Trecho do livro O LIVRO DOS LOBOS

Os biógrafos de Albernaz Morrer, àquela altura, não era só uma infelicidade. Era uma indelicadeza. Havia quinze meses que Nestor frequentava fungos e ácaros em bibliotecas e arquivos e entrevistava muitas pessoas ainda mais velhas do que a sra. Murtinho. Ele não conseguia enxergar uma razão para a mulher não ter esperado mais duas ou três semanas antes de partir ao encontro de seus ancestrais. A notícia havia chegado logo pela manhã e até agora, no meio da tarde, Nestor ainda não tinha sido capaz de se reorganizar. Era melhor agir depressa, se pretendia ir ao enterro. E, mesmo que não fosse até lá, a pressa agora era uma imposição. Nestor empurrava sua mente na direção de ideias otimistas, imaginava que a sra. Murtinho não devia possuir informações especialmente úteis para o seu livro. Era o mais provável. Mas sua ânsia não se venderia tão barato e temores como os seus não se calariam por tão pouco: Torres, o Cego, devia ter se antecipado e gravado uma entrevista com a sra. Murtinho. Torres, o Cego. Era assim que Nestor chamava seu concorrente. A questão não era só o prazo que ia se esgotando, junto com o dinheiro prometido para as pesquisas. A pressa tomava agora a forma de uma penitência pela maldade de competir com um ser humano em fagrante desvantagem. Por estranho que possa parecer, só três meses antes Nestor tinha sabido que um outro homem andava entrevistando as mesmas pessoas que ele, e com o mesmo propósito: escrever pela primeira vez uma biografa de Rodrigo Albernaz. E a cegueira, no caso, parecia uma falta de escrúpulos pior do que a concorrência silenciosa. Era o ano do centenário de nascimento de Rodrigo Albernaz e a publicação dos dois livros não poderia ultrapassar esse limite. No entanto, algumas pessoas que tiveram contato com Albernaz desacatavam os prazos e se deixavam morrer cedo demais. A sra. Murtinho não foi a primeira. Aquelas pessoas pareciam ter pressa: sacudiam a ampulheta, batiam de leve com a unha no vidro para a areia correr mais ligeiro pelo gargalo transparente. Em compensação, alguns eram gentis o bastante para deixar suas recordações gravadas nas fitas de Nestor antes de desaparecerem. Num caso e no outro, porém, essa proximidade com a morte vinha provocando no biógrafo uma sensação ruim: o sentimento de estar já falando com os mortos e de, a qualquer descuido, poder escorregar também para aquele mundo escuro, mas ao mesmo tempo cada vez mais familiar. Devia ser o nervosismo. Nestor temia que o livro do Cego pudesse ficar pronto antes do seu. O editor, no entanto, lhe garantia sempre que isso era muito pouco provável, não havia motivo para preocupar-se. Nessas horas, o silêncio chiava nervoso no telefone, enfatizava aquilo que nem um nem outro tinha ânimo de dizer: as dificuldades de um homem cego para organizar documentos, conferir dados, escrever um livro, aquele livro. Nestor achava que o editor estava sendo razoável, mas talvez apenas com o intuito de tranquilizá-lo. Alguma coisa lhe dizia que o Cego havia tido o tempo necessário para falar com pessoas que, na ânsia de morrer, lhe escapavam. E também com pessoas cuja existência Nestor simplesmente desconhecia. Nestor recebeu bolsas de fundações, adiantamentos, passagens aéreas, refeições. Torres não tinha coisa alguma. Teve mais tempo, é possível. E tinha a cegueira. Nestor havia planejado referir-se apenas de passagem à cegueira de Rodrigo Albernaz, tema tão propício à pieguice, ao drama fácil e a um sentimentalismo em que sempre soava uma nota de crueldade. Eram essas as expressões drásticas que Nestor gostava de repetir para si mesmo - drama, crueldade -, orgulhando-se ao lembrar que nos planos do seu livro havia bem pouco espaço reservado para o assunto. Afinal, a cegueira atingira Albernaz já idoso, com a carreira concluída e a fama pronta. Sobrevivera apenas para saborear um pouco do que haveria de ser a posteridade. A cegueira de Torres, portanto, representava uma deslealdade dupla. Sem ser o resultado de um esforço pessoal, ela o elevava a uma esfera de afnidade com Albernaz impossível de ser acompanhada por outros biógrafos mais saudáveis. Não havia dúvida, um golpe sentimental e publicitário se armava contra Nestor. Como não imaginar os expedientes ao alcance de Torres? Claro, aproveitava-se de sua defciência para inspirar pena e conseguir acesso a informações e a pessoas que, de outro modo, o deixariam esperando para