Escritores diplomados

10/01/2017

Para fins de comparações válidas ou totalmente descabidas com a realidade literária brasileira, recomendo um livro publicado nos Estados Unidos em 2014 e, por ora, sem tradução para o português: MFA vs NYC – The Two Cultures of American Fiction. A primeira sigla se refere aos programas de pós-graduação em Escrita Criativa (Master of Fine Arts), cujo número saltou de 79 em 1975 para 1.269 até a data de publicação da obra. A segunda sigla se refere à cidade de Nova York, terra das grandes editoras e de escritores que estão sentados na sala de estar do cânone há muito tempo, como Philip Roth, Don DeLillo e Paul Auster.

Como os números sugerem, quase todos os jovens que estão publicando hoje nos Estados Unidos passaram por algum mestrado em Escrita Criativa (no Brasil, temos somente um programa parecido, na PUC-RS, mas oficinas literárias de durações variadas surgem em todos os cantos do país). O fato, naturalmente, tem consequências. Algumas delas: 1) os MFAs criam seu próprio cânone, que não é o mesmo reverenciado pelas faculdades de Letras, privilegiando escritores de contos, pois narrativas curtas podem ser mais facilmente trabalhadas em aula; 2) livros de contos então são comprados e publicados por alunos dos MFAs, criando um nicho de mercado interessante sobretudo para as editoras independentes; 3) por motivos de sobrevivência financeira, escritores que passaram por MFAs provavelmente serão professores de MFAs no futuro; 4) o duplo papel escritor-professor, executado por pessoas que provavelmente preferem escrever a dar aula, pode comprometer a qualidade do programa, conforme sugere David Foster Wallace em seu ensaio The Fictional Future (o ensaio é de 1988); 5) o pessoal acha legal beber no mesmo bar de Raymond Carver e Denis Johnson em Iowa City, sede do programa mais conceituado de escrita criativa do país, mas, bem, frequentar o mesmo lugar que seus ídolos nunca foi o suficiente para qualquer coisa que seja.

Não há verdades absolutas preconizadas no conjuntos de ensaios, cujo objetivo central é mostrar de que modo o percurso acadêmico dos escritores afeta o mercado e vice-versa. Algumas pessoas parecem deslumbradas, outras são millenials reclamões clássicos que ficam postando nas redes sociais o dia inteiro e, eventualmente, escrevem um romance; Chad Harbach, no ensaio que dá título ao livro, conclui que o mundo do MFA é um pouco mais livre do que o mundo das grandes editoras. Isso porque, segundo ele, as grandes editoras americanas, cientes de que hoje o livro precisa competir com diversas outras mídias, acabam elegendo como suas apostas os romances que prezam pela legibilidade: a suposta necessidade de "competir por atenção” com outras mídias é internalizada, e a obra sai totalmente clara. A questão não é que bons livros não sejam publicados – ao contrário, editores esparançosos continuam investindo em toneladas de romances ruins. A questão é que as forças do mercado fazem com que bons livros passem despercebidos e, mais do que isso – quantos mais? – sequer sejam escritos.

Ainda que a maioria negue o clichê de que “todo mundo que entra em uma oficina vai passar a escrever de um jeito minimalista à la Raymond Carver”, autores como Eric Bennett, que passou pelo célebre Iowa Writers’ Workshop, acreditam que os cursos de MFA apresentam aos futuros escritores uma seleção de “estilos possíveis”, mesmo que isso nunca seja colocado de forma explícita. Sendo alguém com influências peculiares – seus romancistas favoritos eram Freud e Rabelais, nenhum dos dois romancistas no fim das contas –, Bennett sente que as forças invisíveis de Iowa o empurram na direção de uma prosa dos “sentidos”, enquanto tentam deixá-lo o mais longe possível dos romances de tese ou da metaliteratura. É uma opinião válida. Embora eu, pessoalmente, prefira mil vezes a tal prosa dos sentidos, juro que consegui rir quando ele compara esse tipo de ficção – a que faz você ver e tocar e cheirar e ouvir – a um passeio com uma criança no jardim botânico.

A divisão entre dois mundos – o do mercado e o das oficinas literárias, que não são rivais, de jeito nenhum, mas que antes se tocam muitas vezes – faz sentido no contexto brasileiro? Diminua o número de cursos, diminua o número de escritores, diminua o número de editoras, diminua os valores dos adiantamentos, e diminua, mais do que em todos os itens anteriores, o público leitor. Talvez, em nossa insignificância, faça.

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Carol Bensimon nasceu em Porto Alegre, em 1982. Publicou Pó de parede em 2008 e, no ano seguinte, a Companhia das Letras lançou seu primeiro romance, Sinuca embaixo d’água (finalista dos prêmios Jabuti e São Paulo de Literatura). Seu último livro, Todos nós adorávamos caubóis, foi lançado em outubro de 2013. Ela contribui para o blog com uma coluna mensal.

 

Carol Bensimon

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