Trecho do livro ESBOÇO DE AUTO-ANÁLISE

Isto não é uma autobiografia. Pierre Bourdieu Não pretendo me sacrificar ao gênero autobiográfico, sobre o qual já falei um bocado como sendo, ao mesmo tempo, convencional e ilusório. Queria apenas tentar reunir e revelar alguns elementos para uma auto-análise. Não escondo minhas apreensões, que vão muito além do temor habitual de ser mal compreendido. Sobretudo por conta da amplitude de meu percurso no espaço social e da incompatibilidade prática entre os mundos sociais que tal percurso conecta sem de fato reconciliá-los, tenho o sentimento de que não posso garantir - longe tampouco de me sentir seguro de chegar a tanto com os instrumentos da sociologia - que o leitor saberá aplicar o olhar adequado, como eu o enxergo, nas experiências aqui evocadas. Ao adotar o ponto de vista do analista, obrigo-me a reter (e permito-me fazê-lo) todos os traços pertinentes do ponto de vista da sociologia, isto é, necessários à explicação e à compreensão sociológicas, e tão-somente esses traços. Mas, em vez de buscar produzir assim, como se poderia temer, um efeito de fechamento, ao impor minha interpretação, tenciono desvelar tal experiência, enunciada do modo mais honesto possível, ao confronto crítico, como se fosse qualquer outro objeto. Tenho perfeita consciência de que, se analisados nessa perspectiva e, como convém, segundo o "princípio de caridade", todos os momentos de minha história, em particular os diferentes partidos assumidos em matéria de pesquisa, podem parecer algo ajustados à sua necessidade sociológica, ou melhor, justificados nesse registro, portanto, como se fossem muito mais racionais, ou, então, mais raciocinados ou mais razoáveis do que de fato o foram, um pouco como se tivessem saído de um projeto consciente de si desde o começo. Ora, eu sei, e não farei nada para escondê-lo, que na realidade fui descobrindo aos poucos os princípios que guiavam minha prática, mesmo no terreno da pesquisa. Sem ser verdadeiramente inconscientes, minhas "escolhas" manifestavam-se, sobretudo, pelas recusas e pelas antipatias intelectuais com freqüência pouco articuladas, e apenas vieram a se exprimir de modo explícito muito mais tarde (por exemplo, a repulsa, bastante profunda, que me inspiravam o culto de Sade, tão na moda num certo momento, ou a visão à la Bataille ou à la Klossowski das coisas sexuais, só foi desaguar num começo de expressão naquele número de Actes consagrado ao "Comércio dos corpos", em 1994). Talvez porque eu estivesse tão completamente investido no meu trabalho e no grupo que animava, não conseguia olhar em torno. Ou quem sabe porque pensava ter tanto a fazer que não poderia dispor de parte do meu tempo, do qual tinha tanta necessidade, para discutir ou criticar aqueles autores mais destacados entre os que me cercavam, na França e no exterior, tanto em ciências sociais como em filosofia, e pelos quais quase sempre eu não tinha muita consideração. Talvez por ser bastante desajeitado e infeliz nas discussões intelectuais sobre problemas que não são os meus (guardei uma lembrança algo rarefeita de um encontro com Habermas, aliás muito caloroso, organizado, em Paris, por Dreyfus e Rabinow), tive a propensão de adiantar-me, um pouco no estilo "deixa comigo", e foi bem aos poucos, e quase sempre de modo retrospectivo, que comecei, principalmente por ocasião de temporadas no estrangeiro, a explicitar minha "diferença" em relação a autores como Habermas, Foucault ou Derrida, a respeito dos quais hoje me perguntam tanto, que eram infinitamente menos presentes e menos importantes em minha pesquisa do que outros como Cicourel, Labov, Darnton, Tilly, e outros historiadores, etnólogos ou sociólogos desconhecidos nos píncaros intelectuais e midiáticos. Nesse esforço para explicar-me e compreender-me, poderei doravante apoiar-me nos cacos de objetivação de mim mesmo que fui deixando pelo caminho, ao longo de minha pesquisa, e tentarei aqui aprofundar e ainda sistematizar. Compreender é primeiro compreender o campo com o qual e contra o qual