Trecho do livro ANA TERRA

1 "Sempre que me acontece alguma coisa importante, está ventando", costumava dizer Ana Terra. Mas, entre todos os dias ventosos de sua vida, um havia que lhe ficara para sempre na memória, pois o que sucedera nele tivera a força de mudar-lhe a sorte por completo. Mas em que dia da semana tinha aquilo acontecido? Em que mês? Em que ano? Bom, devia ter sido em 1777: ela se lembrava bem porque esse fora o ano da expulsão dos castelhanos do território do Continente. Mas, na estância onde Ana vivia com os pais e os dois irmãos, ninguém sabia ler, e mesmo naquele fim de mundo não existia calendário nem relógio. Eles guardavam na memória os dias da semana; viam as horas pela posição do sol; calculavam a passagem dos meses pelas fases da lua; e era o cheiro do ar, o aspecto das árvores e a temperatura que lhes diziam as estações do ano. Ana Terra era capaz de jurar que aquilo acontecera na primavera, porque o vento andava bem doido, empurrando grandes nuvens brancas no céu, os pessegueiros estavam floridos e as árvores que o inverno despira se enchiam outra vez de brotos verdes. Ana Terra descia a coxilha no alto da qual ficava o rancho da estância, e dirigia-se para a sanga, equilibrando sobre a cabeça uma cesta cheia de roupa suja, e pensando no que a mãe sempre lhe dizia: "Quem carrega peso na cabeça fica papudo". Ela não queria ficar papuda. Tinha vinte e cinco anos e ainda esperava casar. Não que sentisse muita falta de homem, mas acontecia que casando poderia ao menos ter alguma esperança de sair daquele cafundó, ir morar no Rio Pardo, em Viamão ou até mesmo voltar para a Capitania de São Paulo, onde nascera. Ali na estância a vida era triste e dura. Moravam num rancho de paredes de taquaruçu e barro, coberto de palha e com chão de terra batida. Em certas noites Ana ficava acordada debaixo das cobertas, escutando o vento, eterno viajante que passava pela estância gemendo ou assobiando, mas nunca apeava do seu cavalo; o mais que podia fazer era gritar um "Ó de casa!" e continuar seu caminho campo em fora. Passavam-se meses sem que nenhum cristão cruzasse aquelas paragens. Às vezes era até bom mesmo que eles vivessem isolados, porque quando aparecia alguém era para trazer incômodo ou perigo. Nunca se sabia. Uma vez tinham dado pouso a um desconhecido: vieram a saber depois que se tratava dum desertor do Presídio do Rio Grande, perseguido pela Coroa como autor de sete mortes. O pai de Ana costumava dizer que, quando via um leão baio ou uma jaguatirica, não se impressionava: pegava o mosquete, calmo, e ia enfrentar o animal; mas, quando via aparecer homem, estremecia. É que ali na estância eles estavam ressabiados. A princípio tinham sofrido os castelhanos, que dominaram o Continente por uns bons treze anos e que de tempos em tempos surgiam em bandos, levando por diante o gado alheio, saqueando as casas, matando os continentinos, desrespeitando as mulheres. De quando em quando grupos de índios coroados desciam das bandas da coxilha de Botucaraí e se vinham da direção do rio, atacando as estâncias e os viajantes que encontrassem no caminho. Havia também as "arriadas", partidas de ladrões de gado, homens malvados sem rei nem roque, que não respeitavam a propriedade nem a vida dos estancieiros. Por vezes sem conta Ana e a mãe tinham sido obrigadas a fugir para o mato, enquanto o velho Terra e os filhos se entendiam com os assaltantes - agressivos se estes vinham em pequeno número, mas conciliadores quando o bando era forte. Mas havia épocas em que não aparecia ninguém. E Ana só via a seu redor quatro pessoas: o pai, a mãe e os irmãos. Quanto