Trecho do livro JACQUES LACAN

I FIGURAS DE PAIS 1. NEGOCIANTES DE VINAGRE No coração de Orléans, desde o reinado dos primeiros capetos, os segredos de fabricação eram tão bem guardados que mesmo os entendidos do final do século XIX ainda acreditavam na lenda negra de um vinagre feito à base de excrementos humanos. Era assim que o respeitadíssimo Domachy relatava que empresários haviam imaginado transformar barris de vinho em privadas nas quais os operários tinham ordens de satisfazer suas necessidades. Em alguns dias, o líquido era convertido em requintado vinagre, que não conservava o menor vestígio da substância que servira para a fermentação. De pai para filho, os donos de restaurantes, os cozinheiros especialistas em molhos, os mestres vinagreiros e os mostardeiros haviam feito de tudo para contestar esse rumor: ele desacreditava uma tradição artesanal que remontava à noite dos tempos. E, para vencer o desafio, a grande confraria invocava os gloriosos antepassados de uma época heróica. Recordava que Aníbal havia aberto o caminho dos Alpes aos seus elefantes despejando grande quantidade do precioso líquido sobre a neve, ou ainda que Cristo saciara sua sede no Gólgota ao pousar os lábios numa esponja embebida que lhe estendia um soldado bêbado. Tão antigo quanto a vinha, o vinagre era o vinho dos pobres, dos mendigos e dos legionários. Por muito tempo os engarrafadores e os vinhateiros coabitaram com os fabricantes. Uns reparavam os vasilhames nas oficinas, outros abrigavam dezenas de recipientes nas adegas. A corporação administrava as trocas, protegendo os artesãos do domínio dos empresários. Essas tradições do Antigo Regime foram suprimidas pela Revolução em proveito de uma expansão do liberalismo econômico. Em 1824, um empregado da casa Greffier-Hazon, Charles-Prosper Dessaux, aproveitou o vasto movimento de industrialização das vinagrerias para fundar sua própria casa. Com a idade de 34 anos, ele se tornou assim o principal concorrente de seu antigo patrão. Todavia, dois anos mais tarde, por questão de eficiência, os dois decidiram associar-se. E, para selar a união econômica, arranjaram um casamento entre seus herdeiros. Foi assim que Charles-Laurent Dessaux, mal saído da infância, foi convidado a desposar a jovem Marie-Thérèse Aimée Greffier-Vandais. As duas empresas fundiram-se e a direção do novo reino foi confiada à família Dessaux. Pai e filho entenderam-se às maravilhas e os negócios prosperaram. Desde o início do século, os vinagreiros da região de Orléans haviam adotado os métodos de Chaptal, que, depois de Lavoisier, descrevera o processo de acetificação. Graças a essa escolha, e à qualidade particular dos vinhos brancos das encostas do Loire, eles garantiram à sua produção renome universal. O famoso procedimento orleanês, admirado no mundo inteiro, consistia em fazer trabalhar a bactéria Mycoderma aceti, responsável pela oxidação do álcool no vinho. A partir de 1821, a confraria, que agrupava o conjunto das casas orleanesas, adquiriu o hábito de celebrar a festa do vinagre no dia da Assunção. Entre Joana d'Arc e a Virgem Maria, a boa e velha cidade às margens do Loire exibia orgulhosamente sua plena e absoluta adesão à fé católica. Entretanto, o fervor e a unanimidade não impediam que as famílias fossem dilaceradas por disputas políticas. Quando Charles-Prosper atingiu a idade de aposentar-se, ficou aflito por ver que os dois filhos jamais chegariam a se entender. O mais velho, Charles-Laurent, era bonapartista, e o segundo, Jules, tinha convicções republicanas. Para a empresa, essa divisão era um desastre. Apesar de múltiplas tentativas de conciliação, o pai fundador não pôde evitar que a dinastia se cindisse em dois ramos. Em 1850, Jules abriu uma casa concorrente, deixando ao irmão mais velho a tarefa de se ocupar sozinho dos negócios Dessaux filho. Este acolheu de forma triunfal o golpe de Estado do príncipe Napoleão e se afeiçoou à maneira de viver do Segundo Império. Violento e preguiçoso, preferia a caça, a libertinagem e os prazeres da mesa à gestão da empresa. Após dezesseis anos de um reinado que por pouco não o levou à ruína, ele conduziu o primeiro filho, Paul Dessaux, à direção dos negócios. A devastação da vinha pela filoxera começou no momento em que as experiências de Pasteur transformavam as técnicas de fabricação do vinagre. Na célebre conferência sobre a