Trecho do livro A RATINHA BRANCA DE PÉ-DE-VENTO E A BAGAGEM DE OTÁLIA

A ratinha branca de Pé-de-Vento Vinha Pé-de-Vento ladeira abaixo, conduzido por importantes pensamentos. Pensava na mulata Eró. No bolso do enorme paletó, herdado de um cliente alemão, sujeito quase tão alto quanto o negro Massu, paletó a cobri-lo até os joelhos, estava a ratinha, num canto, amedrontada. Uma ratinha branca, de mimoso focinho, de olhos azuis, uma graça, um dom de Deus, um brinquedo e uma vida. Durante dias e dias Pé-de-Vento lhe ensinara uma habilidade, uma só mas suficiente. Com o estalar dos dedos, fazia-a ir e vir de um lado para o outro e finalmente deitar-se de costas, as patas agitando-se no ar, à espera de uma carícia na barriga. Quem não ficaria feliz de possuir um animalzinho assim, delicado e limpo, inteligente e dócil? Os esposos Cabral, a quem Pé-de-Vento vendia plantas da praia, cactos e orquídeas, quiseram comprá-la a pulso, quando Pé-de-Vento, orgulhoso, a exibira. Dona Aurora, a esposa, exclamara: "Até parece de circo". Desejava levá-la de presente aos netos mas Pé-de-Vento recusara-se a qualquer barganha, numa obstinada resolução. Não a educara para negócio, não perdera tempo a domesticá-la, a ensinar-lhe obediência para ganhar alguns mil réis. Levara horas e horas a obter-lhe a confiança e só a conseguira por tratar-se de uma rata e bem feminina. Pé-de-Vento coçava-lhe a barriga e ela ficava imóvel, de costas, os olhinhos fechados. Quando ele parava, ela abria os olhos e agitava as patas, pedindo mais. Gastara paciência e tempo para levá-la de presente a Eró e com essa dádiva conquistar-lhe o sorriso, a simpatia e o corpo. A mulata era recente e acertada aquisição da residência do dr. Aprígio, freguês de Pé-de-Vento, e lá exercia, com reconhecida capacidade, a profissão de cozinheira. Pé-de-Vento, apenas a vira, se perdera por ela e decidira tê-la o mais rapidamente possível em seu distante barraco. A ratinha parecera-lhe o meio mais prático e certo para atingir o almejado objetivo. Não era Pé-de-Vento homem de perder tempo e saliva em declarações, conversinhas em voz baixa, palavras ternas, e não enxergava a vantagem de tais lamúrias. Curió não fazia outra coisa, era um batuta em declarações de amor: até comprara um livro, o Secretário dos amantes (com o desenho de um casal, na capa, a beijar-se descaradamente), para aprender palavras melosas e frases difíceis. Apesar disso, ninguém mais traído por amantes e noivas, xodós e namoradas. Com toda sua literatura amorosa, vivia Curió a afogar em cachaça, no armazém de Alonso ou no botequim de Isidro do Batualê, as desilusões, vítima de constantes abandonos. Caía a noite envolta em brisa, docemente sobre as ladeiras, as praças e as ruas, o ar estava morno, uma dolência estendia-se sobre o mundo e as criaturas, uma quase perfeita sensação de paz como se já nenhum perigo ameaçasse a humanidade, como se o olho da maldade houvesse sido fechado para sempre. Era um momento de pura harmonia quando cada um se sentia feliz consigo próprio. [...]