Trecho do livro NOITES DAS MIL E UMA NOITES

SHAHRIAR Após a oração da alvorada, enquanto as nuvens da escuridão ainda resistiam frente à poderosa investida da luz, o vizir Dandan foi chamado para um encontro com o sultão Shahriar. A serenidade de Dandan desapareceu. O coração paterno estremecia à medida que vestia as roupas e murmurava: "Agora saberemos o resultado... Seu destino, Scherazade". Seguiu pelo caminho que subia a montanha, montado num velho rocim e acompanhado por alguns guardas. À frente deles ia um homem carregando uma tocha, em um clima que irradiava orvalho e uma leve friagem. Três anos haviam se passado em meio ao medo e a esperança, a morte e a expectativa; três anos se passaram com a narração de histórias, e por causa dessas histórias a vida de Scherazade se estendera por três anos. No entanto, como tudo, as histórias haviam chegado a um fim, haviam terminado ontem. Portanto, que destino estaria a sua espera, querida filha minha? Entrou no palácio que se equilibrava no alto da montanha. O mordomo o conduziu a uma sacada situada nos fundos, com vista para um imenso jardim. Shahriar estava sentado à luz de um lampião: a cabeça descoberta, o cabelo preto abundante, os olhos brilhantes no rosto comprido e uma vasta barba esparramada no alto do peito. Dandan beijou o solo diante dele, sentindo, apesar de sua longa convivência, um secreto temor daquele homem cujo passado estava cheio de severidade, crueldade e sangue de inocentes. O sultão fez um sinal para que fosse apagado o único lampião. A escuridão tomou conta e os espectros das árvores que exalavam uma fragrância perfumada foram lançados na semi-obscuridade. - Que fique escuro para que eu possa ver a luz se derramar - murmurou Shahriar. Dandan percebeu um certo otimismo. - Que Deus conceda a Sua Majestade tudo o que há de melhor na noite e no dia. Silêncio. Dandan não conseguiu discernir nem satisfação nem raiva por trás de sua expressão, até que o sultão disse calmamente: - Nossa vontade é que Scherazade permaneça nossa esposa. Dandan ergueu-se depressa, curvou-se diante do sultão, beijando-lhe a mão num agradecimento tão sentido que lhe trouxe lágrimas aos olhos. - Que Deus o proteja em seu reinado para todo o sempre. - A justiça - disse o sultão, como se recordasse suas vítimas - possui métodos díspares, da espada ao perdão, e Deus tem Sua própria sabedoria. - Que Deus possa guiar os passos de Sua Majestade até Sua sabedoria. - As histórias dela são a magia do bem - disse ele, encantado. - Elas revelam mundos que convidam à reflexão. O vizir ficou subitamente embriagado de alegria. - Ela me deu um filho e meu espírito agitado se acalmou - disse o sultão. - Que Sua Majestade possa desfrutar da felicidade, aqui e na eternidade. - Felicidade! - murmurou bruscamente o sultão. Dandan ficou preocupado, por alguma razão. Soou o canto dos galos. Como se estivesse falando consigo mesmo, o sultão disse: - A própria existência é a coisa mais inescrutável da existência. Mas o seu tom de perplexidade desapareceu quando exclamou: - Olhe! Lá! Dandan olhou para o horizonte e o viu incandescente da santa alegria. SCHERAZADE Dandan pediu permissão para ver sua filha Scherazade. Uma criada o conduziu ao quarto rosa, decorado com tapete e cortinas cor-de-rosa, bem como divãs e almofadas em matizes de vermelho. Ali, ele foi recebido por Scherazade e sua irmã Duniazade. Dandan disse: - Estou cumulado de felicidade, graças a Deus, o Senhor do universo. Scherazade fê-lo sentar-se a seu lado, ao passo que Duniazade se retirou para seu quarto. - Fui salva de um destino sangrento pela misericórdia de nosso Senhor - disse Scherazade. Mas o homem mal murmurava suas graças, quando ela acrescentou, amargurada: - Que Deus tenha piedade das virgens inocentes. - Como você é sábia, e como é corajosa! - Mas você sabe, pai - disse ela num sussurro: - eu sou infeliz! - Cuidado, filha, pois nos palácios os pensamentos assumem formas concretas e falam alto! - Eu me sacrifiquei - disse ela, triste - para interromper a torrente de sangue. - Deus tem a Sua sabedoria - murmurou ele. - E o diabo, os seus seguidores - disse ela, com raiva. - Ele ama você, Scherazade - disse o pai, suplicante. - A