cada um se fez. Sob pena de surpreender um leitor que espera talvez me ver começar pelo começo, isto é, pela evocação de meus primeiros anos e do universo social da minha infância, eis por que devo, como exige o bom método, examinar de início o estado do campo no momento em que nele ingressei, por volta dos anos 50. Se lembrar que era então aluno da Escola Normal Superior, em filosofia, no ápice da hierarquia escolar, numa época em que a filosofia podia parecer triunfante, terei dito o essencial, parece-me, daquilo que se faz preciso às necessidades da explicação e da compreensão de minha trajetória ulterior no campo universitário. Todavia, no intuito de compreender por que e de que maneira alguém se tornava "filósofo" - palavra cuja ambigüidade contribuía para favorecer o imenso sobreinvestimento que se mostrava ausente em escolhas menos indeterminadas e mais diretamente ajustadas às chances reais -, também preciso tentar evocar o espaço dos possíveis, como eu o enxergava então, e os ritos institucionais propícios a produzir a parcela de convicção íntima e de adesão inspirada, que era, nesses anos, a condição de ingresso na tribo dos filósofos. Não posso retomar aqui toda a maquinaria do processo de consagração que, desde o concurso de admissão à classe preparatória até o concurso de ingresso na Escola Normal, conduz os eleitos (em especial, os oblatos miraculosos) a eleger a Escola que os elegeu, a reconhecer os critérios de eleição que os constituíram elite; bem como, na seqüência, a orientá-los, sem dúvida com tanto mais empenho quanto maior o grau de louvação, em direção à disciplina-rainha. Alguém se tornava "filósofo" pelo fato de haver sido consagrado, e a pessoa consagrava-se ao garantir para si o estatuto prestigioso de "filósofo". Logo, a escolha da filosofia manifestava a segurança estatutária que vinha reforçar a segurança (ou a arrogância) estatutária. Isso ocorria tanto mais assim num tempo em que o campo intelectual inteiro era dominado pela figura de Jean-Paul Sartre e no qual os khâgnes, sobretudo com Jean Beaufret, destinatário da Carta sobre o humanismo, de Heidegger, e o próprio concurso de ingresso na Escola Normal, com a banca composta em certo momento de Maurice Merleau-Ponty e Vladimir Jankélévitch, eram ou podiam parecer os pináculos da vida intelectual. O khâgne era o lugar em que se produzia a ambição intelectual à francesa em sua mais elevada forma, quer dizer, filosófica. O intelectual total, cuja figura acabara de ser inventada e imposta por Sartre, fora concebido por um ensino que oferecia um largo espectro de disciplinas, filosofia, literatura, história, línguas antigas e modernas, e encorajava, por meio da aprendizagem da "dissertação de omni re scibili" (segundo a expressão de Durkheim), cerne de todo o dispositivo, uma certeza de si que por vezes se confunde com a inconsciência da ignorância triunfante. A crença na força plena da invenção retórica encontrava seus maiores incentivos nas exibições sabiamente encenadas da improvisação filosófica: penso em mestres como Michel Alexandre, discípulo tardio de Alain, o qual recobria com poses proféticas as fraquezas de um discurso filosófico reduzido aos minguados recursos de uma reflexão destituída de fundamento histórico, ou como Jean Beaufret, que iniciava seus alunos maravilhados nos arcanos do pensamento de um Heidegger ainda inédito em francês - exceto por alguns fragmentos. (A extraordinária recepção lograda pelo filósofo da Floresta Negra na França apenas se torna explicável na medida em que, enquanto encarnação exemplar do aristocratismo professoral e da filosofia incontestável da filosofia de que estão imbuídos os professores de filosofia mesmo sem o saber, mostra-se muito mais próxima do que seria de esperar da velha tradição francesa dos Lagneau e Alain - conforme demonstra o fato de que tantos "filósofos" formados nos khâgnes dos anos 50 tenham podido encaixar a admiração por Alexandre no fervor por Heidegger.) Assim se constituíam a legitimidade estatutária de uma aristocracia escolar