Conviver com o que não gostamos: o que a frustração ensina às crianças

15/05/2023

Convencer a criança a escovar os dentes, deixar a brincadeira para tomar banho, comer aquele vegetal que ela precisa mas se nega, dividir o brinquedo, prestar atenção ao que a professora diz... Quem lida com crianças sabe o trabalho que dá conseguir com que elas façam aquilo que não gostam, mas que são importantes para o desenvolvimento infantil. Se até a gente gostaria que as coisas que julgamos chatas ou desagradáveis sumissem (Adeus, trabalho na segunda!), imagina para elas. Mas ouvir "não", lidar com a frustração, conviver com a diversidade e entender a importância de não fazer apenas as nossas vontades é fundamental na primeira infância, período em que o egocentrismo vai aos poucos cedendo com a socialização.

E qual o papel dos adultos nesse processo?

Dr. Sumiço

Ajudá-los a se colocar no lugar do outro e a perceber a necessidade de diversidade de formas mais concretas, como você pode ler mais abaixo. E há livros ótimos para auxiliar nesse processo, pois abordam o tema dentro do universo da criança, como o divertido Dr. Sumiço, de Caco Galhardo (Companhia das Letrinhas, 2023). Nele, o personagem Lico descobre que tem o dom de fazer com que tudo suma - depois de observar o desaparecimento de meias, bolas e afins - e decide usar o superpoder para acabar com tudo aquilo de que não gosta, o incomoda ou é diferente da sua opinião. E lá se vão os bandidos e os mosquitos barulhentos, mas também as aulas chatas, os remédios e até o sorvete de flocos. A certa altura, começam a sumir as pessoas e mesmo a mãe evapora-se. O que parecia um sonho acaba se mostrando um pesadelo!

E é aí que está… Como é que fica quem gosta de sorvete de flocos? Ou de brócolis, por exemplo (que o Lico também fez desaparecer)? No desenrolar da história, Dr. Sumiço descobre que não é tão bom assim fazer apenas o que ele gosta ou deseja. Não vamos entrar em detalhes, para não estragar a surpresa, mas o recado fica bem claro: é importante entender que a vida nem sempre é divertida e que, em certos momentos, precisamos encarar obrigações ou lidar com coisas das quais não somos fãs. 

 

Frustração é importante

"Você pode não gostar de sorvete de flocos, mas o seu melhor amigo, sim! E que chato seria o mundo se o seu amigo ficasse triste, porque o sorvete de que ele mais gosta não existe mais, não é mesmo?"

Chamar os pequenos para esse tipo de conversa e/ou raciocínio é um dos caminhos para lidar com a situação, como explica a psicóloga e psicoterapeuta, Luciana Jamas, de São Paulo (SP). “Desde cedo, podemos mostrar e conversar com as crianças a respeito das diferenças. É preciso mostrar que cada um é do seu jeito e que está tudo bem, mostrar que somos diferentes, desde as características físicas, como no jeito de ser, de nos comportar, e que um ser diferente do outro faz parte da vida”, explica ela.

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Aliás, as diferenças nas maneiras de ser e nos gostos podem ajudar - e muito. Uma criança pode gostar de matemática e detestar ciências, o colega pode ser o contrário. Quantas trocas podem surgir se um ajudar o outro nas dificuldades? E mostrar o lado positivo das duas matérias? Se um irmão gosta de macarrão com molho branco e o outro prefere o vermelho, dá para revezar, ambos podem experimentar e, quem sabe, um dia, não passam a gostar de ambos os molhos - e de muitos outros? 

Ilustração do livro Dr. Sumiço, da Companhia das Letrinhas

No livro de Caco Galhardo, desde cedo as coisas somem ao redor de Lico, a começar pelas chupetas

É por meio das diferenças e da convivência com situações que não conhecemos ou não gostamos tanto assim que aprendemos a ter novas perspectivas, a experimentar, a tentar novas atividades, a conviver, a conciliar, a negociar e, principalmente, a respeitar! 

Enfrentar o que não gostamos, em vez de, simplesmente, querer que tudo simplesmente desapareça, é lidar com a frustração, um sentimento que a criança vai conhecer - e que é ótimo para o desenvolvimento dela! “A frustração faz parte da vida, portanto, os adultos não precisam tentar evitar que as crianças passem por ela”, diz a psicoterapeuta. Até porque esta seria uma missão impossível. “É um sentimento desagradável, que nós, adultos, também não gostamos de sentir. Portanto, precisamos lembrar que, muitas vezes, quando a criança se frustra, nós também ficaremos frustrados. Assim, para ajudar a criança a lidar com a frustração dela, é necessário antes, lidarmos com a nossa própria frustração”, orienta. 

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Não é raro que os adultos - mães e pais, professores, avós, tios ou outros - queiram incorporar o próprio Dr. Sumiço, tentando evitar a frustração das crianças. Afinal, quem não quer ver seu filho feliz? É muito mais gostoso dizer “sim” a um pedido de uma criança - e às vezes menos trabalhoso - do que dizer “não”. Mas o “não” é uma palavra muito necessária e que nos acompanha pelo resto da vida. Com equilíbrio e na hora certa, o não serve para nos ajudar e nos proteger - embora nem sempre isso fique claro da primeira vez que escutamos. 

