
Clássicos contemporâneos: quais são os livros infantis que ficam para sempre?
O que faz um livro infantil criado nos dias de hoje se tornar um clássico? Qual a diferença entre o clássico canônico e obras criadas há dez ou cinco anos?
O ano era 1994. A Seleção Brasileira de Futebol conquistava seu quarto título mundial na Copa do Mundo. O país conhecia o Plano Real e se despedia, com tristeza, do ídolo da Fórmula 1, Ayrton Senna. Foi nesse mesmo ano que o escritor, ilustrador e pesquisador Ricardo Azevedo lançou Aviãozinho de papel, que foi um dos primeiros livros da Companhia das Letrinhas e acaba de ser reimpresso.
A história narra os desvios de rota sofridos por um bilhete de amor, escrito em um pedaço de papel, para chegar ao seu destinatário. "Sempre achei bonita a ideia de colocar uma mensagem numa garrafa e atirá-la ao mar. Lá vai a garrafa boiando e quem sabe um dia, do outro lado mundo, seja pescada, aberta e lida", diz Ricardo. É também o que faz a literatura, que sai da cabeça do autor para vagar por aí, à procura de quem a leia, aprecie, multiplique seus sentidos. Como se vê, a literatura pode ser esse espaço híbrido entre pertencer e despertencer à realidade. Nos livros, é possível retratá-la, sim, mas também superá-la, suplantá-la, desafiá-la. Dialogar com a vida, mas em suas nuances mais sutis, percebidas apenas por quem tem olhos de ver além da superfície do real. Já dizia o poeta Ezra Pound, em seu célebre Abc da literatura, “os artistas são a antena da raça”.
Ilustração inédita do livro Aviãozinho de papel, de Ricardo Azevedo, publicado em 1994. Crédito: Arquivo do autor
Na esteira das comemorações de aniversário dos 30 anos da Companhia das Letrinhas, conversamos com Ricardo Azevedo sobre suas primeiras publicações, suas criações mais recentes, e sobre o que ele pensa a respeito da literatura dita “para crianças”, que atravessa gerações com diferentes e, ao mesmo tempo, similares desejos. Afinal, como será que a infância se situa diante da passagem inevitável do tempo?
Não sei se a infância mudou tanto assim. Todos sonhamos, temos medo, nos apaixonamos, temos inseguranças, fazemos besteira, gostamos de conforto, detestamos ser rejeitados, fazemos fantasias
(Ricardo Azevedo)
Aviãozinho de papel (ganhador do Prêmio FNLIJ 1994, categoria Criança) faz parte do início da história de vida da Companhia das Letrinhas, que nasceu em 1992. Depois desse, o autor publicou outros três títulos pelo selo, Uma velhinha de óculos (1998), A outra enciclopédia canina (1997, que ganhou o Prêmio Jabuti em 1999) e Haicais tropicais, do qual participa como um dos autores convidados para escrever sobre a passagem do tempo, a natureza de todos os seres, o espírito humano.
Esses são temas que perpassam sua obra de diversas maneiras. Em Uma velhinha de óculos, por exemplo, ele conta a história de um grupo de seis amigos que criam, cada qual à sua maneira, biografias diferentes para uma vizinha desconhecida. Cada um deles tem um modo de ser e de imaginar; cada um deles tem um ponto de vista. A sinopse do livro de Azevedo funciona como uma espécie de metonímia para a literatura em si. Afinal, uma história nunca se completa na cabeça do autor.
Uma das vozes mais importantes da literatura para as infâncias hoje no Brasil e criador em potencial movimento, Ricardo Azevedo tem livros publicados na Alemanha, Portugal, México, França e Holanda, além de textos publicados em coletâneas. Ele foi testemunha de uma trajetória de mais de 30 anos da literatura para crianças no país, e é esse repertório que ele divide com os leitores nesta entrevista abaixo. “Pra mim, a literatura é uma forma de experimentar as verdades”, defende o autor.
Ricardo Azevedo - Tive a ideia de fazer um livro apenas por meio de desenhos, uma narrativa feita de imagens. Ficou interessante, mas meio incompreensível. Um dia, mostrei o trabalho pra querida amiga Eva Furnari e ela sugeriu que eu escrevesse um texto a partir das imagens. Foi o que fiz. Todos os desenhos foram refeitos em função do texto. Os desenhos do projeto inicial estão até hoje guardados.
Ricardo Azevedo - Certamente tive leitores que hoje são pais e, se bobear, avós. Publiquei meu primeiro livro (O peixe que podia cantar) há 42 anos. Mas não sei se a infância mudou tanto assim. Todos sonhamos, temos medo, nos apaixonamos, temos inseguranças, fazemos besteira, gostamos de conforto, detestamos ser rejeitados, fazemos fantasias. Tento fazer livros mais populares – no sentido de serem acessíveis a um grande número de pessoas e tratarem de assuntos de interesse geral – do que propriamente infantis. Aviãozinho de papel, por exemplo, trata do percurso tortuoso, arriscado e acidentado de uma declaração de amor. Pra que idade é esse assunto?
