Infâncias e barbárie

03/07/2020

PARTE 2

“Eu não gosto de matar os peixes. Não é uma boa ideia matar os animais. Os peixes são tão lindos! Eu posso comer só arroz... Arroz pode, né”?
(Benício, 5 anos, filho de Luana Antunes e Fernando Bralo)

 

+ Leia a parte 1: O racismo e a arapuca social

Por Kiusam de Oliveira

Luana, mão de Benício, tem doutorado em Letras – Estudos Comparados em Literaturas de Língua Portuguesa (USP), e também estudou grego em uma universidade federal brasileira. Ela está preocupada com o nível de aprofundamento das questões feitas por seu filho, principalmente em tempos de reclusão pela pandemia. Ela o percebe em total amadurecimento, pela profundidade das ideias e questões que ele lhe traz. Eu o entendo como um sábio, pois tem a oportunidade de ser cautelosamente ouvido pelos pais, bem como ser acolhido em suas reflexões sem que seja repreendido com um “está doido, moleque”, capaz de silenciar a criança pelo resto de sua vida. A arapuca social, além de cortar as asas da criança, violentamente corta a sua língua.

(Crédito: Wayne Lee-Sing no Unsplash)

Tendo em vista a arapuca social que o adulto também um dia já encontrou montada para ele, e com a qual muitas vezes se conformou, penso que ele tem a oferecer uma educação pautada na barbárie. De acordo com alguns dicionários, barbárie é a condição daquilo que é selvagem, cruel, desumano e grosseiro, ou seja, quem ou o que é tido como bárbaro. Ela pode também ser interpretada como uma ação em que a violência é atroz, usada com o único objetivo de afetar diretamente a paz e a tranquilidade de determinado grupo, desrespeitando, inclusive, as leis. Etimologicamente falando, a palavra tem origem grega e os gregos usavam esse termo “bárbaro” no sentido de estrangeiro, estranho ou ignorante, o que vem de fora tido como animalesco, marcado com um sinal negativo.

 

O aprendizado na violência cotidiana

Quando uma criança observa os adultos da família gargalhando ao verem na televisão homens segurando crianças no colo e fazendo “arminha” com as mãos ou atacando violentamente o fazer pedagógico das professoras, ela está aprendendo algo. Quando em casa se ensina a não sair sem usar uma máscara, mas ao mesmo tempo ela assiste aos programas da televisão e observa as autoridades do governo sem usá-las, ela está aprendendo algo. Quando uma criança vê e ouve em programas de televisão um político dizendo que foi a um quilombo e que lá o afrodescendente mais leve pesava sete arrobas (arroba é uma medida usada para pesar gado; cada uma equivale a 15 kg), ela está aprendendo algo. Quando uma criança, no caminho de casa à escola semanalmente passa ao lado de corpos assassinados, vendo a morte escancarada, balas de fuzis, buracos nos corpos estendidos no chão, os olhos vidrados, sangue por todo lado, ela está aprendendo algo. E quando ela repara por experiência cotidiana ou através das mídias que crianças negras estão sendo assassinadas, ela está aprendendo algo.

Esse “algo” deve ser descoberto pelo adulto com urgência, de forma silenciosa, através da pedagogia do olhar, do ouvir, do sentir, a fim de compreender o que a criança entende de toda a violência que está vivendo. Assim, a partir de uma visão pós-crítica que privilegia a linguagem, o diálogo, a conversa as trocas em todos os níveis – étnico-cultural, social, econômica, de gênero, orientação sexual, geracional -, entre outras, ela possa ser capaz de ampliar suas reflexões.

Um provérbio africano afirma que o ser humano nasce com uma boca, para falar menos, e, para ouvir, cheirar e enxergar melhor, recebe dois ouvidos, duas narinas e dois olhos, suficientes para provocar o despertar dos sentidos no e com o mundo. A criança não apenas vê um livro, ouve uma história: ela projeta seu imaginário naquela situação de forma muito rápida e concreta, e chega a ter pesadelos. Benício guarda em si o que toda criança sem interferências em seu refletir carrega: a sapiência capaz de “tayorizar” as relações étnico-raciais tal qual faz Tayó, uma das minhas personagens literárias mais amadas pelo público, pois ela é negra, se ama e se sabe bela por ter a própria mãe, uma mulher negra, como seu espelho.

Enfim, Benício, não gosta do ato de matar e o entende como não sendo uma boa ideia para com os animais. Não nos esqueçamos que também somos animais – será que Beni chegou, em suas tayorizações, a associar tal complexidade? Benício, como tantas outras crianças, convive em uma sociedade em que é possível acompanhar, nos programas de televisão, um policial branco, fardado, pressionando com todo o seu peso o pescoço de um homem negro rendido no chão, enquanto dizia “eu não consigo respirar”. O policial assassinou George Floyd, um cidadão americano pressionando o seu pescoço por 8 minutos e 46 segundos: tudo isso num país onde, para muitos, a Ku Klux Klan é um valor, seu bichinho de estimação. Enquanto o policial branco, em manifestação pública fazendo uso amplo do poder que a estrutura da branquitude lhe confere, assassina um cidadão negro.

 

Racismo estrutural: as barbaridades do cotidiano

A barbárie não está presente somente nos atos de assassinatos, tiros, bombas e muito sangue: ela está na educação que se dá no Brasil, país construído a partir do extermínio dos povos indígenas e da escravidão de negros por parte dos brancos desbravadores portugueses que aqui aportaram, trazendo seus vícios, suas doenças e suas formas excludentes de pensar o mundo, as pessoas. Brasil, país estruturado a partir do racismo como forma de justificar as atrocidades bárbaras executadas por um grupo étnico-racial sobre tantos outros.

A barbárie está quando uma criança com dois anos de idade, ao observar as imagens de um livro lido por um adulto, aponta para um personagem negro e diz “é feio porque é preto” e você se cala.

A barbárie ocorre quando seu filho está em uma escola de elite que “quase” não têm negros e você se silencia em relação à proposta curricular que não apresenta um trabalho focado no que está estabelecido pela Lei de Diretrizes e Bases que rege a educação brasileira, em seus artigos 26A e 79B, obrigando o ensino da história da África e das culturas afro-brasileiras e indígenas em todas as escolas e níveis de ensino do país.

A barbárie está quando você, gestora de escolas pública e/ou privada, não prevê compras de livros de literatura infantil, juvenil e adulta escritos por autores negros, tampouco com personagens negros vibrantes, com família própria, em profissões diversas.

A barbárie está quando você – pai, mãe e avós –, orienta seus filhos a não brincarem com crianças negras por serem, com certeza, marginais.

A barbárie está quando você orienta a sua filha a atravessar a rua ao ver um homem negro vindo em sua direção, na mesma calçada.

A barbárie está quando você diz a seu filho que não o aceitará aparecendo com uma “negrinha” em casa, como namorada.

A barbárie está quando a família reunida conta piadas sobre negros, afirmando ser só uma “brincadeira”.

Eu poderia ficar aqui dando mais de mil situações possíveis do que considero barbáries cotidianas e recorrentes que a branquitude sequer entende como algo sério.

E aqui, ainda com a ajuda de Benício, meu pequeno sábio, faço a minha última pergunta: Adulto, você sabe que criança pode voar porque veio das estrelas?

 

[Na próxima sexta-feira, dia 10/7, confira a resposta dessa pergunta na terceira e última parte do artigo de Kiusam de Oliveira]

***

Kiusam de OIliveira é escritora e doutora em Educação (USP)

 

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