Trecho do livro VIAGEM PELO BRASIL EM 52 HISTÓRIAS

APRESENTAÇÃO Este livro começou com a primeira pessoa que contou uma história a outra, que a contou a um amigo, que contou a outro, e assim ela foi passando para a frente até que alguém a escreveu para que pudesse ser conhecida pelo maior número de pessoas possível. Muitas das narrativas populares e lendas do folclore brasileiro que lemos hoje são resultado do estudo de antropólogos e etnógrafos, como Herbert Baldus, Egon Schaden, Cláudio e Orlando Villas Boas, Darcy Ribeiro, e de pesquisadores e folcloristas, como João Ribeiro, Basílio de Magalhães, Afonso Arinos, Artur Ramos, entre tantos outros que recolheram nossas lendas e mitos. Mas o passeio que Viagem pelo Brasil em 52 histórias nos leva a dar só pôde ser concluído graças ao trabalho de Sílvio Romero, filósofo e historiador da literatura brasileira, que no final do século XIX dedicou-se a reunir as histórias da tradição oral e a sistematizá-las, e a de Mário de Andrade, que nas décadas de 1920 e 1930 viajou por todo o Brasil coletando músicas, danças, quadrinhas, brincadeiras e mitos populares, além de ter ajudado a fazer do jornalista e professor de história Luís da Câmara Cascudo um dos maiores folcloristas do país. É muito grande o número de escritores que mergulhou no folclore e trouxe contribuições, como Cecília Meireles, Simões Lopes Neto, Lindolfo Gomes, Alceu Maynard Araújo, Theobaldo Miranda Santos, Hugo Ramos, Bernardo Guimarães e Hernâni Donato. A todos eles devemos muito do que sabemos do Brasil. O folclore, ou a cultura popular, é um dos modos de expressão que melhor refletem o pensamento, o sentimento e a atuação de um povo. Transmitido oralmente de geração a geração, ele ajuda a compor a memória da nação, e é a memória que nos dá consciência e auto-estima. Muito do que se sabe sobre os índios e os africanos deve-se às histórias contadas de pai para filho ao longo dos séculos. Na Idade Média, o jovem adquiria com o mestre o conhecimento necessário para o exercício da sua profissão. Assim se formavam médicos, escultores, sapateiros, arquitetos, professores, alfaiates, engenheiros, tecelões, cozinheiros, pintores, carpinteiros. Hoje isso acontece de modo completamente diverso. O conhecimento em geral é transmitido em sala de aula, nas escolas e faculdades, mas o aperfeiçoamento universitário, a pós-graduação, ainda depende do mestre que orienta o aluno individualmente. Na educação, o legado da tradição oral é muito importante. E tamanha é a importância da tradição que foi justamente um modernista, o escritor Mário de Andrade, um dos maiores responsáveis pela reunião e catalogação das festas, danças e músicas brasileiras. Como escreve Ecléa Bosi em O tempo vivo da memória, à medida que partilhamos a experiência de ouvir e contar histórias, nos tornamos um elemento de continuidade e transformação. Nesse ponto, o papel do contador de histórias é de extrema relevância. Durante gerações, a memória só pôde ser preservada devido à tradição oral. Por isso não estranhe se você conhecer uma lenda contada de modo um pouco diferente do que aparece neste livro. Essa adaptação faz parte da transmissão, seja ela oral ou escrita. O contador ou narrador também é um pouco autor, de forma que a cada vez que uma história é narrada ela ganha um elemento do presente. E é assim que essas lendas e mitos tão particulares, essas histórias cheias de encantamento, que fazem parte do nosso imaginário, se mantêm vivos para as novas gerações. Contando e recontando, mantemos a memória atualizada. Criando e reinventando histórias sedimentamos a cultura popular, que faz parte da nossa vida. E, ao contrário do que muitos imaginavam, a tecnologia veio auxiliar a memória - são muitos os sites na internet que se dedicam ao folclore e à tradição oral. Durante a pesquisa e a seleção das histórias, aprendi muito sobre o Brasil, e na elaboração do texto fui aprendendo ainda mais: a contribuição indígena para a formação da identidade nacional, a importância africana na cultura, a geografia, a história, a antropologia, a ecologia, os costumes regionais e, acima de tudo, o uso da língua portuguesa, que abrange a forma e o conteúdo de uma narrativa. Criei algumas histórias especialmente para este livro: "A princesa de Jericoacoara", "A rainha do mar", "Os sabiás" e "A bruxa da ilha", que incorporam elementos do folclore brasileiro, e "O saci-pererê" e "O lobisomem", baseadas nesses mitos tão nossos conhecidos. O Brasil tem um número enorme de lendas que circulam por todo o país, ganhando características novas ou personagens diferentes conforme a região. Por isso, é bem possível que você sinta falta de algum conto bastante famoso no seu estado que não tenha sido aqui incluído. Realmente, com a riqueza folclórica que possuímos, seria difícil contemplar tudo. Outras histórias, tão importantes quanto as que foram selecionadas, farão parte de novas obras, e são tantas que poderão dar origem a muitos livros. Cunhado por três povos principais, o folclore brasileiro é extremamente rico, pois expressa a combinação de três culturas diferentes, e foi essa variedade que tentei mostrar nesta obra. O número 52 foi escolhido para que você tivesse uma história nova para ler toda semana, durante um ano inteiro, viajando do Amapá ao Rio Grande do Sul, passando por vilarejos e metrópoles, interior e capitais, praias, mata e sertão. Como diz Saul Martins, da Comissão Mineira de Folclore, a cultura popular une as pessoas porque é universal, sendo particular apenas nas variantes regionais das histórias. E existe coisa melhor do que nos unirmos em torno da nossa cultura? Trabalhar neste livro encheu meu peito de alegria. Espero que você também tenha a mesma sensação boa ao ler estas histórias.