arrogância e o amor não podem se unir num mesmo coração. Ele ama a si mesmo acima de tudo. - O amor também tem seus milagres. - Cada vez que ele se aproxima de mim sinto o cheiro de sangue. - O sultão não é como o resto da humanidade. - Mas crime é crime. Quantas virgens ele matou, e quantos crentes fiéis ele exterminou? No reino ficaram somente os hipócritas. - Minha confiança em Deus nunca se abalou - disse ele, com tristeza. - Quanto a mim, sei que meu estágio espiritual está na paciência, como me ensinou o grande sheik. A isso, Dandan respondeu, com um sorriso: - Que excelente mestre e que excelente discípula! O SHEIK O sheik Abdala Al Balakhi vivia numa casa simples do bairro antigo. Seu olhar visionário se refletia no coração de muitos dos seus velhos e novos alunos, e estava profundamente gravado no coração de seus discípulos. Para ele, a adoração completa era apenas um prólogo, pois ele era o sheik do caminho, e nesse caminho já atingira um plano elevado no estágio espiritual do amor e do contentamento. Quando saiu do seu retiro e foi para a sala de recepção, Zubaida, sua jovem e única filha, disse-lhe, satisfeita: - A cidade está em festa, meu pai. - O médico Abdul Kadir Al Mahini ainda não chegou? - perguntou, sem atentar para o que ela estava dizendo. - Talvez esteja a caminho, meu pai. A cidade está festejando porque o sultão aceitou Scherazade como esposa e renunciou ao derramamento de sangue. No entanto, nada o tira de sua calma. A serenidade no seu coração não diminui nem aumenta. Zubaida é filha e discípula, mas ainda está no início do caminho. Ouvindo baterem à porta, ela saiu, dizendo: - Seu amigo chegou para a visita de costume. O médico Abdul Kadir Al Mahini entrou, os dois se abraçaram, e então ele sentou-se numa almofada ao lado do amigo. Como sempre, a conversa transcorria à luz de uma lâmpada em um pequeno nicho. - Com certeza você já soube da boa notícia - disse Abdul Kadir. - Soube o que é da minha conta saber - disse o sheik, sorridente. - As vozes se elevam em oração por Scherazade, mostrando que é você quem primeiro merece o crédito - disse o médico. - O crédito é apenas de Deus, o amado - disse o sheik, em tom de crítica. - Também tenho fé, mas acompanho promessas e realizações. Se não tivesse sido sua aluna quando criança, Scherazade não teria, apesar do que você possa dizer, encontrado as histórias que desviaram o sultão do derramamento de sangue. - Meu amigo, seu único problema é exagerar na submissão ao intelecto. - É o adorno do ser humano. - É por meio do intelecto que chegamos a conhecer os limites do intelecto. - Existem fiéis que acham que ele não tem limites - disse Abdul Kadir. - Meu erro foi atrair muitos para o caminho, e você encabeça a lista. - As pessoas, mestre, são umas coitadas e precisam de alguém que as esclareça a respeito de suas vidas. - Muitas almas honestas podem salvar uma nação inteira - disse o sheik, confiante. - Ali Al Saluli é o governador de nosso bairro. Como pode o bairro ser salvo de sua corrupção? - perguntou o médico, demonstrando súbita indignação. - Mas aqueles que combatem são de classes diferentes - disse o sheik, triste. - Eu sou médico, e o que me preocupa é o que é certo para o mundo. O sheik afagou a mão do médico com carinho. Este sorriu e disse: - No entanto, você é a própria bondade e a boa sorte. - Agradeço a Deus, pois nem a alegria me arrebata, nem a tristeza me toca. - Quanto a mim, querido amigo, estou triste. Sempre que me lembro dos tementes a Deus que foram martirizados por dizerem a verdade em protesto contra o derramamento de sangue e a pilhagem da propriedade, minha tristeza aumenta! - Como estamos presos às coisas materiais! - As pessoas honestas e tementes a Deus foram martirizadas - lamentou Abdul Kadir. - Como sinto por você, minha cidade, hoje controlada unicamente por hipócritas. Por que, mestre, somente o pior gado é deixado nos estábulos? - Como são numerosos os amantes de coisas desprezíveis! Nesse momento, chegou até eles, vindo dos limites do bairro, o som das flautas e dos tambores, e compreenderam que os moradores estavam comemorando a boa notícia. Diante disso, o médico resolveu ir até o Café dos Príncipes.