Trecho do livro TRAIÇÃO

1.Na casa negra do Rossio Portugal, dezembro de 1645. Era o quinto aniversário da Restauração portuguesa após sessenta anos de dominação espanhola (1580-1640), mas não havia motivo para grandes celebrações. Tudo parecia ainda muito incerto, a crise permanente, a começar pela guerra contra a mesma Espanha, a sangrar os parcos recursos do reino, que só terminaria em 1668. Internamente a situação não era melhor. Portugal entrava desunido nesta guerra pela Restauração, pois boa parte da nobreza não apoiou a ascensão de d. João IV, duque de Bragança, considerada por muitos uma aventura temerária ou indesejável. Entre os poderosos adversários do rei português sobressaía nada menos que a Inquisição, que havia virtualmente compartilhado o poder com a dinastia filipina durante a União Ibérica. Os inimigos de d. João IV chegaram a urdir uma conspiração para apeá-lo do poder, em 1641, e dela participou o próprio inquisidor-geral, d. Francisco de Castro. A conjura não teve êxito e acabou desbaratada. Mas agravou os ressentimentos. Ao lado do rei perfilavam facções da nobreza leais à causa restauradora, os jesuítas, alguns grandes mercadores, muitos deles cristãos-novos, e as classes populares. Nostálgicas,estas últimas, de um rei português desde o desaparecimento de d. Sebastião, em 1578, viam na ascensão de d. João IV uma espécie de retorno, quem sabe um remédio para suas fomes e misérias. Na política externa, todo o esforço português se havia voltado para fazer "as pazes com a Holanda", objetivando reaver o que fosse possível dos territórios ultramarinos outrora conquistados pelos flamengos. Terras orientais e africanas. O Brasil açucareiro, principalmente. Tarefa dificílima, missão quase impossível, porque a Companhia das Índias Ocidentais não estava disposta a ceder nada. E, de quebra, com discreto apoio da Coroa portuguesa, havia estourado a insurreição pernambucana contra a dominação holandesa, em junho de 1645, também ela uma guerra de Restauração colonial. Este ambiente de guerras descaradas e negociações fingidas era ainda adensado pela ação da Inquisição. No Pernambuco conflagrado, judeus portugueses que lutavam pelos holandeses, quando caíam prisioneiros de guerra, eram enviados pelo bispo da Bahia ao tribunal do Santo Ofício de Lisboa, num claro desafio aos acordos que o rei havia firmado com os holandeses, isentando da jurisdição inquisitorial os súditos da casa holandesa de Orange, independentemente de suas crenças. Nesta leva de prisões foi enviado do Brasil ao tribunal de Lisboa Manoel de Moraes, que nada tinha de judeu ou cristão-novo, mas trazia um vasto currículo de traições e heresias que a Inquisição parecia ávida por esclarecer. Manoel de Moraes, que já tinha sido processado pelo Santo Ofício como réu ausente, nos idos de 1641, era agora obrigado a encarar o tribunal de perto. Manoel de Moraes desembarcou em Lisboa em 25 de fevereiro de 1646. Veio na caravela do capitão Manoel Pinheiro, sob a custódia do mestre Antônio Ribeiro, a quem a justiça de Pernambuco havia incumbido de levá-lo preso ao Santo Ofício. Com ele desembarcou, também preso, o cristão-novo Miguel Francês, 34 anos, sobre o qual pesavam culpas de judaísmo. Já Manoel de Moraes, nas palavras do promotor da Inquisição, Domingos Esteves, vinha acusado de ter aderido à "seita de Calvino" e, ainda por cima,de ter se casado na Holanda, embora fosse sacerdote católico, ex-jesuíta. Expulso da Companhia de Jesus cerca de dez anos antes, Manoel de Moraes tinha cinqüenta anos quando pela primeira vez pôs os pés em Lisboa. Estava alquebrado pela viagem, cerca de um mês no mar, e decerto apavorado com o que lhe podia acontecer no temível palácio dos Estaus, o prédio da Inquisição, conhecido como "a casa negra do Rossio". Seus últimos meses haviam sido extenuantes, pois tinha marchado como capelão das tropas luso-brasileiras na batalha do monte das Tabocas, em agosto de 1645, a primeira grande vitória daquela que, na versão pernambucana, ficou conhecida como a "guerra da liberdade divina". Batalha sangrenta,na qual tombaram pouco mais de duzentos homens, do lado holandês, e pouco menos de cem, entre os rebeldes da terra. Apesar de ter aderido, logo no início, à luta pela Restauração pernambucana contra o domínio holandês, além de protegido por João Fernandes Vieira e André Vidal de Negreiros, nada menos que os dois principais chefes da rebelião, Manoel de Moraes caiu em desgraça pouco depois da batalha. Acusado de traição e heresia no tempo em que os holandeses haviam conquistado Pernambuco, nos anos 1630, foi preso por instâncias de Martim Soares Moreno, outro grande capitão da guerra restauradora, homem que nutria ódio visceral pelo ex-jesuíta. A proteção