ao resto, eram sempre aqueles coxilhões a perder de vista, a solidão e o vento. Não havia outro remédio - achava ela - senão trabalhar para esquecer o medo, a tristeza, a aflição... Acordava e pulava da cama, mal raiava o dia. Ia aquentar a água para o chimarrão dos homens, depois começava a faina diária: ajudar a mãe na cozinha, fazer pão, cuidar dos bichos do quintal, lavar a roupa. Por ocasião das colheitas ia com o resto da família para a lavoura e lá ficava mourejando de sol a sol. Ana Terra fez alto, depôs o cesto no chão e suspirou. O vento impelia as palmas dos coqueiros na mesma direção em que esvoaçavam seus cabelos. Para que lado ficava Sorocaba? Os olhos da moça voltaram-se para o norte. Lá, sim, a vida era alegre, havia muitas casas, muita gente, e festas, igrejas, lojas... A povoação mais próxima ali da estância era o Rio Pardo, para onde de tempos em tempos um de seus irmãos ia com a carreta cheia de sacos de milho e feijão, e de onde voltava trazendo sal, açúcar e óleo de peixe. O olhar de Ana continuava voltado para o norte. O pai prometera vagamente voltar para São Paulo, logo que juntasse algum dinheiro. Mas d. Henriqueta, que conhecia bem o marido, desencorajava a filha: "Qual nada! Daqui ele não sai, nem morto". E, dizendo isso, suspirava. Às vezes, quando estava sozinha, chorava, mas na frente do marido vivia de cabeça baixa e raramente abria a boca. Ana tornou a apanhar o cesto, ergueu-o e descansou-o sobre o quadril direito e, assim como quem carrega um filho escanchado na cintura, continuou a descer para a sanga. Avistou a corticeira que crescia à beira d'água e seus olhos saudaram a árvore como se ela fosse uma amiga íntima. Uma lagartixa passou correndo à sua frente e sumiu-se por entre as macegas. Ana pensou em cobra e instintivamente voltou o olhar para a direita, rumo da coxilha no alto da qual havia uma sepultura. Lá estava enterrado o corpo de seu irmão mais moço, que morrera havia alguns anos, picado por uma cascavel. A sanga corria por dentro dum capão. As folhas das árvores farfalhavam e suas sombras no chão úmido do orvalho da noite eram frescas, quase frias. Ana aproximou-se da pedra onde sempre batia roupa, e depôs o cesto junto dela. Deu alguns passos à frente, ajoelhou-se à beira do poço fundo, fez avançar o busto, baixou a cabeça e mirou-se no espelho da água. Foi como se estivesse enxergando outra pessoa: uma moça de olhos e cabelos pretos, rosto muito claro, lábios cheios e vermelhos. Não tinha sequer um caco de espelho em casa, e, no dia em que pedira ao irmão que lhe trouxesse de Rio Pardo um espelhinho barato, o pai resmungara que era uma bobagem gastar dinheiro em coisas inúteis. Para que queriam espelho naqueles cafundós onde Judas perdera as botas? Ana Terra sorria: a moça da sanga sorria também, e seu rosto era atravessado pelos vultos escuros dos lambaris que se moviam dentro d'água. Ana ficou a contemplar-se por algum tempo, com a vaga sensação de que estava fazendo uma coisa muito boba, muito imprópria duma mulher de sua idade. Agora em seus pensamentos um homem falava de cima de seu cavalo. Tinha na cabeça um chapéu com um penacho, e trazia à cinta um espadagão e duas pistolas. E esse homem dizia coisas que a deixavam embaraçada, com o rosto ardendo. Era Rafael Pinto Bandeira, o guerrilheiro de que toda gente falava no Rio Grande. Corriam versos sobre suas proezas e valentias, pois era ele quem pouco a pouco estava livrando o Continente do domínio dos castelhanos... Ana Terra guardava a lembrança daquele dia como quem entesoura uma jóia. Estava claro que ventava também na manhã em que o major Pinto Bandeira