fermentação acética, o cientista forneceu a prova da ação oxidante do micoderma, ao mesmo tempo que abria o caminho para pesquisas sobre a maneira de destruir, por aquecimento rápido, os fermentos responsáveis pelas numerosas doenças que impediam o processo normal de acetificação. Enquanto os vinhateiros reconstituíam com dificuldade as plantações e os vinagreiros se beneficiavam das invenções da ciência pasteuriana, um temível concorrente irrompeu no mercado: o vinagre de álcool. Travou-se uma luta encarniçada, e numerosas fábricas ligadas à tradição do vinagre de vinho tiveram de fechar as portas. É nessa época que Ludovic Dessaux assume a direção da ilustre casa, após a morte prematura do irmão mais velho. O homem tinha talento: durante trinta anos de trabalho obstinado, fez da vinagreria paterna uma fábrica moderna. Situadas na rua Tour-Neuve, 17, as instalações formavam uma espécie de quarteirão que reunia numa imensa área os escuros edifícios de pedra destinados à fabricação e ao armazenamento dos barris do precioso "vinho fino". O dono das instalações vivia com a família entre os muros austeros da empresa, onde trabalhava, noite e dia, uma população operária que chegará a 180 pessoas em 1900. Para lutar contra a concorrência, Ludovic teve a grande idéia de fabricar em suas próprias cubas vinagre de álcool. Assim pôde ao mesmo tempo sobreviver e salvar a tradição: o vinagre de álcool era utilizado para as conservas de pepinos, e o vinagre de vinho, para o consumo de mesa. A fim de tornar mais eficaz a comercialização de seus produtos, fez-se o campeão de um novo modo de comunicação de massa: a publicidade. Graças a um rótulo que afirmava que a casa Dessaux filho fora fundada em 1789, impôs a marca em todas as mercearias da França e de Navarra, empreendendo a seguir a conquista do mercado colonial. A circulação do rótulo tendia a abonar a lenda segundo a qual Charles-Prosper havia fundado a casa no ano da Revolução. Ora, ele nascera em 1790. Portanto, era investido, segundo uma cronologia no mínimo fantasiosa, de um papel que não fora o seu. Será que se tratava, logo após a instauração da República, de lembrar que a empresa Dessaux filho havia nascido da antiga casa Greffier-Hazon, com a qual se fundira em seguida? Consciente do perigo que representavam a formação do movimento sindical e a progressão das idéias socialistas, Ludovic Dessaux haveria de ajustar-se a elas adotando um programa de reformas preventivas. Graças aos progressos da mecanização, apenas uma dezena de homens podia fazer funcionar, noite e dia, a tanoaria mecânica e produzir 40 mil litros de vinagre em 24 horas. Os outros empregados, em número quinze vezes superior, ocupavam-se das tarefas de limpeza, intendência e administração. Para controlá-los e evitar que fossem influenciados pelo "messianismo revolucionário", cuja expansão era temida desde a Comuna de Paris, Ludovic propôs um modelo de organização fundado no paternalismo, no culto da ordem moral e na obediência à religião. Foi assim que em 1880 ele promulgou um regulamento interno composto de treze pontos, no qual eram expostas as virtudes cardinais julgadas indispensáveis ao bom funcionamento da firma: devoção, limpeza, pontualidade. Os empregados deviam trabalhar onze horas por dia e seis dias por semana, recitar uma oração a cada manhã e jamais tagarelar em serviço. O consumo de vinho, de álcool e de tabaco era proibido, e o vestuário, submetido a uma severa censura. Eram proscritas as roupas extravagantes, as cores vivas e as meias de mulher não remendadas. Monotonia, silêncio, obscurantismo: tal era o universo cinzento e tedioso em que se achava mergulhada a casa Dessaux filho na aurora do século XX. Marie Julie Dessaux, irmã mais velha de Ludovic, conheceu Émile Lacan em 1865, com a idade de 21 anos. Ele era originário de Château-Thierry, onde sua família se dedicava ao comércio de tecidos e gêneros alimentícios havia várias gerações. Como gostasse de viajar, Émile fora recrutado pela Dessaux filho para difundir e representar seus produtos. Trabalhador, econômico e autoritário, ele logo compreendeu que, ao desposar a irmã do patrão, escolhia não apenas a prosperidade, mas também a integração a uma das famílias mais distintas de Orléans. Para um filho de dono de mercearia, uma promoção como essa não era negligenciável. Quanto a Ludovic, ficou contente em saber que