Não acho que crianças formem um grupo homogêneo de pessoas. Aliás, não acredito em grupos homogêneos de pessoas. Já vi uma criança pegar um livro, olhar a contracapa e dizer: ‘é pra crianças de 9 anos. Eu já tenho 10!’ Essa ideia de dividir pessoas em mercados é desumana, além de ser uma besteira. (Ricardo Azevedo)
LEIA MAIS: Cultura popular, literatura e escola
Ricardo Azevedo - Após ter desistido do livro com imagens e ter feito o texto e um boneco para mostrar como seria o novo livro, procurei a Lili Schwarcz da Companhia das Letras. A Companhia estava começando a publicar livros “para crianças”. Lembro que a editora ficava numa casa simpática da rua Tupi. Faz um tempão.
Ricardo Azevedo - Quando publiquei meu primeiro livro, em 1980, havia relativamente poucos livros publicados e considerados para crianças. E também um número bem menor de editoras. Por outro lado, naquela época, passou a vigorar uma lei que exigia que as escolas adotassem livros publicados no Brasil. Fui privilegiado por começar a escrever e desenhar numa época em que havia uma grande demanda por novos livros e, portanto, novos autores. Isso de certa forma continuou nos anos 1990.
Hoje a situação é bem outra e mais complexa, com muito mais editoras e, paradoxalmente, uma triste diminuição do número de livrarias. Não tem comparação entre ir a uma livraria, escolher e comprar livros ao vivo e comprar pela internet. Enfim, trata-se de um outro cenário. Sobre o livro Uma velhinha de óculos, ele trata da existência de diferentes pontos de vista válidos. Pra que idade é esse assunto?
Ilustração inédita do livro Aviãozinho de papel, de Ricardo Azevedo, publicado em 1994. Crédito: Arquivo do autor
Ricardo Azevedo - A sociedade, a cultura e os costumes certamente mudam com o passar do tempo e é natural que seja assim. A literatura é sempre reflexo da sociedade onde é criada. A questão, como vejo, é: como tratar de qualquer tema sem abrir mão dos aspectos literários e artísticos do trabalho. Vejo muitos livros que são ruins embora tratem de causas importantes. Na minha visão, literatura é uma coisa e militância ou didatismo é outra. Sou contra a domesticação da literatura em função de temas da moda, causas ou lições, por mais relevantes que estas sejam. Como pano fundo, aí sim, tudo bem, até porque todos os autores têm crenças e ideologias.
Não existem livros “neutros”. Mas o livro tem, creio, que trazer algo a mais do que “causas” para que se justifique chamá-lo de literatura.
(Ricardo Azevedo)
Ricardo Azevedo - Vejo a literatura de ficc?a?o e poesia como uma a?rvore cheia de galhos e estes representam diferentes literaturas todas legi?timas e todas irma?s, pois sa?o fruto de um mesmo tronco. As chamadas literaturas para crianc?as e jovens sa?o galhos dessa mesma e u?nica a?rvore onde florescem as outras literaturas. Incluo aqui as formas litera?rias populares, contos, quadras, poesia de cordel etc.
Antes de mais nada, a literatura e a arte, seja adulta, infantil, juvenil, popular ou outra, tanto faz, deve ser avaliada por seu cara?ter este?tico.
(Ricardo Azevedo)
Ou seja, deve ser avaliada por sua originalidade; sua capacidade ficcional; pelo seu caráter metafórico; pelo discurso subjetivo (oposto a? objetividade, ti?pica dos textos dida?ticos e te?cnicos); pelas conjunturas sociais e humanas das personagens; pela explorac?a?o inventiva e consciente da linguagem; pela abordagem de temas humanos complexos e subjetivos como a busca do autoconhecimento; as paixo?es; as contradic?o?es, ambiguidades e angu?stias; a construc?a?o da pro?pria voz; entre outros mil assuntos da vida concreta.
Quem vai dar “aulas” ou “metodologias” sobre as paixo?es, sobre a morte ou sobre as contradic?o?es humanas? Quem vai escrever um livro te?cnico a partir de meta?foras e abordagens singulares e subjetivas da linguagem? Tento fazer meus trabalhos a partir dessas premissas. Sei que podem haver opiniões diferentes e é normal que seja assim.
Ricardo Azevedo - Tento fazer trabalhos que sejam, antes de mais nada, populares no sentido de buscarem o interesse da maioria das pessoas. O desafio é: como tratar, por meio da ficção, de um assunto complexo numa linguagem acessível?
Ricardo Azevedo - Estou com um original de poemas e desenhos sendo avaliado por uma editora e prestes a iniciar um trabalho longo, um romance que se passa no nosso período colonial. Será o terceiro livro de uma pesquisa que iniciei em 2010. Os já publicados são: Fragosas brenhas do mataréu (2013) e Trago na boa a memória do meu fim (2019), ambos pela Ática. Se conseguir terminar até meados de 2023, vai ser ótimo. Ufa!
Ricardo Azevedo - Pra mim, a literatura é uma forma de experimentar as verdades (as diferentes convicções sobre os mesmos assuntos) por meio da ficção, da subjetividade e da linguagem poética.
O que faz um livro infantil criado nos dias de hoje se tornar um clássico? Qual a diferença entre o clássico canônico e obras criadas há dez ou cinco anos?
A publisher fala sobre os 30 anos da Companhia das Letrinhas, as mudanças nessas décadas, sua relação com os livros desde a infância e sua entrada no mercado editorial
Em uma sociedade que valoriza tanto a obediência às regras, como criar seres livres e autênticos? E como a literatura apoia nessa missão?