A realidade é que não dá para ter tudo do jeito que queremos o tempo todo. As crianças também vão precisar aprender isso, eventualmente. “Uma maneira de iniciar esse processo, que envolve o desenvolvimento de competências e habilidades, é ensinar aos pequenos desde cedo que faz parte da vida ter e fazer algumas coisas, mas outras não ou que existe horário certo para determinadas atividades e que, assim, não terão tudo o que desejam, exatamente na hora que desejam", pontua a especialista

Quando conseguimos definir limites para a criança, estimulamos o seu desenvolvimento emocional (Luciana Jamas, psicoterapeuta)

Página do livro Dr. Sumiço, de Caco Galhardo

Atire a primeira bolinha de papel quem nunca teve desejos como esses do Dr. Sumiço, novo livro de Caco Galhardo

 

Obrigações e negociações

Ensinar a respeitar as diferenças e aceitar as frustrações não quer dizer que a criança precise gostar de tudo e estar sempre feliz, mesmo diante de situações que não parecem ser tão legais assim para ela ou depois de ouvir um “não” para algo que ela queria muito.  “Ao longo da vida, teremos que desenvolver diversas atividades que, se pudéssemos escolher, não faríamos”, admite Luciana. No entanto, é papel dos adultos ajudar a criança a compreender isso desde cedo. “Algumas obrigações são inegociáveis, como ir à escola, escovar os dentes, tomar banho, entre outras. Quando o adulto exige que o pequeno cumpra essas tarefas em alguns momentos e flexibiliza em outros, acaba prejudicando o entendimento e pode dificultar o momento de lidar com uma frustração”, diz ela. 

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No entanto, há questões em que é necessário e importante negociar, entender e respeitar a criança, quando ela não gosta de algo. “Um alimento, por exemplo: se a criança disser que não gosta de uma comida que tem um valor nutricional e que é importante para a saúde dela, podemos insistir algumas vezes, tentar oferecer de maneiras diferentes, com preparos diferentes. Se ela rejeitar, também dá para aguardar um tempo (algumas semanas ou meses) para oferecer novamente”, diz a psicóloga. Mas há comidas que, simplesmente, nosso paladar não aprova - e isso é normal. Nesse caso, dá para pensar em substituições nutricionalmente equivalentes, para que não haja prejuízo à saúde. 

Outro exemplo pode ser o esporte. “Se os pais querem que a criança faça um exercício porque é importante para a saúde, eles podem negociar. Não precisa ser uma modalidade específica. Você pode oferecer a opção de ele fazer futebol, mas, se ele não se identificar com o esporte ou não sentir que tem habilidade, pode tentar andar de bicicleta ou jogar basquete, pular corda…”, sugere.

Negociar ajuda na aceitação e diminui os efeitos da frustração por ter que realizar algo que não gosta (Luciana Jamas, psicoterapeuta)

Sumir com o que a gente não gosta nem sempre é um bom negócio, mas também é importante aprender a equilibrar e respeitar as preferências - nos momentos em que isso for possível, é claro. Afinal, tem gosto para tudo: até para brócolis e sorvete de flocos! 

 

Livros que ajudam a lidar com a frustração, a compartilhar e a ter empatia

Dr. Sumiço, de Caco Galhardo (Companhia das Letrinhas)

Desde bebê, tudo ao redor de Lico sumia: chupetas, meias, brinquedos... (Alguma semelhança por aí?) Um dia o garoto percebe que, na realidade, o que parecia um defeito era um dom e decide usar esse poder para acabar com as coisas que ele considerava erradas. A bagunça do quarto, os bandidos... Dr. Sumiço vira celebridade entre a população. Mas quem decide o que é ruim? O desagradável para alguns, pode não ser para outros. E o herói vai ter de lidar com isso quando começa a desaparecer com sorvete de flocos, a escola, os remédios, as conversas de adultos... Mas ele não lida bem com as críticas e tira da frente tudo o que pode ser problema e contestação, num gesto bem autoritário e egocêntrico. E vai aprender sua maior lição.

Capa do livro Minúscula, de Fran Matsumoto, sobre a chegada de uma irmã mais nova

Minúscula, de Fran Matsumoto

Às vezes a gente fantasia muito a relação com outras pessoas. Faz planos, imagina coisas que podem ser feitas junto e projeta uma série de desejos no outro. Mas esse outro (quase) nunca é da forma com que fantasiamos, e isso gera uma frustração enorme. Isso acontece em Minúscula, no qual a irmã mais velha espera ansiosa pelo bebê que vai nascer para ter com quem brincar. Mas nasce um ser tão pequeno, que não consegue fazer nada daquilo que a irmã tinha sonhado. No entanto, quando nos livramos de nossas idealizações, conseguimos perceber que o que parece chato às vezes pode ser muito legal.

O Clube do Pepezinho: com propósito, de Dav Pilkey

Capa do livro O Clube do Pepezinho: com propósito, de Dav Pilkey

Neste volume, os personagens vão lidar com a dificuldade de ouvir não. Nanda, Melvin e seus irmãos sapinhos têm uma ideia para ficarem ricos, mas os planos não saem como o esperado e eles vão precisar enfrentar a rejeição e o desafio de encontrarem um caminho para seu propósito. 

 

Isso é meu!, de Blandina Franco e José Carlos Lollo

Capa do livro Isso é meu!, de Blandina Franco e Lollo

A menina da história não quer dividir o boneco com mais ninguém. Ela acha que merece brincar com ele mais que qualquer outra criança. Ao deixar isso bem claro, ela acaba afastando as demais e vai descobrir que compartilhar pode ser muito divertido e ser muito vantajoso. 

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