poderia incluir os três filhos, Paul, Charles e Marcel, na direção dos negócios, sem contrariar os projetos de uma irmã que, permanecendo estreitamente ligada aos interesses familiares, teria a preocupação de um dia conduzir a eles sua progenitura. Assim, o casamento foi celebrado em 15 de janeiro de 1866, e um filho nasceu nove meses mais tarde, ao qual se deu o nome de René. (Ele irá morrer aos 28 anos.) Após essa primeira gravidez, Marie Julie pôs no mundo três outras crianças. Duas meninas e um menino: Marie, Eugénie e Alfred. Nascido em 12 de abril de 1873, na casa burguesa da rua Porte-Saint-Jean, 17, onde o casal havia se instalado, Charles Marie Alfred Lacan levava o nome de um tio paterno morto prematuramente. Acrescentaram-lhe o do avô materno, que por sua vez o devia ao fundador da dinastia, e o de Maria, mãe de Jesus e santa protetora do vinagre orleanês. Antes do final do século, Ludovic conseguira abrir escritórios de representação nas colônias. Vendia pepinos em conserva, mostardas, aguardentes e vinagres nas Antilhas, ao mesmo tempo que importava rum da Martinica e café de Guadalupe. Tornara-se assim um grande negociante no ramo da indústria alimentar. Quanto a Émile Lacan, embora continuasse a viajar e a representar a firma, havia escolhido deixar Orléans para instalar-se no centro de Paris, num suntuoso imóvel construído em 1853 e situado no bulevar Beaumarchais, 95. No térreo, uma loja especializada em registro de patentes simbolizava perfeitamente o conformismo desse bairro tranqüilo onde viviam notários, capitalistas e representantes comerciais. Um pouco mais adiante, na esquina da rua Saint-Claude, podiase ver o antigo palacete particular de Cagliostro, alias Joseph Balsamo, aventureiro de triste renome. Por volta de 1860, erguiam-se no bairro, até o bulevar do crime, teatros de feira onde palhaços executavam piruetas e caretas, competindo com o pequeno mundo dos anões, dos homens-esqueletos, dos cães calculadores e dos ventríloquos. Paul de Kock, romancista populista, havia morado a dois passos dali. Ídolo das costureirinhas, ele reinava no bulevar, sempre com uma roupa de flanela azul, um monóculo na mão e um barrete de veludo na cabeça. Após a guerra e a Comuna, o bulevar mudara de estilo. Em nome da ordem pública, a burguesia triunfante esmagara o proletariado da periferia, esperando com isso aniquilar seus sonhos de igualdade. Expulsara teatros de feira e ventríloquos a fim de viver no gozo de uma felicidade calculada, confiante em sua indústria e em sua arte oficial. Embora autoritário e temperamental, Émile Lacan era submisso à esposa, e esta obedecia de maneira rígida a todos os dogmas da Igreja Católica. Assim, Alfred foi enviado como interno ao pequeno seminário de Notre-Dame-des-Champs. Sairá de lá cheio de rancor em relação aos pais, culpando-os por tê-lo privado do calor de um lar. Tão logo atingiu a idade de trabalhar, foi integrado às atividades florescentes da casa Dessaux. Rapidamente, revelou-se um perfeito representante dos ideais da firma. Manifestava pouco gosto pela cultura, e mostrava-se tão preocupado com as próprias economias quanto com os interesses financeiros da vinagreria. Gorducho e bigodudo, tinha os traços banais de um pequeno comerciante da Belle Époque, esmagado pela onipotência paterna. Por volta de 1898, conheceu Émilie Philippine Marie Baudry, cujo pai fora funileiro antes de se tornar proprietário e viver de rendas. A jovem morava num imóvel idêntico ao dos Lacan, situado no bulevar Beaumarchais, 88. Educada numa escola religiosa, ela sofrera a influência jansenista de sua amiga de infância Cécile Gazier. O pai, Charles Baudry, era um homem amável e sem história, e a mãe, Marie-Anne Favier, uma mulher cheia de devoção. Com 23 anos de idade, Émilie tinha gosto pela austeridade. Sempre vestida de preto, era magra, de olhos tristes, e parecia habitada por um ideal cristão que contrastava com a religiosidade simples e provinciana da família Dessaux. Émilie desposou Alfred em 23 de junho de 1900. O casamento foi abençoado na igreja Saint-Paul-Saint-Louis. Dez meses mais tarde, em 13 de abril de 1901, às duas e meia da tarde, nascia o primeiro filho, que recebeu os prenomes de Jacques, Marie, Émile. Ele foi apresentado pelo pai e os dois avôs ao cartório civil do III distrito de Paris, e depois batizado na igreja Saint-Denis-du-Sacrement. [...]