Trecho do livro OS SONHOS DE AURÉLIA

1 Aurélia está cheia. Porque, toda vez que acontece, ela se sente esquisita. Como se fosse diferente dos outros. O começo é sempre igual. Alguém, sentado no pátio da escola com o lanche pela metade, diz: - Essa noite eu tive um sonho incrível. Então, sem precisar usar muita imaginação, abrem-se as portas de mundos mágicos, misteriosos, cheios de cantos para a gente se perder. E Aurélia, um pouco emburrada, ouve com inveja, porque ela nunca se lembra dos seus sonhos. No começo, Aurélia achava que não sonhava, mas a mãe disse que isso é impossível. - Todo mundo sonha, mesmo que não queira, mas, não sei por quê, tem gente que não lembra de nada. Aurélia morre de vontade de levar os sonhos dela para a escola e, como fazem seus colegas de classe, sentar no pátio sem ter que se sentir envergonhada quando alguém lhe faz a pergunta que ela menos gosta de ouvir: - E você, o que sonhou? À noite, encolhida na escuridão, fecha os olhos e deseja com todas as suas forças que de manhã seja tudo diferente. Mas que nada. Algumas vezes já passou pela cabeça dela a ideia de inventar alguma história, mas mentira deixa com dor de barriga. Cansada de esperar que as coisas mudem, Aurélia procura uma solução nas páginas amarelas. "O anúncio da televisão diz que a gente encontra de tudo nelas", pensa Aurélia, enquanto percorre o índice com o dedo sem saber o que procura exatamente. "Aulas de inglês, bolsas, carros, dentistas, equipamentos para jardim, fadas, globos..." O dedo recua: "Fadas?". Aurélia custa a acreditar. "Fábricas, fachadas, fadas!" O número de telefone da única fada da lista tem oitenta e três algarismos. Aurélia nunca viu um número tão comprido, mas se enche de paciência e começa a discar prestando bastante atenção para não errar. Quando chega ao final, respira fundo e espera. - Aqui é a secretária eletrônica da fada Clementina. Sinto muito, Aurélia, agora não estou em casa, mas pode vir amanhã à hora que quiser. Eu tenho o que você precisa. Aurélia, boquiaberta, olha o telefone. "Mas como é que ela sabe que sou eu?" A secretária eletrônica da fada ri. - Porque só as meninas que não lembram dos sonhos podem discar um número tão comprido sem se distrair. No dia seguinte, Aurélia bate à porta da fada. Está um pouco nervosa, mas não pensa duas vezes. A porta se abre sozinha. No final de um corredor, uma velhinha vestida com roupa colorida brinca com um trenzinho elétrico. - Bem-vinda. Preparei uma poção para você... A fada Clementina, preocupada, olha em volta. A sala está cheia de armários e prateleiras, mas parece que os objetos, espalhados por toda parte, saíram correndo. - ... mas agora não sei aonde foi parar. A máquina do trem para e diz: - Você a deixou na gaveta de costura. Aurélia tem a impressão de que já conhece a voz da locomotiva, mas está tão atarantada que não saberia dizer de onde. A fada Clementina tira um frasquinho de vidro de uma gaveta cheia de linhas e botões. -Tome uma gota antes de se deitar, é suficiente. - Mas... - Não tem "mas" coisa nenhuma! Agora não tenho tempo. Não vê que eu estou muito ocupada?! Aurélia volta pelo corredor e vai para casa. A tarde passa tão devagar que parece um desfile de carros antigos. Depois de jantar e escovar os dentes, ela dá um beijo nos pais. - Boa noite. - Por que essa pressa em dormir hoje? - É mesmo. O que houve, está se sentindo mal? - Estou bem, é só sono... O professor de educação física fez a gente correr demais hoje. Estou exausta. Os pais se olham, estranhando. - Então, boa noite. Até amanhã. Aurélia se tranca no quarto e abre o frasquinho de vidro com muito cuidado. Toma uma gota da poção e fecha os olhos. Não percebe nada diferente, a muito custo ouve um rumor de passos. Como se tivesse um rio de gente andando dentro da barriga.