de João Fernandes e André Vidal foi, portanto, menos eficaz do que supunha nosso personagem.Martim Soares Moreno acertou-se com o "Auditor da Gente da Guerra", em Pernambuco, Domingos Ferraz de Souza, e Manoel foi embarcado para Lisboa para responder por suas culpas de calvinismo no Santo Ofício. Uma operação misteriosa, que aparentemente não contou com o apoio de João Fernandes, o grande general da insurreição. A situação de Manoel era no mínimo preocupante, pois nos idos de 1642 já tinha sido processado pela Inquisição, embora estivesse na Holanda, e por isso fora condenado à revelia. Agora parecia mesmo disposto a se apresentar ao Santo Ofício, uma vez que tinha dado mostras, como capelão da guerra restauradora contra os holandeses, de seu arrependimento pelos erros passados. Tanto é que ele se preparou com esmero para responder ao Santo Ofício. Reuniu diversos papéis e certidões abonatórias num pequeno baú que levou consigo para Lisboa, sabedor de que o acusariam de tudo na Inquisição, em particular por ter, no passado, aderido aos holandeses e se convertido ao calvinismo. Não desgrudava desse baú na viagem, e, depois de encarcerado na Inquisição, suplicou diversas vezes para que os mesmos fossem considerados em sua defesa. Continha o baú sete folhas de papel, entre escritas e brancas, as escritas com várias letras e sinais, redigidas por diferentes autores, material que foi apensado ao processo. Separado de seu precioso baú, Manoel de Moraes ainda se viu na iminência de ser transferido dos cárceres da penitência, menos assustadores, para os cárceres secretos da Inquisição. Foi o Promotor do Santo Ofício, Domingos Esteves, quem solicitou aos inquisidores encarcerar o réu nos secretos e proceder ao imediato seqüestro de seus bens, considerados a gravidade de sua culpa e seus antecedentes criminais em matéria de heresia. A diferença entre os cárceres era considerável, nem tanto pelas suas condições internas, senão pelo significado que cada um deles tinha na máquina inquisitorial. Os cárceres da penitência, segundo o Regimento de 1640, eram os que abrigavam os réus penitenciados pelo Santo Ofício para receber instrução e sacramentos antes de cumprirem suas sentenças. Na prática, mal se distinguiam dos cárceres da custódia, que abrigavam suspeitos leves, ou no aguardo de diligências que permitissem saber se era caso de encarcerar o preso nos secretos. Estes últimos, que deviam ser "seguros e bem fechados", estavam reservados para aqueles cuja suspeita de heresia era forte. Seguros e bem fechados eram, na verdade, todos os cárceres do Santo Ofício, mas na custódia o réu se encontrava numa fase liminar,que incluía a possibilidade de soltura rápida, e na penitência se poderiam abrigar "delinqüentes privilegiados" ou, pelo menos, indivíduos que não tinham "culpas para serem presas no cárcere secreto". Neste último a perspectiva era sombria, pois ficava o preso numa espécie de purgatório, quando não no inferno, conforme o caso. Ficar numa cela do secreto implicava incomunicabilidade total, mais rigorosa, na prática, do que a dos outros cárceres; implicava a possibilidade de viver ali vários meses, talvez anos; implicava a forte presunção da culpa e, portanto, a multiplicação de interrogatórios, quem sabe a tortura e, pior, o rigor da sentença. No limite, a fogueira. Ficar nos cárceres secretos representava para o réu a incerteza absoluta quanto ao próprio destino. Manoel de Moraes presumia muito bem o que isso representava e deu um jeito de ficar preso onde estava, alegando a enfermidade de seu estado depois de tantos dissabores, e reafirmando que tinha inúmeras provas, inclusive escritas, de que era inocente de todas as culpas. Afinal, pessoas graduadas haviam passado certidão a seu favor, inclusive capitães da "guerra divina" que se travava contra o herege holandês no Brasil. Os inquisidores examinaram o requerimento do promotor, leram os papéis do réu guardados no baú e, apesar de julgarem seu crime muito grave, considerando a sua precária saúde, decidiram que "não fosse ele mandado para os cárceres secretos". Ficasse em custódia nos cárceres da penitência, para que fosse "curado comodamente" e tratasse de "seu livramento". Assinaram esse despacho os inquisidores Pedro de Castilho, Belchior Dias Pretto e Luiz Álvares da Rocha, que acompanhariam o processo até a sentença final. Foi esta, sem dúvida, uma pequena vitória de Manoel de Moraes no combate que se avizinhava, possível sinal de que os inquisidores talvez estivessem dispostos a acolher facilmente seus álibis e protestos de inocência. Mas nosso Manoel de Moraes, que pelo visto se considerava um "delinqüente privilegiado",exagerava a própria importância e superestimava sua rede de protetores.