sempre. E, após a publicação dos livros, ostentaria sua ausência de visão para chamar a atenção do público. Estava claro. Nestor já conversara uma vez com Torres, o Cego, por telefone. Tentou se mostrar bem-humorado, forjou duas ou três piadas sobre a situação que ambos viviam. Riram os dois. Nestor riu mais, deduziu em Torres um espírito simples, um iniciante um tanto atrapalhado, e agarrou-se a sua convicção de profissional, contrapondo-a à voz atônita daquele diletante quase gago. O Cego deu a entender que menosprezava "o aspecto oftalmológico da história". Chegou mesmo a ajudar Nestor na questão do paradeiro de uma informante útil ainda viva. Mas nada disso bastou para pacificar a desconfiança de Nestor. Menos ainda o comentário de Torres, quando explicou, com sua voz cândida, que se sentia um pouco sem graça por estar falando com um "escritor famoso, um jornalista que eu admiro muito". Pelo sim, pelo não, Nestor já ia se acostumando à ideia de multiplicar, no seu livro, os parágrafos dedicados ao "aspecto oftalmológico da história". Não era hora de poupar munição nem de desperdiçar escrúpulos. Temia a ação de alguns desafetos na imprensa, se a superioridade do livro de Torres se mostrasse óbvia demais. Em qualquer outro caso, Nestor confiava na influência do editor rico para impedir o pior. O editor lhe telefonava quase todo dia, àquela altura, e Nestor se perguntava qual o significado dos balbucios e resmungos minúsculos que, no último mês, passaram a cortar as frases de estímulo daquele homem. Seria exagero afirmar que Nestor odiava Rodrigo Albernaz, cuja vida e obra conhecia apenas de ouvir falar antes de iniciar o trabalho. Mas a verdade é que não havia ali nenhuma admiração. Nem o menor traço de simpatia. Nada que justificasse algum sentimento menos gelado do que o respeito compulsório de todo intelectual por alguém como Albernaz. Com o correr do trabalho e do tempo, passara a praguejar sozinho, em voz alta e com dureza, contra o seu herói, por ter deixado para trás tantas incertezas. Jurava nunca mais querer saber de Albernaz e suas histórias, depois que concluísse o livro. Mas sabia que não ia ser fácil livrar-se daquilo. Ia descobrindo que não há nada tão capaz de turvar a figura de um homem vivo quanto a sombra de um morto célebre. Nervoso, praguejava também contra o Cego. Deixava escapar zombarias e sarcasmos fáceis de adivinhar, mas que ainda assim lhe causavam surpresa. Dia a dia o medo aumentava, e ardia, e se consumia em lampejos de fúria. Duravam pouco, mas geravam um sentimento de vergonha persistente e complicado, que não apagava o rancor pelo oponente. A complicação se tornava ainda maior porque Nestor entendeu que Torres admirava sinceramente Rodrigo Albernaz. Este sempre fora o ídolo do Cego, e seu livro seria, por assim dizer, uma nova cerimônia num culto já tradicional. Do jeito que as coisas estavam, nada poderia irritar tanto Nestor quanto um diletante com uma motivação superior à sua. É verdade: Torres, o Cego, podia estar apenas fingindo entusiasmo e lealdade antigas, como Nestor, por seu lado, também fingia profissionalmente alguma coisa. Mas sem exagerar, pois tinha certeza de que não seria convincente. Portanto, se Torres fingia, fingia mais e melhor. O que, aliás, já quase equivalia a alguma sinceridade. Assim, de um jeito ou de outro, para Nestor, era quase insuportável descobrir que não conseguia fabricar em si algum calor de admiração pelo homem que, afinal, lhe proporcionava uma excelente oportunidade na carreira. Lembrava-se ainda do dia em que tinha recebido a proposta para escrever o livro. Uma euforia contida, a antevisão de um alvoroço de olhares, todos voltados para ele, olhares que o erguiam no espaço, um rebuliço difuso a que não arriscava dar um nome. Rodrigo Albernaz estava muito longe de ser uma figura de sua predileção, mas era uma das personalidades mais citadas, e elogiá-lo era uma regra. Ainda não era uma vulgaridade. Nestor aceitou a sorte e festejou naquela mesma noite num jantar com amigos. Não houve como impedir que pagasse a conta de todos, e com uma satisfação que não fazia justiça às paredes maltratadas do seu apartamento. No corredor, entre o quarto e a sala, uma infiltração delineava na tinta estufada as formas de um fantasma. Por desleixos desse tipo, Nestor se felicitava por viver sozinho, separado da esposa. Se fosse cego - pensava agora -, ninguém teria a ideia de criticá-lo por coisas assim. [...]