Trecho do livro JOAQUIM E MARIA E A ESTÁTUA DE MACHADO DE ASSIS

1. JOAQUIM E MARIA CONHECEM JOAQUIM MARIA A turma saiu do metrô da Cinelândia e se enfiou pela avenida Presidente Wilson sentindo o ar fresco de uma manhã de maio, quase junho. Estavam todos andando normalmente, quando Jorge, o professor de literatura, mudou o passo e disparou feito um alucinado, assim, de repente, como se tivesse visto um grande amigo que não encontrava fazia séculos. A turma, acostumada com as loucuras do professor, saiu correndo atrás dele. Atravessaram a Graça Aranha e chegaram ao portão da Academia Brasileira de Letras. Jorge entrou na Academia que nem um doido e simplesmente subiu na estátua do Machado de Assis! Não satisfeito com a façanha, sentou no colo do escritor e disse ofegante aos seus pupilos, que estavam perplexos com a cena: - Então, crianças, este aqui é o maior escritor do Brasil: Machado de Assis! E esta é a Academia Brasileira de Letras! E, virando-se para a estátua, como se ela o ouvisse e entendesse tudo, completou: - Machado, esses são os meus alunos. Seus futuros leitores! Uma parte da turma começou a rir, a outra tentou puxar o Jorge de lá de cima: - Jorge, sai daí! Tá maluco?! Olha o segurança! - Professor, é proibido subir na estátua - disse o homem, aproximando-se. - Tudo bem, tudo bem... Já estou descendo, chefia. Foi mal. É que há muito tempo não dou um abraço aqui no meu velho camarada. Somos amigos de longa data... Agora a turma tinha certeza de que o Jorge era não só o doido do colégio, mas o louco da cidade, quiçá do país. Ele era daquele tipo de professor que subia na mesa de repente, declamava poemas, lia trechos de romances em voz alta, querendo conquistar os alunos pelos ouvidos. Para o Jorge, a literatura era uma forma de vida, uma religião, e Machado de Assis, uma espécie de deus. O professor desceu da estátua num pulo e, como se nada tivesse acontecido, continuou a falar. - Então, crianças? Vocês estão emocionadas? Estamos aqui, diante do genial autor de Dom Casmurro<\em> e Memórias póstumas de Brás Cubas<\em>. Joaquim Maria! É isso mesmo, Joaquim Maria Machado de Assis! Joaquim e Maria, que estavam um ao lado do outro, levaram um susto. Não sabiam que os nomes deles eram o primeiro nome do Machado. A turma riu e apontou para os dois como se eles tivessem sido pegos trocando um beijo. Amigos desde a creche, agora Joaquim e Maria estavam ali, como se não se conhecessem, sem saber o que fazer, olhando para o chão, torcendo para o Jorge dizer alguma coisa urgentemente,mas ele não dizia nada, longe disso; ria como os outros. "Qual é a graça, afinal?", pensou Maria. "Antigamente muitas pessoas se chamavam assim, José Maria, Antônio Maria, Joaquim Maria, nomes portugueses com certeza." "Mas é muita coincidência mesmo", pensou Joaquim. Os nomes deles juntos! Lado a lado. Nome colado no nome. Joaquim e Maria finalmente colados. Mas o que era um nome colado em outro nome? Não era mão na mão, nem rosto no rosto. E muito menos boca na boca. Era só um nome junto de outro. Nada mais. Infelizmente... Maria logo tratou de responder: - Primeiro, Jorge, a gente não é mais criança. E, segundo, isso aí é só uma estátua - disse, olhando com desprezo para a escultura. - Uma representação oca e vazia. Não é o Machado de Assis, é só um monte de ferro. Jorge, além de louco, era extremamente implicante. Adorava chamar seus alunos - no auge da adolescência - de crianças. Pelo menos não os chamava de "criançolas". Atirava giz na cabeça deles, inventava apelidos, desarrumava os cabelos das meninas, puxava Joana, a mais tímida, que se escondia muito bem lá no fundo da sala, para ler um poema na frente de todos. Pegava no pé mesmo. Especialmente no de Maria e no de Joaquim. Maria era a aluna preferida, não só porque amava a literatura, mas porque Maria era Maria. Uma garota curiosa, atenta. Tinha olhos gulosos, estava sempre querendo saber de tudo e nos mínimos detalhes. Por isso não perdia uma palavra que saía da boca do professor. Embora tivesse catorze anos como a maioria das meninas da oitava série, Maria parecia ter bem