universalmente reconhecida e, "noblesse oblige", o sentido da altivez que impõe ao "filósofo" digno desse nome as maiores ambições intelectuais e lhe impede o rebaixamento ao se ligar a certas disciplinas ou objetos; em especial aqueles objetos com que lidam os especialistas das ciências sociais (será preciso ocorrer o choque de 1968 para que os filósofos formados nos khâgnes de 1945 se confrontem, e apenas num registro altamente sublimado, com o problema do poder e da política: não resta a menor dúvida de que Deleuze e Foucault, bem como todos os demais em sua cola, não teriam logrado formular uma questão a tal ponto descartada do cânon filosófico à antiga como essa do poder, se não tivesse sido introduzida no âmago do campo universitário pela contestação estudantil, inspirada por tradições teóricas ignoradas ou desprezadas por completo pela ortodoxia acadêmica, como o marxismo, a concepção weberiana do Estado, ou a análise sociológica da instituição escolar). O domínio dos grupos fortemente integrados, cujo limite (e modelo prático) é a família convencional, deriva em ampla medida do fato de que estão ligados por uma collusio em meio à illusio, uma cumplicidade profunda com o fantasma coletivo, capaz de garantir a cada um dos membros a experiência de uma exaltação do eu, princípio de uma solidariedade enraizada na adesão à imagem do grupo como imagem encantada de si. Na verdade, é esse sentimento socialmente construído de pertencer a uma "essência superior" que mais contribui, com as solidariedades de interesses e as afinidades de habitus, para fundar o que convém designar como um "espírito de corpo" - por mais estranha que possa parecer essa expressão quando se aplica a um conjunto de indivíduos persuadidos de que são de todo insubstituíveis. Uma das funções dos ritos de iniciação consiste em criar uma comunidade dos inconscientes, que viabiliza conflitos velados entre adversários íntimos, empréstimos disfarçados de temas ou de idéias que cada qual se sente no direito de empalmar pelo fato de serem o produto de esquemas de invenção bastante próximos dos seus, referências tácitas e alusões inteligíveis apenas no âmbito do círculo restrito de iniciados (olhar assim o que se escreveu desde os anos 60 é descobrir, por baixo da grita das diferenças alardeadas, a homogeneidade profunda dos problemas e dos temas, e saber reconhecer, por exemplo, na palavra de ordem da "desconstrução", lançada por Derrida, além da transfiguração promovida pela mudança completa de contexto teórico, o tema bachelardiano da ruptura com as pré-construções: ao converter-se em topos escolar, esse tema também foi orquestrado, no mesmo momento, no outro pólo do campo filosófico - em especial no caso de Althusser - e nas ciências sociais - sobretudo na obra Le métier de sociologue). Mas a propriedade mais importante, e também a mais invisível, do universo filosófico desse lugar e desse momento - e talvez de todos os tempos e em todos os países - é sem dúvida o internamento escolástico. Mesmo quando caracteriza outros olimpos da vida acadêmica, Oxford ou Cambridge, Yale ou Harvard, Heidelberg ou Todai, ele reveste uma de suas formas mais exemplares desse mundo fechado, segregado, desarraigado das vicissitudes do mundo real, no qual se formou, por volta dos anos 50, a maioria dos filósofos franceses cuja mensagem inspira hoje um campus radicalism [radicalismo acadêmico] planetário, sobretudo por meio dos chamados cultural studies [estudos culturais]. Os efeitos do internamento, redobrados pelos da eleição escolar e da coabitação prolongada no interior de um grupo socialmente muito homogêneo, tendem de fato a favorecer uma distância social e mental com relação ao mundo, a qual se percebe com maior nitidez, paradoxalmente, nas tentativas, por vezes patéticas, de aceder ao mundo real, em especial mediante engajamentos políticos (stalinismo, maoísmo etc.) cujo utopismo irresponsável e cujo radicalismo irrealista comprovam o quanto ainda são uma maneira paradoxal de denegar as realidades do mundo social. [...]