e seus homens passaram pela estância, a caminho do forte de Santa Tecla, onde iam atacar o inimigo. O velho Terra convidara-os para descer e comer alguma coisa. O major aceitou o convite e dentro em pouco estava sentado à mesa do rancho com seus oficiais, comendo um churrasco com abóbora e bebendo uma guampa de leite. Era um homem educado e bem-falante. Contava-se que sua estância era muito bem mobiliada e farta, e que tinha até uma banda de música. Ana estava perturbada em meio de tantos homens desconhecidos - grandes, barbudos, sujos - que fanfarronavam, comiam fazendo muito barulho e de vez em quando lhe lançavam olhares indecentes. Num dado momento Rafael Pinto Bandeira fitou nela os olhinhos miúdos e vivos e, com pingos de leite no bigode, dirigiu-se a Maneco Terra, dizendo: - Vossa mercê tem em casa uma moça mui linda. De tão atrapalhada ela deixou cair a faca que tinha na mão. O pai não disse nada, ficou de cabeça baixa, assim com jeito de quem não tinha gostado da coisa. O major, que continuava a olhar para ela, prosseguiu sacudindo a cabeça: - Mas é muito perigoso ter uma moça assim num descampado destes... O velho Terra pigarreou, mexeu-se na cadeira e respondeu seco: - Mas tem três homens e três espingardas em casa pra defender a moça. E depois disso houve um silêncio muito grande. Ao se despedir, já de cima do cavalo, na frente do rancho, Pinto Bandeira tornou a falar: - A sina da gente é andar no lombo dum cavalo, peleando, comendo às pressas aqui e ali, dormindo mal ao relento pra no outro dia continuar peleando. - O vento sacudia o penacho do major. Os cavalos, inquietos, escarvavam o chão. - Pois é, dona, quando o último castelhano for expulso - continuou o guerreiro, sofrenando o animal -, vamos ficar donos de todo o Continente, e poderemos então ter cidades como na Europa. - Baixou os olhos para Ana e murmurou: - Nesse dia precisaremos de moças bonitas e trabalhadeiras como vossa mercê. Deus vos guarde! - Ergueu o chapéu no ar e se foi. Ana escutara-o com o rosto em fogo. O pai ficou de cabeça baixa, calado. Ela se lembrava bem do que o velho Terra e Antônio, o filho mais velho, tinham dito depois. - Pai, eu acho que devia ter ido com eles... - murmurou o rapaz, olhando os soldados que se afastavam na direção do poente. O velho respondeu: - Não criei filho pra andar dando tiro por aí. O melhor é vosmecê ficar aqui agarrado ao cabo duma enxada. Isso é que é trabalho de homem. - O major é um patriota, meu pai. Ele precisa de soldados para botar pra fora os castelhanos. O velho ergueu a cabeça e encarou o filho: - Patriota? Ele está mas é defendendo as estâncias que tem. O que quer é retomar suas terras que os castelhanos invadiram. Pátria é a casa da gente. E agora, ali a olhar-se no poço, Ana Terra pensava nas palavras do guerrilheiro: "... precisaremos de moças bonitas e trabalhadeiras". Bonitas e trabalhadeiras. Bonitas, bonitas, bonitas... Ergueu-se, caminhou para o lugar onde estava o cesto, tirou as roupas para fora, ajoelhou-se, apanhou o sabão preto e começou a lavá-las. Enquanto fazia isso cantava. Eram cantigas que aprendera ainda em Sorocaba. Só cantava quando estava sozinha. Às vezes, perto da mãe, podia cantarolar. Mas na presença do pai e dos irmãos tinha vergonha. Não se lembrava de jamais ter ouvido o pai cantar ou mesmo assobiar. Maneco Terra era um homem que falava pouco e trabalhava demais. Severo e sério, exigia dos outros muito respeito e obediência, e não admitia que ninguém em casa discutisse com ele. "Terra tem só uma palavra", costumava dizer. E era verdade. Quando ele dava a sua palavra, cumpria, custasse o que custasse.