mais. Joaquim também era Joaquim. Um menino bacana, inteligente, brincalhão que, para alegria do Jorge, lia feito um desvairado e ainda gostava de escrever. Porém, nas aulas, Joaquim costumava virar um passarinho e sair voando pela janela. Com a cabeça nas nuvens, sonhava acordado com Maria. O professor jogava giz no rapaz sem dó nem piedade: "Joaquim! Acorda! Planeta Terra!". E completava: "'Antes cair das nuvens que de um terceiro andar!', já dizia o Machado". Aí, Joaquim caía das nuvens, mas como doía: olhava para Maria, e ela só tinha olhos para o Jorge, que, com seu estilo despojado - barba por fazer, cabelos compridos, camisa para fora da calça -, deixava bobas as alunas da oitava série. Mas retornemos à Academia; Jorge dava uma volta em torno da estátua, com a mão no queixo, e dizia com aquele ar de louco: - Será que é só uma estátua mesmo? Será que as estátuas não pensam? Não falam? Não saem andando por aí? - Não! - gritou a turma toda, já sem nenhuma paciência com as divagações malucas do professor. - Vocês são muito céticos. Não acreditam em nada. Esse é o problema da juventude: ela não acredita. E, se a juventude não acredita, quem vai acreditar? Os alunos se entreolharam, e ninguém respondeu. - Então, eu pergunto a vocês: o que esta estátua aqui...quer dizer, esta estátua, não, porque ela é só uma representação oca e vazia, como disse a Maricota, mas o que o escritor Machado de Assis fazia na infância, quando ele era apenas o "Machadinho"? - Lia! - arriscou um aluno. - Estudava! - berrou outro. - Escrevia! - gritou um terceiro. - Não. Vocês estão por fora! Na infância, o Machadinho saía pelas ruas com os amigos no morro do Livramento, onde nasceu. Como seu famoso personagem de Memórias póstumas de Brás Cubas<\em>, ele devia gostar de caçar ninho de passarinho, ver briga de galo, soltar pipa, andar pela praia da Gamboa. - Mas o Machado não ia ao colégio? Então como ele aprendeu a ler? - estranhou um dos alunos. - Deve ter ido um pouco. Não se sabe ao certo. Ele tem contos que falam da infância, da escola, mas não se pode garantir que sejam memórias do seu próprio tempo de criança. O Machado provavelmente aprendeu a ler com a mãe, porque, apesar da origem humilde, os pais dele sabiam ler e escrever. Porém, todavia, contudo - brincou o professor -, alguns biógrafos defendem a ideia de que, mais tarde, quando seus pais morreram, Machadinho teria vendido balas e doces nas ruas. Todos fizeram "ooooh!", e um expressou em palavras o espanto geral: - O maior escritor do Brasil foi um menino de rua! - Não, gente. Isso é só suposição. Às vezes os biógrafos gostam de romancear a vida dos biografados. O pai de Machado, seu Francisco José de Assis, era pintor de paredes e dourador, e filho de escravos alforriados, livres. - Então o Machado de Assis era escravo? - perguntou Joana, esquecendo-se de que não perguntava nada. - Foi ele que escreveu A escrava Isaura?<\em> - indagou um garoto. Jorge ficou danado com tanta ignorância e quase correu de volta para o colo do Machado: queria tapar as orelhas do escritor para que ele não ouvisse aquelas asneiras: - Não, cambada! Vocês estão fazendo um samba do crioulo doido. Nem parecem meus alunos. A escrava Isaura<\em> é do Bernardo Guimarães. O Machado não foi escravo, nem o pai dele. Os bisavós e avós é que nasceram escravos e depois foram libertos. Sua mãe, a dona Maria Leopoldina, era portuguesa, e veio para cá ainda criança. Os pais do Machado viviam como agregados, ou seja, faziam pequenos serviços de casa, pintavam, costuravam, e recebiam salário. Trabalhavam para a dona Maria José de Mendonça Barroso, proprietária de toda a chácara do morro do Livramento. Essa rica viúva foi a madrinha do escritor. - E foi essa madrinha que ajudou o Machado de Assis a ser escritor? - perguntou Maria. - Dona Maria José deve ter tratado muito bem o Machadinho, porque tinha carinho pela família, já que os pais dele foram seus agregados, e os avós também. Mas ela morreu de sarampo quando Joaquim Maria estava com seis anos apenas. Machadinho passou nessa chácara seus primeiros anos de vida. Dizem que