Atenção, ler é um ato altamente subversivo

16/07/2018

 

A literatura claramente não é a repetição do mundo real, mas uma subversão dessa realidade, explicitando situações que nem sempre não são percebidas em condições normais. É o que defende Viviane Maia, pesquisadora do Grupo de Pesquisa do Letramento Literário da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), coordenadora de promoção da leitura e da biblioteca na Secretaria Municipal de Belo Horizonte e da comissão de seleção de livros literários da Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte.

Na literatura, explica a pesquisadora, o subversivo encontra-se na forma que a história é contada, em suas metáforas e em seus jogos sonoros. É assim que “desloca os eventos da vida, ressaltando o que fica invisível no dia a dia e nas relações sociais ordinárias”. E materializa a dimensão imaginária do autor. “Se o imaginário é fluido, informe, para a palavra abrigá-lo, ela também assumirá uma forma mais fluida, ambígua, metafórica, abrigando os sentidos do leitor e provocando a suspensão de suas certezas. O imaginário do leitor é que será afetado na leitura. Desse modo, a subversão é o estado do texto literário.”

 

Ilustração Marcelo Tolentino

 

O silêncio também é responsável por essa subversão da linguagem, já que provoca o leitor a buscar uma relação de intimidade consigo mesmo. “É por isso que não é adequado cobrar uma leitura correta, porque ela se dará conforme as atribuições de sentidos dos leitores. Por sua vez, os sentidos variarão a partir das experiências de vida e de outras leituras da cada um. E, à medida em que a criança cria intimidade com os livros, elegendo os seus preferidos, eles passam a ser espaço de construção de sua subjetividade”, explica.

Subjetividade esta que faz com que a criança seja absorvida por inteiro quando se depara com um texto de alta qualidade estética. “Ela vive o que o texto conta porque a forma escolhida pelo autor para contar foi eficiente em absorvê-la inteiramente.” E essa estética sempre implica em subversão, pois propõe ao leitor um processo que envolve integralmente o emocional e o corporal.

“O texto literário exigirá do leitor uma visão e ou compreensão dos eventos narrados de maneira mais ampla do que quando se dão de forma ordinária. Tem como propósito apresentar eventos por perspectivas outras, muitas vezes inaugurando olhares, influenciando emoções profundas. Ao mesmo tempo, tudo que por ele for apresentado se dará por distanciamento, por intermédio dos personagens, favorecendo percepções diferentes.”

O mesmo vale para temas ditos “polêmicos” ou “delicados”. Nesses casos, para que a qualidade literária desses textos não se perca, é importante que abriguem uma multiplicidade de sentidos que podem ser atribuídos pelo leitor. Quando tornam-se panfletários ou ganham tom didático, perdem essa potência. “Deixam de ser subversivos, porque não estimulam no leitor a construção de significados múltiplos, mas, sim, aquele que se quer ensinar. O caráter subversivo da literatura está exatamente no modo como o texto literário se estrutura, ou seja, é por meio de suas lacunas que o leitor penetrará no texto, significando-o. É no interdito, no não dito, que o leitor se constrói como tal.”

Uma opção é transformar essas temáticas delicadas em poesia, como explica a especialista. Ela cita dois exemplos de obras que, falando de temas sensíveis, mantiveram seu caráter subversivo. Um deles é Lívio Lavanda (edições SM), de Michael Roher, que traz um personagem masculino delicado, atribuindo novos sentidos para os modos de masculinidade. Outro é Os olhos do jaguar (editora Jujuba), de Yaguarê Yamã, história em que os nomes dos animais são grafados em língua indígena, apesar do texto estar em língua portuguesa. “As palavras indígenas produzem ruídos que provocam movimentos dos leitores entre códigos de culturas diferentes, presentificando a cultura indígena. Desse modo, a língua portuguesa em muitos livros indígenas recebe outra configuração, é uma língua portuguesa outra.”

Outro exemplo citado por Viviane é a poesia de Cecilia Meireles, marcada por fonemas, rimas e aliterações. Mas não apenas por isso. Também conta com novas regras internas que desconstroem aquelas vigentes em textos objetivos, criando poesia e, portanto, novos mundos possíveis. Em Ou isto ou aquilo, o poema Cantiga para adormecer Lulu se destaca:

 

“Lulu, lulu, lulu, lulu

vou fazer uma cantiga

para o anjinho de São Paulo

que criava uma lombriga.

[...]”

 

A criação de personagens que desorientam o leitor – São Paulo e a sua lombriga de estimação, Lulu – provocam o riso pelo humor da reunião de um personagem divino com um verme. “Fórmula altamente subversiva na forma da escrita, no enredo e também nos efeitos provocados. Nesta obra, os trocadilhos, aliterações, personagens insólitos e rebeldes propõem desconstruções na ordenação lógica de uma história, potencializando o nonsense, e, como consequência, a poesia.”

Por isso é tão rico esse momento de acesso à literatura, principalmente na infância, quando é intensa a experimentação do mundo. Ser leitor é também escolher seus próprios momentos e espaços de leitura, construir-se como agente, capaz de recriar-se continuamente. “Numa realidade em que pensar de forma independente é sempre uma dificuldade, porque existem ritmos ditados pelas diversas formas de poder, ler é subversivo.”

Convidamos a pesquisadora a pensar nas personagens subversivas mais emblemáticas da literatura infantil. Confira a seguir.

Emília, de Monteiro Lobato

Não poderia deixar de integrar essa lista a personagem lembrada por muitos como a mais subversiva da nossa literatura infantil. Nascida das palavras de Monteiro Lobato em 1920, ela viveu uma vida bem diferente para uma boneca de pano daquela época. Viajou o mundo, aprendeu um pouco de tudo, casou-se, divorciou-se...

Alice, de Lewis Carroll

Se a subversão vem do modo de contar histórias, não poderia faltar a personagem Alice, escrita nas palavras de Lewis Carroll. Com seus inúmeros jogos de linguagem, o autor sempre desafia as ideias vigentes enquanto guia a pequena (ou seria grande?) menina em sua aventura pelo País das Maravilhas.

Pinóquio, de Carlo Collodi

O famoso boneco de madeira que só queria ser um menino de verdade tem lá as suas doses de subversão. Pinóquio começou a contar mentiras lá em 1883, quando foi criado pelo escritor Carlo Collodi. Foi também quando começou seus enfrentamentos às autoridades e as suas reflexões a temas que ainda circundam a condição humana, como a fome e a solidão.

Peter Pan, de J. M. Barrie

Se as batalhas entre Peter Pan e Capitão Gancho já são emocionantes o bastante no famoso filme, no livro, a história escrita do menino que se recusava a crescer ganha uma outra dimensão. É que nas palavras escritas por J. M. Barrie, Peter Pan é uma menino esquecido, inclusive quando o assunto são as suas batalhas mais recentes ou as injustiças às quais é submetido. Dessa forma, olha para o mundo de um jeito novo, característico da infância e, portanto, subversivo.

Mary Poppins, de Pamela Lyndon Travers

A famosa babá das telas certamente não é igual à dos livros, que ganha nas palavras escritas um semblante sério. Os universos explorados por ela, no entanto, continuam cativando leitores e abrindo mentes para outras possibilidades de mundo. E o que poderia ser mais subversivo que isso?

 

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