engenhos, os que mais contribuíram em organização, dinheiro e homens: Eles fizeram a revolução da independência tão socialmente conservadora quanto política e militarmente bem-sucedida. A lei e a ordem foram preservadas, a propriedade e a hierarquia foram respeitadas,com extraordinária consistência,durante uma guerra civil em uma sociedade notável pela discriminação racial e as desigualdades econômicas extremas,na qual ideias de liberdade e igualdade haviam se tornado razoavelmente difundidas. A Sabinada foi a reação revolucionária a essa revolução conservadora. No capítulo a ela reservado, Morton registra inicialmente a tradição de quarteladas, o descontentamento dos militares, que os predispunha a acompanhar a pregação dos radicais civis.Depois, um resumo dos eventos mostra semelhanças entre a Sabinada e as revoltas baianas precedentes, incluindo a Independência. Quase que cada fato importante evocou um das décadas anteriores: o bloqueio a partir do Recôncavo, o êxodo de moradores, os sofrimentos da cidade, a indecisão dos líderes rebeldes, o refúgio do presidente da província num barco.Mas, diz Morton, a Sabinada foi bem mais que mera repetição da história recente. Representou o clímax de uma época, uma síntese de seus principais temas sociais e políticos: domínio do Recôncavo sobre as demais regiões, dissensões entre os militares, aliança entre a monarquia e as elites locais, "inadequação das ideias liberais ao meio brasileiro". Sua análise da liderança é algo ligeira. Constata seu caráter essencialmente "classe média", sugere tensões entre líderes civis e militares,mas não se estende sobre seus motivos e seus projetos, e o modo como apreendiam aquela realidade. Para ele, a revolta adquiriu a natureza de um "conflito de cor e classe". No entanto, não chega a discutir e matizar a questão, talvez pela brevidade mesma da abordagem (35 páginas, numa tese de quatrocentas). Levantando vários pontos de interesse, seu capítulo funciona como estímulo para um estudo maior. [...]