no conto "Casa Velha" ele descreve bem essa chácara. Eu tenho um trecho do conto aqui - disse o professor. Pegou o livro e leu em voz alta: A casa, cujo lugar e direção não é preciso dizer, tinha entre o povo o nome de Casa Velha, e era realmente: datava dos fins do outro século. Era uma edificação sólida e vasta, gosto severo, nua de adornos. Eu, desde criança, conhecia-lhe a parte exterior, a grande varanda da frente, os dois portões enormes, um especial às pessoas da família e às visitas, e outro destinado ao serviço, às cargas que iam e vinham, às seges, ao gado que saía a pastar. Além dessas duas entradas, havia, do lado oposto, onde ficava a capela, um caminho que dava acesso às pessoas da vizinhança, que ali iam ouvir missa aos domingos, ou rezar a ladainha aos sábados. - Quando a mãe dele morreu, Machadinho só tinha dez anos. Seu Francisco, depois de cinco anos, casou com a dona Maria Inês. Então eles deixaram o morro do Livramento e foram morar no bairro de São Cristóvão. Uns biógrafos dizem que ele não se dava bem com a madrasta; outros dizem que ele já estava trabalhando no Centro e por isso acabou indo morar por lá também. - Puxa, mas a vida dele parece um conto de fadas. Tem madrinha, madrasta, só falta a bruxa - comentou Joaquim. - Serve bruxo? - perguntou o professor. - Como certa vez o poeta Carlos Drummond de Andrade<\em> fez um poema para Machado cujo título é "A um bruxo, com amor", e como o escritor viveu por vinte e quatro anos no bairro do Cosme Velho, seu apelido ficou sendo Bruxo do Cosme Velho. - Então o conto de fadas está completo - disse Joaquim. - Será que a vida é um conto de fadas? E, citando um clichê: será que a vida imita a arte ou a arte imita a vida? Jorge tinha mania de fazer perguntas, mas resposta, que é bom, ele não dava. Como se fosse mesmo para as perguntas ficarem assim, penduradas no trapézio que cada um tem no cérebro. - Bom, crianças, agora vamos deixar o capítulo da infância do Machado aqui fora e entrar no capítulo da Academia Brasileira de Letras, instituição da qual ele foi um dos fundadores e o primeiro presidente, e que por isso mesmo é chamada de Casa de Machado de Assis. A turma foi se dirigindo para o saguão da ABL. Maria se virou para a estátua um instante e brincou: - E o Machado? Ele não vai entrar com a gente, Jorge? Afinal, essa não é a casa dele? - Claro que sim! Convide o nosso autor. Puxe o Machado dessa cadeira! Ele deve estar louco para sair daí! - provocou o professor, já entrando com a turma no saguão da Academia. Maria aceitou a provocação, chegou perto da estátua, olhou bem nos olhos dela e disse: - Vossa Excelência não gostaria de entrar conosco e desfrutar da nossa alegre companhia? Em seguida, acrescentou: - Não precisa responder. Eu sei que o senhor é uma estátua oca e vazia. Tchau. Quando Maria já estava quase de costas para a estátua, viu uma pomba pousar na mão dela. Até aí, nenhum problema; as pombas costumam pousar nas estátuas, mas, de repente, sem mais nem menos, um dos dedos se mexeu! Fez um movimento minúsculo, mas fez! A ave se assustou e saiu voando, e Maria, com os olhos arregalados, não acreditou no que viu. Ficou ali, estatelada, sem fala, diante da estátua. Joaquim gritou da portaria: - Maria, a galera já entrou! Vem! Maria não respondeu. E não fez nenhum sinal, nem de "já vou" ou "espera um pouquinho", nada. Estava dura feito, digamos, uma estátua. Joaquim correu até ela: - Maria? Que aconteceu? Maria! Acorda! - gritou o menino, sacudindo a amiga, que finalmente despertou. - Quim, você não sabe o que eu vi! - Não. O quê? Uma barata? - O dedo dessa estátua se mexeu! - Ah, Maria, você pirou? Tá louca que nem o Jorge? - Eu juro que vi! Uma pomba pousou na mão dela, e ela levantou o dedo, assim, espantando a pomba! Juro! É sério! - Ah, Maria... Qual é? As estátuas são ocas e vazias, lembra? Agora vem! Joaquim pegou a mão de Maria, que, totalmente desnorteada, acabou se deixando levar. Eles entraram de mãos dadas na Academia - mas é claro que isso só durou uma fração de segundo. Lá dentro, as mãos, nervosas, logo se soltaram e caíram no ar.